Postado em nov. de 2016
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Sonhos do avesso
Psicanalista afirma que a clínica tem sido "contaminada" por critérios de mercado e que o universo familiar gerador de valores está "atravessado pela linguagem da eficiência comercial".
Ao longo de uma década de existência, o Fronteiras do Pensamento privilegiou a voz de diversos pensadores sobre o comportamento humano. Seja através dos estudos de psicólogos como Paul Bloom e Howard Gardner ou da pesquisa e da prática clínica de psicanalistas como Elisabeth Roudinesco e Charles Melman, um novo sujeito foi trazido à luz no palco do projeto.
O que mudou nos consultórios e na sociedade dos dias de Freud até hoje? Para Kehl, as principais questões a serem percebidas é como a clínica tem sido "contaminada" por critérios de mercado e o universo familiar gerador de valores está "atravessado pela linguagem da eficiência comercial". Em artigo, a psicanalista brasileira, que esteve no Fronteiras, em 2009, explica sua opinião. Confira abaixo:
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Dizem que Karl Marx descobriu o inconsciente três décadas antes de Freud. Se a afirmação não é rigorosamente exata, não deixa de fazer sentido desde que Marx, no capítulo de "O Capital" sobre o fetiche da mercadoria, estabeleceu dois parâmetros conceituais imprescindíveis para explicar a transformação que o capitalismo produziu na subjetividade.
São eles os conceitos de fetichismo e alienação, ambos tributários da descoberta da mais-valia -- ou do inconsciente, como queiram. A rigor, não há grande diferença entre o emprego dessas duas palavras na psicanálise e no materialismo histórico. Em Freud, o fetiche organiza a gestão perversa do desejo sexual e, de forma menos evidente, de todo o desejo humano; já a alienação não passa de efeito da divisão do sujeito, ou seja, da existência do inconsciente. Em Marx, o fetiche da mercadoria, fruto da expropriação alienada do trabalho, tem um papel decisivo na produção "inconsciente" da mais-valia. O sujeito das duas teorias é um só: aquele que sofre e se indaga sobre a origem inconsciente de seus sintomas é o mesmo que desconhece, por efeito dessa mesma inconsciência, que o poder encantatório das mercadorias é condição não de sua riqueza, mas de sua miséria material e espiritual.
Se a sociedade em que vivemos se diz "de mercado" é porque a mercadoria é o grande organizador do laço social. Não seria necessário recorrer a Marx e Freud para defender o caráter político das formações do inconsciente. Bastaria citar a frase "o inconsciente é a política", proferida por Lacan, que convocou os psicanalistas a se empenharem por "alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época". Mas insisto em recorrer aos clássicos para lembrar aos lacanianos extremados que a verdade não nasceu por geração espontânea da cabeça de Lacan.
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Crise do sujeito
Se Freud fundou a psicanálise ao vislumbrar, no horizonte de sua época, as razões da insatisfação histérica, é nossa vez de tentar escutar o que mudou desde então, à medida que a norma produtiva/repressiva foi sendo substituída pela norma do gozo e do consumo.
Alguns sintomas, na atualidade, têm se tornado mais frequentes e mais incômodos do que as formas consagradas das neuroses e das psicoses no século passado. Hoje as drogadições, os transtornos alimentares, os quadros delinquenciais e as depressões graves desafiam os analistas a repensar a subjetividade. Isso não implica necessariamente que as antigas estruturas clínicas tenham se tornado obsoletas.
O que encontramos hoje nos consultórios psicanalíticos é um novo sujeito? Ou são novas expressões sintomáticas que buscam responder ao velho conflito entre as pulsões e o supereu -- este representante das interdições e das moções de gozo, no psiquismo? O sujeito contemporâneo está mais próximo do perverso, que sabe driblar a falta pelo uso do fetiche? Ou é ainda o neurótico comum que, em vez de tentar seguir à risca a norma repressiva, tenta obedecer a um mestre fetichista que lhe ordena a transgredir e gozar além da medida?
Por enquanto, tenho escutado, em média, neuróticos mais ou menos estruturados tentando corresponder à suposta normalidade vigente, a qual -- esta sim -- já não é mais a mesma nem do tempo de Freud, nem do de Lacan.
A "crise do sujeito", outra face da chamada "crise da referência paterna", corresponde, a meu ver, ao deslocamento e à pulverização das referências que sustentavam, até meados do século passado, a transmissão da lei. Não se trata da ausência da lei na atualidade, mas da fragilidade das formações imaginárias que davam sentido e consistência à interdição do incesto -- a qual, desde Freud, é considerada condição universal de inclusão dos sujeitos na chamada vida civilizada, seja ela qual for.
Se o homem contemporâneo sofre do que [o psicanalista francês] Charles Melman chamou de falta de um centro de gravidade, é porque as referências tradicionais -- Deus, pátria, família, trabalho, pai- pulverizaram-se em milhares de referências optativas, para uso privado do freguês.
Assista aos vídeos com Charles Melman
Culpa e frustração
O "self-made man" dos primórdios do capitalismo deixou de ser o trabalhador esforçado e econômico para se tornar o gestor de seu próprio "perfil do consumidor" a partir de modelos em oferta no mercado. Cada um tem o direito e o dever de compor a seu gosto um campo próprio de referências, de estilo, de ideais. Aparentemente, não devemos mais nada ao pai e ao grupo social a que pertencemos, dos quais imaginamos prescindir para saber quem somos.
Este aparente apagamento da dívida simbólica não nos tornou menos culpados; ao contrário: hoje escutamos pessoas que se dizem culpadas de tudo. Não citarei, em hipótese alguma, falas dos que se analisam comigo: daí o caráter ligeiramente caricato dos exemplos que se seguem, como expressões genéricas da transformação que o mercado produziu nos discursos.
A antiga donzela angustiada com as manifestações involuntárias de sua sexualidade reprimida -- lembrem-se de que Freud relacionou o tabu da virgindade e a moral sexual entre as causas do mal-estar, no início do século 20 -- hoje se sente culpada por não usufruir tanto do sexo, das drogas e do "rock and funk" quanto deveria. O obsessivo escrupuloso, acossado por fantasias perversas, agora se queixa de seu bom comportamento: queria ser um predador sem escrúpulos, eliminar os rivais, abusar sem pudor das mulheres.
As pessoas vivem culpadas por não conseguirem gozar tanto quanto lhes é exigido. Culpadas por não alcançar o sucesso e a popularidade instantâneos, por perderem tempo em sessões de análise -- culpados por sofrer. O sofrimento não tem mais o prestígio que lhe conferia o cristianismo. Sofrer não redime a dívida; ao contrário, reduplica os juros.
Sem recurso à referência a autoridades repressivas que faziam obstáculo aos prazeres, as pessoas têm dificuldades em justificar seus sintomas. Não encontram a quem endereçar suas queixas ou apoiar seus ideais.
"Meus pais são amigos, meus professores são legais, ninguém me impõe ou me impede nada: eu sou um otário porque não consigo ser feliz". O sentimento de culpa, como escreve [o sociólogo francês Alain] Ehrenberg, tomou a forma de sentimento de insuficiência. Assim, a resposta à dor psíquica não é buscada pela via da palavra, mas pelo consumo abusivo dos psicofármacos que prometem adicionar a substância faltante ao psiquismo deficitário. O remédio age em lugar do sujeito, que não se vê responsável por seu desejo e por suas escolhas.
Assista à Elisabeth Roudinesco: Psicotrópicos e sofrimento psíquico
Não se concebe a vida como um percurso de risco que inclui altos e baixos, incertezas, acertos, dúvida, sorte, acaso. A vida é um empreendimento cujos resultados devem ser garantidos desde os primeiros anos -- daí o surgimento de uma geração de crianças de agenda cheia de atividades preparatórias para a futura competição por uma vaga promissora no mercado de trabalho.
Não por acaso, essas mesmas crianças estarão mais predispostas à depressão na adolescência, esvaziadas de imaginação, de vida interior, de capacidade criativa. O universo amoroso ou familiar que substitui o espaço público como gerador de valores está totalmente atravessado pela linguagem da eficiência comercial. "Quem vai olhar para um modelo fora de linha como eu?" "Como promover a otimização de meus finais de semana?" "Fiz as contas: com o que gastei na análise de meu filho já poderia ter trocado de carro duas vezes" (nesse caso, o analista sente-se tentado a sugerir que, de fato, ficaria mais em conta trocar de filho).
Vale ainda mencionar o estranho silêncio, nos consultórios dos analistas, em torno do eterno mistério do desejo e da diferença sexual. A falta de objeto que caracteriza a atração erótica parece ter sido ofuscada pela onipresença de imagens sexuais nos outdoors, na televisão, nas lojas, nas revistas -- por onde olhe, o sujeito se depara com o sexual desvelado que se oferece e o convida.
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As fantasias sexuais são todas prêt-à-porter. Seria ok, se o suposto desvelamento do mistério não produzisse sintomas paradoxais. O tédio, em primeiro lugar, entre jovens que se esforçam desde cedo para dar mostras de grande eficiência e voracidade sexuais. As intervenções cirúrgicas no corpo, de consequências por vezes bizarras, em rapazes e moças que pensam que a imagem corporal perfeita seja a solução para o mistério que mobiliza o desejo.
A reificação do sujeito identificado como mais uma mercadoria se revela no medo generalizado de não agradar. O mistério do desejo persiste, assim como não deixa de existir o inconsciente: mas é como se suas manifestações não interrogassem mais os sujeitos.
(Via Folha)
Maria Rita Kehl
Psicanalista