Postado em mai. de 2020
Literatura | Arte | Psicologia e Saúde Mental
Sonhos em tempos de coronavírus
Como nossa experiência de sonhar se manifesta quando não é possível saber em que momento tudo voltará a ser como antes?
Sonhar: palavra que se refere simultaneamente a dois fenômenos distintos. Na cultura ocidental, sonho é sinônimo do grande desejo de uma vida, estando, por muitas vezes, diretamente conectado ao próprio sentido da existência humana. Há também o sonho que acontece à noite, quando adormecemos, e é uma experiência sobre a qual temos pouco domínio. Esse se alimenta das reminiscências do cotidiano que se infiltram nos caminhos do inconsciente. Sonhar é como viver realidades distintas a partir de outros olhares. Mesmo que inquietantes, angustiantes ou bizarros, os sonhos nos permitem ter acesso a uma outra maneira de se relacionar com a realidade e com nós mesmos.
Os dois tipos de sonhos têm em comum o fato de estarem de alguma forma conectados ao futuro. O sonho que sonhamos à noite pode ser uma espécie de previsão do que irá acontecer. É o que defende o neurocientista Sidarta Ribeiro, autor de “O oráculo da noite: A história e a ciência dos sonhos”:
“Os sonhos são uma tentativa de prever o futuro com base no que já se sabe. Isso é produzido pelo inconsciente, que junta as pontas, e pode vir para o consciente. Aquilo que está se manifestando e ainda não emergiu para a consciência tem a chance de se manifestar nos sonhos. Nas guerras isso aparece muito claramente”.
Este é o tema do romance “A sociedade dos sonhadores involuntários”, de José Eduardo Agualusa do qual, inclusive, Ribeiro é um dos personagens. Conferencista do Fronteiras do Pensamento em 2018, Agualusa é pioneiro em um tipo de ativismo inovador, que revela a tragédia de seu país: o ativismo pelo sonho.
E o que acontece com os sonhos quando um inimigo invisível nos priva da liberdade de ir e vir? Como nossa experiência de sonhar se manifesta quando não é possível saber em que momento tudo voltará a ser como antes? Um trabalho pioneiro sobre o onírico em tempos extremos pode nos auxiliar a compreender como os sonhos de uma sociedade se manifestam e compõem o imaginário de uma época.
Charlotte Beradt, jornalista e escritora alemã contemporânea do nazismo, partiu de sua própria experiência de acordar frequentemente com sonhos assustadores para fazer uma pergunta: seria ela a única a estar tendo pesadelos nos quais as figuras e os terrores da ditadura nazista pareciam infiltrar-se? De 1933 a 1939, Charlotte dedicou-se a entrevistar mais de 300 berlinenses para ter uma resposta. O resultado da pesquisa transformou-se em “Os Sonhos no Terceiro Reich”, obra na qual a escritora conta como os sonhos de seus concidadãos eram permeados pelo medo, pela violência, pela vergonha e pela desconfiança. As imagens eram diferentes nos sonhos de cada um, mas havia um padrão entre elas: a inserção do totalitarismo na experiência onírica de todos.
Muitos anos passaram e hoje a crise do coronavírus desperta um dos medos mais primitivos do ser humano: o medo da morte. A falta de controle sobre a vida e sobre o futuro, somada ao isolamento que impede de estarmos próximos fisicamente das pessoas com quem dividimos nossos temores e alegrias, tem profundas consequências em nossas vidas, se manifestando também nos sonhos.
Porém, não são apenas os sonhos e pesadelos que comunicam. O não sonhar também tem um significado. Diante das crises geradas pela pandemia, a ansiedade generalizada e a insônia atingem cada vez mais pessoas. À medida que o estresse e as preocupações aumentam, crescem os níveis de cortisol no sangue e deitar a cabeça no travesseiro para ter uma noite de sono torna-se um verdadeiro pesadelo.
Sobre pesadelos, acredite: é melhor tê-los do que não sonhar. Ao nos relacionarmos com os pesadelos, buscamos seus significados e passamos a conhecer melhor a nós mesmos e aos nossos medos. Com tempo e com práticas de rotinas saudáveis antes do sono, é possível inclusive aprender a treinar nosso inconsciente para entender que os pesadelos não podem nos afetar enquanto sonhamos, destaca Sidarta Ribeiro.
Os sonhos a partir da interpretação freudiana
Os sonhos podem, também, dizer muito sobre o inconsciente: essa é a tese desenvolvida de modo pioneiro por Sigmund Freud, médico e fundador da psicanálise que provocou uma revolução nos estudos acerca do tema ao publicar “A interpretação dos sonhos”, em 1900.
Freud defende que os sonhos seriam, sempre, a satisfação de algum desejo presente no inconsciente do sujeito por meio da simbolização elaborada pelo trabalho onírico. Em seus estudos, o psicanalista constatou que os sonhos se utilizam de material latente que permanece fora da consciência, trazendo novamente impressões da infância que pareciam estar no esquecimento, bem como traços de acontecimentos recentes – como pequenos detalhes ao qual a consciência deu pouca atenção no dia anterior ao sonho –, e, a partir desses, simbolizam a realização de desejos inconscientes. Assim, na compreensão freudiana, os sonhos seriam uma ferramenta para desvendar a personalidade, a psique e o sofrimento das pessoas, por revelarem seus processos mais íntimos.
Elisabeth Roudinesco: sonhar com outra vida
A complexa doutrina freudiana foi transformada em matéria prima de best-sellers pela historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco. Autora da biografia mais recente de Freud e de diversos livros sobre psicanálise e presença assídua em publicações científicas e na imprensa, Elisabeth foi conferencista do Fronteiras do Pensamento em 2016, ocasião em que falou sobre a importância de sonhar com um futuro melhor.
>> Leia o resumo da conferência de Elisabeth Roudinesco
Roudinesco nos ajuda a pensar o presente para sonhar com o futuro: vivemos tempos difíceis, de incertezas e fragilidades, mas não podemos esquecer que o passado também apresentou grandes desafios que foram superados pela humanidade. Por esse motivo, podemos e devemos sonhar com um futuro melhor, que ainda não foi pensado nem escrito.
A literatura e seu potencial onírico
Como toda a arte, a literatura nos traz a possibilidade de sonharmos e imaginarmos algo radicalmente novo, fora de nosso planejamento racional e daquilo que já existe em nosso mundo. Terreno fértil para o onírico, as letras têm uma relação próxima com esse mundo: são muitas as grandes obras que saíram de sonhos ou pesadelos, assim como há os textos que parecem nos possibilitar acessar o inconsciente de determinada época.
Mia Couto, escritor moçambicano que estará no Fronteiras do Pensamento 2020, é considerado um mestre em mesclar sonho, realidade e mito. Para o autor, os sonhos nos unem, formam um território desconhecido, incontrolável. A porta para o mundo dos sonhos, para Mia Couto, é a poesia. Aborígenes da Austrália, indígenas da Amazônia e engenheiros nucleares da Romênia: todos eles têm os mesmos medos, os mesmos sonhos, diz o escritor.
Um romance em abismo, escrito numa prosa poética que bebe na tradição de grandes criadores da língua portuguesa, como Guimarães Rosa. Nele o escritor moçambicano se vale também de recursos do realismo mágico e da arte narrativa tradicional africana para compor esta bela fábula, que nos ensina a sonhar, mesmo nas condições mais adversas.
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Da ciência às artes, são inúmeros os projetos que estão coletando relatos de sonhos para ajudar a escrever um imaginário coletivo ou apenas contar a história da pandemia. Um deles, idealizado pela artista visual Anelise De Carli, já recebeu mais de 400 relatos em três idiomas. Intitulado “Sonhos da quarentena”, o trabalho propõe elaborar um cenário do mundo interno que estamos compartilhando agora e estimular a prática do pensamento por imagens (tema de investigação pessoal de imagens e do imaginário realizado por Anelise).
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