Postado em set. de 2016
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Elisabeth Roudinesco: “Progresso só existe na ciência. Na psicanálise, existem transformações.”
Historiadora francesa fala sobre a biografia de Freud, sobre as adaptações da psicanálise aos novos tempos e sobre a incomunicabilidade da área com a neurociência.
Poucas pessoas conhecem a psicanálise e seus expoentes com tanta propriedade quanto a historiadora francesa Elisabeth Roudinesco.
Autora de obras fundamentais na área, entre elas o Dicionário da Psicanálise, História da Psicanálise na França e a biografia Jacques Lacan, ela esteve no Brasil em setembro, quando lançou Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo (editora Zahar), seu trabalho mais recente.
A biografia é mais uma fonte obrigatória aos interessados na obra do vienense que ganhou o mundo das terapias, da cultura e da política ao desbravar o inconsciente.
Em entrevista concedida ao jornal digital Nexo, em São Paulo, Roudinesco falou dos paradoxos de Freud, um homem “dividido entre o racional e o irracional", criticou as inúmeras “lendas negras" em torno de sua história, como aquela segundo a qual teria abandonado suas quatro irmãs aos nazistas, e afirmou que o Brasil é o país mais freudiano do mundo atualmente.
A historiadora, que participou do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, falou ainda da necessidade de os psicanalistas se adaptarem aos novos tempos adotando técnicas como o coaching e as terapias curtas como forma de se manterem relevantes frente ao poder crescente da psiquiatria.
Qual foi a sua motivação para escrever uma nova biografia de Freud?
Elisabeth Roudinesco: Era importante que houvesse uma biografia em língua francesa. E eu queria mostrar Freud sob uma outra luz. Focalizei muito a questão de Viena, recolocando Freud no contexto vienense do final do século. A ideia era mostrar um Freud dividido entre o racional e o irracional. Suas errâncias, conflitos, inclusive na sua vida cotidiana, que foi muito importante. Ernest Jones [psicanalista galês e autor da biografia oficial de Freud] já tinha feito algo nesse sentido.
Eu também queria fazer esta síntese: Freud e as mulheres, Freud e o político diante do Nazismo, Freud no contexto vienense, na Belle Époque, Freud do final de século 19, com toda genealogia familiar, e a obra dele em seu desenvolvimento histórico. O modelo que eu segui é a biografia de São Luís, de Jacques Le Goff.
Pode nos dar alguns exemplos das novidades trazidas no seu livro?
Elisabeth Roudinesco: Minha ideia inicial era saber o que é verdadeiro e o porquê de tantas construções. E quais foram os objetos de todas essas construções. No fundo, a vida de Freud é simples, em determinados aspectos. O que é complicado é a forma como ele se colocou na teoria, porque era um homem de paradoxos. Assim, foi possível inventar que Freud teve uma vida extravagante.
Existiam muitas perguntas sobre uma ligação, um caso dele com a sua cunhada. É claro que eu posso ter dúvidas, mas o que é certo é que Freud não engravidou nem provocou aborto na cunhada, isso é certeza. Talvez tenha havido uma relação durante uma viagem, mas eu não acredito nisso. Eu vi todas as correspondências...
E a história de que abandonou as quatro irmãs para morrer nas mãos dos nazistas?
Elisabeth Roudinesco: Quanto à essa lenda terrível, isso é monstruoso. Sair de Viena em 1938 era extremamente difícil. Os judeus não conseguiam vistos. Metade das famílias permaneceu em Viena e foi exterminada. Freud obteve visto, mas sua família foi saindo por etapas.
Naquela época, não se podia imaginar que quatro senhoras que não tinham atividade e não estavam envolvidas em política pudessem ser exterminadas. Freud tentou levá-las, mas a Inglaterra não lhes deu os vistos, porque elas não eram ativas profissionalmente. Em 1939, a coisa se acelerou.
Portanto, ninguém é responsável. E essa tese, a meu ver, é antissemita. É uma tese muito antiga e que leva a entender que, se tantos judeus foram exterminados, a culpa é dos judeus, pois deixaram que suas famílias fossem exterminadas. É abominável.
Também há críticos que veem Freud como misógino.
Elisabeth Roudinesco: Eu não vejo as coisas dessa forma. Mas também não adianta fazer uma hagiografia. Eu não fiz nenhuma hagiografia. Bom, Freud se enganou na sua teoria sobre a sexualidade feminina e foi criticado por isso. Agora, misógino? Nunca, jamais. Havia, sim, muita misoginia em Viena e nos próprios freudianos.
Quando se lê as Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena, vemos muitos psicanalistas dizerem teorias extravagantes: “Se as mulheres trabalharem, elas vão se tornar homens", “Elas foram feitas para a maternidade". Isso é misoginia. Mas Freud, quando ouve isso, diz: “Não, não". Ele não faz parte disso, sabe que as mulheres vão trabalhar e é favorável à emancipação. Isso é uma bobagem. Mas, por outro lado, Freud tinha um defeito maior: queria permanecer dono da doutrina.
Como foi isso?
Elisabeth Roudinesco: Ele sabia que estava errado, mas insistia nisso. Quando estava com seus discípulos, os deixava livres para falarem, mas, ao mesmo, queria que eles não se desviassem da teoria dele. Algumas vezes ele tinha razão. Mas ele tinha uma tendência a achar que, como era o proprietário da doutrina, devia mantê-la pura. Com isso, produzia dogmatismo. Enfim, Freud se enganou em muitas coisas. Mas abandonou as irmãs? Não. Dormiu com a cunhada? Não. Misógino? Não. Coloram na boca de Freud coisas muito extravagantes.
Por exemplo, há rumores de que quando ele chega a Nova York, ele diz: “Eles não sabem, mas nós trouxemos a peste". É mentira. Ele nunca disse isso. É uma lenda. Há outra lenda que diz que ao sair de Viena ele teria escrito uma frase de humor: “Eu recomendo a Gestapo para todos". Ele jamais disse isso. É engraçado, mas ele jamais disse isso.
A senhora diz que os textos sobre os casos clínicos de Freud precisam ser lidos levando-se em conta que ele os teria ficcionalizado. O que isso significa?
Elisabeth Roudinesco: Faço distinção entre os casos relatados por Freud e por outras pessoas. Os relatos dele, sim, são ficções. São histórias que foram reconstituídas para demonstrar algo. Quando possível, é preciso comparar essas histórias escritas por Freud com o depoimento dos próprios pacientes.
Entre as histórias escritas por Freud, a mais interessante é a do “Homem dos lobos". O paciente se identificou com o personagem, mas contou uma outra história. Ele explicou que Freud havia inventado tudo, particularmente aquela cena da cópula entre os pais, mas diz que isso não tem importância, porque acabou dando um sentido à vida dele. O fato de Freud ter reconstruído essa história, que talvez não fosse a história dele, mas com a qual ele pôde se identificar, foi importante pra ele.
Quais as maiores divergências surgidas nos relatos dos próprios pacientes?
Elisabeth Roudinesco: Se compararmos, por exemplo, o texto de Bertha Pappenheim como “Anna O." [pseudônimo usado por Freud nos seus escritos sobre a paciente], os dois não têm nada a ver. Ela rejeita totalmente esse tratamento e conta uma outra história, bem diferente.
No caso de “Dora", pseudônimo de Ida Bauer, ela recusou o que Freud disse. Freud se enganou com relação a certas coisas, e ela não foi curada de seus sintomas. O depoimento de Maria Bonaparte é incrível, porque ela, sim, se curou. Mas será que ela se curou de verdade? Eu penso que o que salvou a vida de Maria Bonaparte - porque ela queria se suicidar - foi o fato de ela ter entrado no movimento psicanalítico.
Essa diferença entre o relato feito pelo próprio Freud e o relato feito pelos pacientes não contribuiu às críticas que dizem que ele é um mitômano?
Elisabeth Roudinesco: Isso é ridículo. Se a pessoa for séria, ela sabe que são duas narrativas diferentes. E é preciso ter as duas. Da mesma forma, no meu trabalho como historiadora, quando eu faço uma reconstrução da história, eu escrevo vários depoimentos. Fiz isso em relação a Lacan e à psicanálise na França, para os quais eu recolhi cerca de 200 depoimentos.
Bom, as pessoas que se veem relatadas ali não ficaram muito felizes. Aliás, nunca ficam felizes. Não gostam muito. Elas dizem: “Não, eu eu não disse isso!" “Eu não falei isso..." Você, por exemplo, como jornalista, deve enfrentar a mesma situação. Ninguém fica feliz. Então, existe a vivência, o que aconteceu, e a narrativa. Por isso que existem tantas biografias…
Tendo estudado as obras de Freud e as interpretações sobre elas em diversos períodos, qual a sua opinião sobre o porquê dessa resistência a ele e à psicanálise?
Elisabeth Roudinesco: Isso é uma coisa totalmente normal. Todos os pensadores que inventaram algo perturbador, questionando as aparências, desfazendo representações e inventando outras, todos eles sempre tiveram uma 'lenda negra'. Darwin teve o mesmo problema.
Hoje, existem aqueles que negam a teoria da Evolução. A respeito de Einstein, também há um grande número de ataques e intrigas. Dizem, por exemplo, que não foi ele que inventou a Teoria da Relatividade, que foi a esposa dele a criadora, que ele era louco e foi um cara abominável com o filho etc.
Há muitas lendas também sobre Sartre, Simone de Beauvoir e Michel Foucault. Focault foi acusado de ter transmitido voluntariamente a Aids, de ter sido favorável ao Aiatolá Khomeini e de querer soltar todos os presos da França. Mas quando vemos os textos, a gente percebe que não é nada disso.
A senhora diz que o Brasil é um país muito aberto à leitura de Freud. Que talvez seja o país mais freudiano do mundo. O que quer dizer com isso?
Elisabeth Roudinesco: Hoje, sim. Antes, foi a França. Depois, a Argentina. Hoje é o Brasil. Bem, o que permaneceu na França foi o amor por Freud. Quando alguém destrói Freud na França, isso acaba se tornando um possível best-seller, mas não permanece.
Com relação à psicanálise, ela está em declínio no mundo inteiro. No passado, ela foi adotada pelos psiquiatras, mas hoje a psiquiatria se tornou puramente biológica. Atualmente, a psicanálise é adotada pelos psicólogos.
Já no Brasil, todos os cursos de psicologia são dominados pela psicanálise. Existe outra razão: acho que os brasileiros são muito mais ecléticos. Ou seja, eles compreenderam que, hoje em dia, as pessoas não querem mais fazer análises longas. Por isso, se adaptaram a essa nova demanda dos pacientes.
Diante da dificuldade em ocupar espaço frente à psiquiatria e à terapia cognitivo-comportamental, qual é o espaço possível para a psicanálise?
Elisabeth Roudinesco: Penso que os psicanalistas erraram, porque não se adaptaram às mudanças. Os psicanalistas devem se adaptar a novas formas de terapia, como coaching e terapias curtas... Isso é diferente da terapia comportamental. Podemos dizer que o cognitivismo e a psiquiatria têm sido ensinados na academia, mas, na realidade, os pacientes têm procurado diversos tipos de tratamento.
Hoje, até a autoajuda é importante. Além disso, há poucos terapeutas comportamentais. As ideias cognitivistas são ensinadas nos cursos de psicologia e isso dá a impressão de que algo é expressivo, mas na verdade elas não são tão frequentes assim.
Nos últimos meses, foi reaceso o debate entre psicanalistas e neurocientistas. Isso começou quando um neurocientista muito importante disse que a psicanálise é um mero exercício estético e foi totalmente superada pela neurociência.
Elisabeth Roudinesco: Isso é uma polêmica no mundo todo. No fundo, a psicanálise não é uma ciência. As neurociências sim estão mais do lado das ciências…
Mas não existe um diálogo possível?
Elisabeth Roudinesco: Não, não há diálogo possível. É uma ilusão, porque não estão falando da mesma coisa. Aliás, isso é uma ilusão de nossa época. Nós achamos que podemos estabelecer pontes entre as coisas. Mas aqueles que lidam com neurologia se recusam à psicanálise. Bom, a questão do progresso só existe na ciência. Na psicanálise, não é a mesma coisa, não existe um progresso: existem transformações, críticas internas, mas é um movimento autônomo.
A psicanálise está no campo da filosofia. Então, esse debate com neurocientistas é uma bobagem. Eu já debati muito com adeptos da questão do cérebro, e nós realmente não temos nada a nos dizer.
Quando o psicanalista tenta se introduzir nesse tipo de debate, o debate é estéril, pois não estamos falando do mesmo inconsciente. Mas eu sei que é um debate contemporâneo. Há 30 anos, o que se discutia era se a psicanálise era compatível com o Marxismo...
Como vê o fato de as tecnologias estarem absorvendo tanto da energia e das atenções das pessoas no nosso tempo? Existe até um neologismo para falar da nossa obsessão em aparecer nas mídias sociais: midiopatia.
Elisabeth Roudinesco: Bom, é melhor isso do que usar drogas. Eu acho isso muito bom. Os efeitos perversos e negativos são justamente que as informações não são confiáveis, às vezes são delírios, mas o fato de estar conectado é melhor do que ser alcoólatra ou toxicômano. Eu sou conectada, todos nós somos. Claro que existem excessos, exageros, mas isso vai acabar passando. Mas eu acho que não há volta, vai ser preciso se adaptar a isso
Élisabeth Roudinesco
Psicanalista francesa