Postado em out. de 2022
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"A luta para combater a discriminação é social, e não identitária"
Pesquisadora da história da psicanálise, premiada biógrafa de Freud e Lacan, a psicanalista francesa fará conferência, nesta semana, no Fronteiras do Pensamento.
Élisabeth Roudinesco, psicanalista francesa, concedeu uma entrevista exclusiva à jornalista Leticia Paludo do Jornal Zero Hora, a qual reproduzimos a seguir. Os assinantes da Temporada 2022 poderão conferir a sua conferência, nos dias 17 de outubro, em São Paulo, no Teatro Claro, e no dia 19 de outubro, em Porto Alegre, na Casa da Ospa. Além de assisti-la pela plataforma on-line. Para quem ainda não garantiu o seu ingresso, ainda dá tempo de aproveitar as 12 conferências de forma on-line. É só acessar o site.
Com 78 anos, a psicanalista francesa é considerada a mais importante historiadora da psicanálise: é quem assina as premiadas biografias de Jacques Lacan e Sigmund Freud e os dois volumes da História da Psicanálise na França. Nascida em Paris, é professora na École Normale Supérieure e também preside a Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psicanálise. Em Porto Alegre, já esteve em 2016 para participar do Fronteiras do Pensamento.
Nesta entrevista, concedida por chamada de vídeo, descreve nossos tempos como uma época de narcisismo e problematiza tentativas de sanar questões que afligem a mente através de mudanças no exterior. Também descreve hipóteses levantadas no seu mais recente e polêmico livro O Eu Soberano: Ensaio sobre as Derivas Identitárias, dentre elas a de que a busca pela autoafirmação transformou-se em uma hipertrofia do “eu”, em detrimento de interesses coletivos como o de tornar o mundo um lugar melhor.
O que é a “deriva identitária” sobre a qual a senhora fala em O Eu soberano? Como ela ocorreu e o que há de perigoso nesse movimento, no seu entender?
Falei sobre derivas identitárias pós-estruturalistas, ou seja, derivas em direção ao gênero e à raça. Elas partem de um desejo de emancipação da extrema esquerda que tem muito boas intenções, inspiradas em grandes autores como Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles Delleuze, Edward Said, Aimé César e em todo o contexto desta época pós-queda do muro de Berlim. Mas, ao invés de um grande compromisso com um mundo melhor orquestrado pela classe trabalhadora e pelas massas, o movimento concentrou-se mais nas minorias – o que é normal, visto que era preciso fazer com que os homossexuais não fossem mais penalizados, que os doentes mentais não fossem mais psiquiatrizados da mesma forma e que o feminismo avançasse. Desenvolvendo-se muito mais dentro dos campi universitários do que junto ao povo, essa deriva ocorre a partir do momento em que eles assumem terminologias raciais, assumem categorias que não são emancipatórias e substituem o sexo pelo gênero. Há uma substituição da busca da emancipação pela busca da afirmação identitária. Por muito tempo havia-se negligenciado o que chamamos de “gênero” em favor de um determinismo puramente anatômico, chamado “sexo”. Mas agora houve uma guinada no sentido de negar o sexo em detrimento do gênero. E isso acaba por reivindicar, novamente, categorias para tudo, categorias raciais, categorias comunitárias, as categorias dos cisgêneros, dos transgêneros, dos homossexuais. Nós dividimos o ser humano em fatias. E assim a evolução tornou-se, de certa forma, persecutória através da ideia de contestação das democracias ocidentais, que, por terem produzido o colonialismo, teriam um espírito sistematicamente racista e colonialista, apesar do anticolonialismo. Sim, as democracias ocidentais produziram o colonialismo, mas não é verdade, não está correto que tenham espírito racista. Temos leis que reprimem o racismo, a homofobia, a misoginia. Tivemos também movimentos anticolonialistas, não há como negar sua existência. Eu pertenço a uma família anticolonialista e quando me chamam de colonialista porque sou europeia, francesa, branca e assim por diante, não posso aceitar. Assim como não posso aceitar que movimentos mais radicais digam que, como sou branca, não consigo entender os negros. Não é por aí. O debate tornou-se violento e insultante.
O que fazer diante disso?
O que eu defendo é que um pensamento deve ser complexo. Um ser humano é constituído por várias facetas sociológicas, biológicas e psíquicas. Eu me oponho aos boicotes de conferências, à ideia de derrubar estátuas. Cabe ao Estado decidir isso. Devemos lutar contra o racismo e a homofobia existentes na sociedade civil, mas não acusar os países mais antigos de todas as infâmias. É óbvio que as populações negras, os emigrantes são os mais perseguidos e sofrem mais com as desigualdades, mas a luta para combater a discriminação é uma luta social, e não uma luta identitária. As teorias identitárias da extrema direita, de retorno ao nacionalismo, de racismo e de “grande substituição” eu também critico no final do livro. Mas o que mostro é que não são derivas, são a mesma coisa desde sempre. Enquanto o outro movimento é uma deriva que começa com uma boa intenção.
Nessa obra, a senhora trabalha a hipótese de que movimentos como o antirracismo, o feminismo, o anticolonialismo e os LGBTQIA+ “já não se perguntam como transformar o mundo para que ele seja melhor”. Pode, por favor, desenvolver esse raciocínio para os nossos leitores?
Esse é um problema porque, ao invés de transformar o mundo para torná-lo melhor, nos acomodamos na posição de vítima. Não queremos melhorar, queremos castigar, punir. Ok, não tenho nada contra, mas é preciso haver um limite. O movimento Me Too, por exemplo, foi muito bom ao denunciar casos de assédio, estupro e crimes que não haviam sido levados em conta. Mas não podemos sistematicamente substituir a Justiça sob o pretexto de nos sentirmos ofendidos. Acontecimentos recentes na França mostram que qualquer um pode acusar um homem, apenas porque ele é um homem, de ser um estuprador. Isso atrapalha a luta. É preciso limites.
Houve uma guinada no sentido de negar o sexo em detrimento do gênero. E isso acaba por reivindicar categorias para tudo, raciais, comunitárias. Nós dividimos o ser humano em fatias. E assim a evolução tornou-se persecutória através da ideia de contestação das democracias ocidentais, que teriam espírito racista e colonialista. Sim, elas produziram o colonialismo, mas não é verdade que tenham espírito racista.
Também em O Eu soberano a senhora tensiona a questão da autorização de tratamento hormonal para transição de gênero por adolescentes. Pode, por favor, explicar sua visão sobre o tema?
Sou hostil às intervenções cirúrgicas para redesignação de sexo e para ablação de seios em menores de 18 anos porque são operações irreversíveis. Se eles mudarem de ideia depois, não há o que fazer. Na França não fazemos, e no Brasil também não se faz. No caso dos tratamentos hormonais para os menores de idade sim, fazemos, mas muito pouco. São feitos tratamentos de bloqueio da puberdade por volta dos 15 ou 13 anos, mas não é frequente, e médicos com quem me reuni afirmam que só fazem quando há risco de suicídio. Já eu penso que é preciso criar um regramento que diga aos médicos a partir de que idade é possível começar os procedimentos corporais. Agora, podemos sim permitir que crianças e adolescentes mudem seu nome ou se vistam com roupas do sexo oposto? Quanto a isso não tenho nada contra. Não raramente, no entanto, são crianças que estão perturbadas e que na verdade estão lidando com um outro tipo de questão. Lembro aqui que nós fechamos uma instituição que praticava muito precocemente os tratamentos hormonais e as operações nos seios, após reclamações de mil famílias que relatavam que seus filhos haviam se arrependido. Eles eram pacientes psiquiátricos, e não pacientes médicos. Acredito que podemos aceitar que o jovem se vista de outra forma, use um nome diferente, são coisas que não mexem no corpo. De resto acho que temos que esperar, ouvi-los, cuidar deles, tratá-los se forem casos psiquiátricos. E precisamos introduzir leis e refletir sobre as regras: o que fazer com os adolescentes? Obviamente, isso concerne à psicanálise. Quanto à homossexualidade, que pode se mostrar desde cedo, não há qualquer problema. Não há cirurgia para se tornar homossexual. Basicamente, há um problema hoje que é a intervenção no corpo para resolver problemas psíquicos. E isso está historicamente ligado a todos os avanços da cirurgia plástica, que vocês conhecem bem no Brasil. Nós estamos em uma era, e isso vai bem ao encontro das derivas identitárias, em que nos preocupamos apenas com o corpo. E acredito que o declínio da cura pela fala e da psicanálise está ligado à importância que atribuímos cada vez mais ao corpo e à nutrição. Existe uma ideia de que vamos nos curar apenas através do corpo.
Em sua conferência anterior no Fronteiras do Pensamento, em 2016, a senhora mencionou que a neurose de hoje em dia não é a mesma dos tempos de Freud. Qual é a diferença? Em 2022, estamos vivendo um momento de mais transtornos psíquicos?
A grande diferença é que no final do século 19 havia epidemias de histeria, como a chamavam, ou seja, mulheres que expressavam sua revolta por meio de doenças mentais. Falava-se de mulheres histéricas em todos os domínios da sociedade, seja entre as mulheres do povo, das quais se ocupava Charcot no hospital e asilo Salpêtrière, seja entre as mulheres da burguesia de Viena, das quais se ocupava Freud. Os distúrbios histéricos estavam ligados a um movimento de liberação de uma sociedade de opressão e privação, em que os corpos femininos eram apertados em espartilhos e a mulher não tinha direito a ter relações sexuais, algo que Freud denunciou muito bem. Eu diria que hoje em dia, desde os anos 1960, o problema são os transtornos narcisistas. A partir daquela década nos tornamos muito mais livres do ponto de vista individual, e hoje em dia, graças ao feminismo, as mulheres trabalham, se vestem como querem, se divorciam. Mas percebeu-se que, mesmo assim, todo mundo continua igualmente neurótico. O que quer dizer que, a partir do momento em que nos libertamos de fato dos distúrbios histéricos, a histeria se tornou uma pequena neurose, sendo substituída por distúrbios narcisistas, que são os conflitos entre si mesmo e a imagem de si mesmo. São transtornos desse tipo que dominam hoje em dia, e é por isso que vemos por aí essa vontade de dominar o corpo e de mudar o psiquismo através das intervenções físicas e cirúrgicas, algo que é realmente problemático. Os transtornos narcisistas foram detectados nas décadas de 1960 e 1970. São definidos por vários grandes psicanalistas como transtornos de identidade, e não transtornos relacionados ao estado da sociedade. São resultado da queda dos ideais coletivos e também de toda a reflexão acerca da diferença entre os sexos, que atualmente está sendo negada. É fato que vivemos uma época inacreditável. E ela é tão inacreditável que a metade do mundo é governada por ditadores, inclusive países democráticos, como o Brasil. São figuras que atacam logo de cara a destruição da família, os homossexuais, os transgêneros e acusam o Ocidente de ter ideias frouxas. Não podemos nutrir isso. Em essência, é essa a minha tese. O maior perigo é o fascismo, quando não temos mais comprometimento com o coletivo.
Também no Fronteiras do Pensamento a senhora disse que a demanda da sociedade contemporânea por rapidez vai na contramão do tempo necessário para o desenvolvimento de um processo de psicanálise. A senhora acredita que a psicanálise como a conhecemos e nas bases que tem atualmente está em perigo?
Sim, a psicanálise está em perigo no mundo todo, mas está menos em risco no Brasil. Vocês estão na vanguarda, pois os seus departamentos de Psicologia das universidades permanecem tendo orientação psicanalítica. E também pelo fato de que, no Brasil, os psicanalistas não rejeitaram de forma dogmática todas as outras psicoterapias. Sou bem liberal nesse sentido, acredito que todas as psicoterapias devem se desenvolver desde que não explorem os pacientes. Não é assim na França, onde psicanalistas e psicoterapeutas são muito hostis entre si. E, durante muito tempo, os psicanalistas franceses foram reacionários, se posicionando inclusive contra o casamento gay, algo que eu denunciei. Atualmente temos psicanalistas extremamente reacionários, extremistas de direita, e outros psicanalistas de esquerda, extremistas de gênero. A psicanálise está em perigo na Europa porque, ao contrário do que está acontecendo no Brasil, os psicanalistas não querem mudá-la há 30 anos. E é evidente que temos de mudá-la. É preciso parar com as sessões muito curtas, ser humanista, parar com os silêncios muito longos, conversar mais com os pacientes. Temos de mudar todas essas situações, algo que é feito muito mais no Brasil e na Argentina do que na Europa. Na América Latina há um futuro de defesa da psicanálise. Por outro lado, embora esteja em perigo, ela nunca vai desaparecer. O que acontece é que volta a ser uma terapia para os ricos. Isso porque foi expulsa dos departamentos de Psiquiatria na França em favor dos medicamentos, da bioquímica. Apenas 20% dos serviços psiquiátricos ainda praticam a psicanálise. E há também o fato de que os psicólogos ganham muito menos que os médicos, trabalham em instituições por salários muito baixos e, portanto, são forçados a fazer qualquer coisa que não a psicanálise. Dessa forma, os psicanalistas que sobram terão, cada vez mais, uma clientela privada e que pode pagar. Na França, são os grandes burgueses, as figuras do show business, os atores e as pessoas da televisão que estão em análise, sinal de que a psicanálise volta a ser como era em Viena, ao passo que a psicoterapia institucional e humanista colapsa.
Em entrevista à uma revista brasileira neste ano, a senhora mencionou que os psicanalistas se tornaram trabalhadores da saúde mental, “mais psicólogos e menos intelectuais”. Há um problema nisso?
Se eles não são mais intelectuais, aí tudo se acabou. Porque os estudos não são os mesmos, os psicólogos são centrados na clínica. No passado, os estudos pressupunham uma formação literária e filosófica. Essa cultura se perdeu no presente mesmo na psiquiatria. Tanto é que, ao menos no que diz respeito à França, você pode ver que os trabalhos históricos sobre a psicanálise agora são feitos principalmente por sociólogos ou historiadores, e não tanto por psicanalistas.
Que dificuldades a senhora enfrentou para escrever a grande biografia de Freud?
Eu tive que escrevê-la. É a primeira e única biografia de Freud feita por um francês até o momento. Eu tinha uma historiografia enorme diante de mim, portanto precisava fazer uma escolha historiográfica que não repetisse as outras biografias. Eu diria que fiz um Freud mais imerso na tradição de Viena do que outros biógrafos. Fiz um Freud mais sombrio, dividido entre luz e sombra. E escolhi temas respeitando a cronologia, de modo que temos um Freud em sua casa, um em sua vida privada, em conflito com seu tempo, um Freud que lidera um movimento, um Freud doente e um que é confrontado pelo o nazismo e a destruição. Obviamente eu amo muito o meu Freud. Tornei-o mais humano, mais contraditório.
E porque esse título, Na sua Época e em Nosso Tempo?
Ah, é um belo título! Fala de quem ele foi em seu tempo, isto é, na história, e como ele é no nosso. No nosso, ele se tornou um dos maiores pensadores do mundo, traduzido em todo o planeta, inclusive em países nos quais não há psicanálise. E acredito que as guerras anti-Freud o beneficiaram, porque ele agora aparece como um grande homem de cultura e um grande pensador em todo o mundo. E eu contribuí para isso, já que minha biografia está traduzida em 22 idiomas. Isso, aliás, é uma loucura.
Élisabeth Roudinesco
Psicanalista francesa