Postado em jul. de 2015
Sociedade | Filosofia | Internet e Redes Sociais
Michel Maffesoli e o Homo eroticus pós-moderno: "Voltamos ao que o racionalismo moderno eliminou"
Do ‘homo economicus’ para o ‘homo eroticus’. Maffesoli fala sobre o retorno ao espírito de comunidade que, para ele, caracteriza a sociedade de hoje - e que a modernidade havia esquecido.
"Graças à web, às redes comunitárias, aos fóruns de discussão e outros blogs, acessamos não mais "um outro mundo", mas sim "um mundo outro". Isto é, um mundo que faz parte das dimensões que o racionalismo moderno deixara de lado. Falo de tudo o que diz respeito à dimensão lúdica, onírica, imaginária da existência."
Dominado pelas imagens, pela velocidade e pela fluidez do instantâneo, que se sintetizam no império da internet, o mundo contemporâneo parece pulverizar a noção de sujeito. Não é, contudo, o que pensa o filósofo francês Michel Maffesoli. Em vez de pensar em avanço ou, ao contrário, em retrocesso, Maffesoli prefere falar de um mundo que se desenrola em formato de espiral. Em meio às novas tribos do século XXI, que se agregam em torno das redes comunitárias, aspectos arcaicos - desprezados ao longo de quatro séculos de racionalismo - retornam com toda a força e em outro nível: "... Ao longo de todo o século XIX e de boa parte do século XX a técnica se empregava, essencialmente, para racionalizar a vida social e eliminar tudo o que pudesse ser da ordem do emocional, do afetivo e das paixões. Hoje, ao contrário, essa mesma técnica promove o retorno dos afetos."
Este retorno ao espírito de comunidade é objeto do mais recente livro de Maffesoli, Homo eroticus - comunhões emocionais e da entrevista abaixo, concedida à revista Valor. Confira:
O mundo contemporâneo parece se definir pela morte do sujeito. Os meninos que passam horas a fio nas LAN houses não carregam mais fantasias dentro de si. E nem precisam delas: as fantasias lhe são fornecidas pelas máquinas. Parecem hipnotizados e vazios. Como você avalia esse novo cenário?
Michel Maffesoli: A grande mudança que vivemos hoje é a passagem do indivíduo para a comunidade. Já Heidegger nos falou da transformação da sociedade do Eu na sociedade do Nós. É preciso não se deixar cegar pelo que seriam as novidades de nossa situação. Reconhecer com humildade que é próprio da espécie animal - nossa espécie - relacionar-se sempre com a técnica. É isso que marca essencialmente nossa especificidade, nossa singularidade. A relação com a técnica contemporânea não tem nada de novo. Isso mostra, porém, que em certos momentos, justamente por causa do desenvolvimento da tecnologia, as imagens e a imaginação agora retornam. Voltamos ao que o racionalismo moderno eliminou. Não existe nesse retorno, contudo, uma "eliminação da alma". Ao contrário, surge uma "alma multiplicada", que eu chamo de "organismo místico". Convém evitar, em face da irrupção dos novos meios de comunicação interativos, uma posição totalmente crítica. O melhor é acompanhar o processo que se desenrola, com o objetivo de que ele dê o melhor de si mesmo.
Com a expansão da internet, estamos todos em "outro mundo", que parece irreversível e contra o qual não adianta lutar. Daí o clima depressivo que envolve as gerações mais maduras. Contudo, em "O Tempo Retorna", você aponta uma surpreende conexão entre o arcaico e o futuro. Você não vê motivo para o pessimismo, mas, ao contrário, para o otimismo. Pode explicar isso melhor?
Michel Maffesoli: Creio que a pós-modernidade se caracteriza pela "sinergia" do arcaico e do desenvolvimento tecnológico. As tribos pós-modernas florescem, justamente, graças à expansão da internet e da tecnologia. Trata-se, em efeito, de um paradoxo, pois ao longo de todo o século XIX e de boa parte do século XX a técnica se empregava, essencialmente, para racionalizar a vida social e eliminar tudo o que pudesse ser da ordem do emocional, do afetivo e das paixões. Hoje, ao contrário, essa mesma técnica promove o retorno dos afetos. É o que desenvolvo, também, no meu livro que acaba de sair na França, Homo eroticus - as comunhões emocionais. Graças à web, às redes comunitárias, aos fóruns de discussão e outros blogs, acessamos não mais "um outro mundo", mas sim "um mundo outro". Isto é, um mundo que faz parte das dimensões que o racionalismo moderno deixara de lado. Falo de tudo o que diz respeito à dimensão lúdica, onírica, imaginária da existência. É essa ligação entre o "arcaísmo" e o desenvolvimento tecnológico que me leva a não compartilhar o pessimismo que se dissemina entre as elites sociais. Existe hoje, em particular entre as jovens gerações, uma inegável vitalidade, que se exprime em novas formas de solidariedade e de generosidade. A web favorece antigas formas de hospitalidade, que foram a marca das sociedades pré-modernas. Desse ponto de vista, sim, sou um otimista.
Parece que, agora, a própria noção de humano deve ser repensada. Precisamos abdicar de nossa antiga visão a respeito do homem porque, com o acelerado avanço técnico, ele já é outro. Quem é esse novo homem que acaba de nascer? Ainda haveria uma "alma" (um "sujeito") dentro dele?
Michel Maffesoli: Creio que devemos evitar o falso debate entre o racional e o irracional. Inspiro-me na posição de Max Weber, segundo a qual o não racional é não irracional, mas tem racionalidade própria. Recordo, ainda, uma ideia do economista italiano V. Pareto, segundo a qual o não lógico não é igual ao ilógico, mas tem lógica própria. É, além disso, a lição que podemos guardar de um antropólogo muito conhecido no Brasil, meu mestre e amigo Gilbert Durand, que tem sempre insistido no fato de que o imaginário não se opõe à razão. Uma das características mais importantes do pós-modernismo é a ligação entre razão e sentido. Retornamos, assim, a uma concepção do mundo mais "holística", na qual existe uma interação entre o material e o espiritual. Chamo tal sinergia de "ecosofia". Ela nos obriga a ultrapassar a noção de sujeito para considerar a de comunidade. E nos força, ainda, a alargar nossa visão do humano. Podemos, hoje, falar de um "humanismo integral", isto é, de um humanismo que integra os diversos elementos de sentido que, até agora, eliminamos.
Que novas ideias a respeito da sociedade podemos vislumbrar? Que nova noção de "social" começa a nascer?
Michel Maffesoli: O que está em jogo não é simplesmente o "social", mas o que eu chamo "o societal", pois remete a uma concepção muito mais larga do humano. A sociedade de hoje nos força a repensar as categorias que eliminamos a partir do cartesianismo do século XVII, da filosofia das Luzes do século XVIII e dos sistemas sociais do século XIX. Neles, o indivíduo era valorizado como uma entidade autossuficiente e independente. Hoje, observamos o retorno de formas que imaginávamos ultrapassadas, como o nomadismo, o tribalismo e o hedonismo. É o que está em jogo no Facebook, no Myspace e nos blogs: uma nova inteligência coletiva. Nesse sentido, podemos retomar a intuição profética de Teilhard de Chardin, quando nos falou da "noosfera" [esfera do pensamento ou do espírito]. A internet é certamente a noosfera pós-moderna.
Você afirma que vivemos em um mundo "reencantado", no qual a realidade (agora uma "super-realidade") ultrapassa a ficção da teoria racionalista. Não haveria nessa "super-realidade", porém, uma nova ficção?
Michel Maffesoli: Uma das teses de Max Weber em relação ao surgimento da modernidade é a de que ela nos conduziu a uma "racionalização generalizada da existência", o que corresponde ao que chamo de "desencantamento do mundo". Ao priorizar o racionalismo, o desenvolvimento tecnológico e a sociedade industrial nos conduziram à assepsia social. O que nos levou a um isolamento exacerbado e à solidão. Hoje assistimos, porém, a esse movimento contrário de "reencantamento do mundo". Trata-se de uma evolução que nos força a não mais reduzir a "realidade" a uma dimensão puramente econômica e funcional. Mas nos conduz, ao contrário, a um real muito mais largo e a uma concepção muito mais integral da pessoa humana, e não mais do indivíduo. A pessoa - "persona" - tem hoje muitas máscaras à disposição. O real é muito mais rico do que a simples realidade.
Você nos diz que a proliferação de imagens nos leva a um "mundo do meio", que se situa entre o microcosmo pessoal e o macrocosmo coletivo. Esse novo mundo intermediário agiria como um instrumento de ligação e não de afastamento. Não pode haver aí, no entanto, um retrocesso - ainda que calcado em um extraordinário progresso tecnológico?
Michel Maffesoli: A imagem pode ser, de fato, um "mesocosmo", isto é, um meio entre o "microcosmo" pessoal e o "macrocosmo" coletivo. Basta ver o papel que desempenham os videogames, a publicidade, as imagens eletrônicas etc., para se dar conta de que não podemos ter uma visão simplesmente racionalista do mundo. À semelhança das tribos tradicionais, as tribos pós-modernas se encontram ao redor de seus totens e se comunicam através deles. Enquanto a razão privilegiava o que é íntimo, o retorno da imagem nos leva a compartilhar o emocional. Não sei se é o caso de pensar em um avanço ou em uma regressão. Parece-me que o que está em jogo pode ser representado pela metáfora da espiral: o retorno das coisas antigas em outro nível.
A internet teria produzido uma nova concepção de laço social? Que novo modelo de sociedade está surgindo?
Michel Maffesoli: Nas sociedades pré-modernas, prevaleciam as histórias particulares ou "crônicas locais". Hoje vivemos o retorno dessas histórias locais, que agora contam com a ajuda do desenvolvimento tecnológico. Estamos no coração do que chamo de "tempo das tribos". Assim como o desencantamento do mundo conduziu à solidão, o Facebook, o Second Life etc., para o melhor e para o pior, recuperaram o "ideal comunitário". Há nesse desenvolvimento tecnológico outra maneira de viver o laço social ou, como acho mais adequado dizer, o "laço societal". Isto é, chegamos a uma sociedade que enfatiza a relação com o outro. E isso nos obriga a mudar nossa maneira de analisar a sociedade. Não é mais o caso de ser otimista ou de ser pessimista, mas de observar o mundo tal qual ele é.
Assista a Michel Maffesoli no Fronteiras do Pensamento: A modernidade, a ordem e o caos
Michel Maffesoli
Sociólogo