Postado em dez. de 2017
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21 ideias: Mario Vargas Llosa e a utopia da sociedade perfeita
Mario Vargas Llosa conta a trajetória de um intelectual que abandona as utopias e adere às infinitas possibilidades das sociedades democráticas.
Em 1971, ocorreu em Cuba o famoso Caso Padilla, em que o poeta Heberto Padilla, sob pressão das autoridades, fez execrável mea culpa, declarando-se responsável por traição aos ideais socialistas e denunciando vários outros colegas de escrita como inimigos da Revolução.
Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes e muitos nomes de peso da então esquerda internacional não comunista redigiram uma carta pública em que alertavam para a crescente stalinização do processo cultural cubano. A resposta dos dirigentes foi implacável. Verdade que muitos se mantiveram fiéis ao pensamento único imperante na ilha caribenha: Cortázar e García Márquez, por exemplo, suportaram o enxovalhamento a que Fidel os submetera. Mas Vargas Llosa — sobre o qual recairia a maior fúria dos líderes cubanos — enfrentou em silêncio a terrível orfandade dos crentes que perdem sua ilusão religiosa.
Só aos poucos aceitou o vazio do desencanto e, na segunda metade dos anos 1970, aproximou-se dos pensadores liberais que celebravam a democracia e reconheciam a autonomia da consciência individual em oposição ao totalitarismo, fosse o de esquerda ou o de direita.
Essa trajetória de um intelectual que abandona a estreiteza utópica e adere às infinitas possibilidades das sociedades abertas é resumida pelo próprio Vargas Llosa no trecho a seguir de sua conferência no Fronteiras do Pensamento, verdadeira síntese do liberalismo e de alguns de seus mais importantes expoentes.*
As grandes ideias propostas no palco do Fronteiras podem ser lidas na obra 21 ideias do Fronteiras do Pensamento para compreender o mundo atual. O livro reúne o que há de melhor para compreender as mentes contemporâneas: textos de especialistas brasileiros explicam o pensamento dos conferencistas, seguidos da fala dos convidados, em excertos escolhidos como representativos das ideias que os colocaram como referências do nosso tempo.
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Foi uma etapa importante da minha vida: o reconhecimento da democracia, aceitar que a democracia não era a máscara da exploração, como eu tinha acreditado e como acreditavam os socialistas latino-americanos da época.
A democracia partia do pressuposto de que não se podia criar o paraíso nesta terra em termos sociais, de que a perfeição não era deste mundo, mas, sim, de que era possível criar sociedades aperfeiçoáveis, sociedades capazes de reconhecer seus erros, de corrigi-los, de refazer o caminho se o caminho estivesse equivocado, de encaminhar a sociedade para outra direção. Sobretudo, a democracia permitia a coexistência na diversidade e era a melhor maneira de atacar a violência que havia acompanhado a história humana, como uma sombra, desde o princípio da história até o presente.
A etapa seguinte da minha formação política ocorreu quando eu estava morando na Inglaterra e comecei a ler os grandes pensadores liberais. O primeiro deles foi Isaiah Berlin.
Ao contrário do que se pensa, sobretudo na América Latina, onde há uma grande caricaturização do pensamento liberal, considerado um pensamento reduzido exclusivamente à liberdade dos mercados, Isaiah Berlin mostra que não, que o liberalismo consiste fundamentalmente em ideias e valores. Que a liberdade é algo indivisível, que a liberdade não pode ser aplicada no campo econômico sem ser aplicada no campo político, que precisa ser algo que opere simultaneamente no campo político, no campo econômico, no campo cultural, no campo social, no campo individual, e que o verdadeiro progresso é ter cada vez mais opções para escolher entre diferentes possibilidades em todos os campos da vida humana, e que esse é o verdadeiro progresso, e que isso é o que representa, fundamentalmente, a ideia liberal.
Talvez depois de Isaiah Berlin, entre os escritores liberais que li, devo citar Karl Popper. Popper escreve um livro — e creio que é um dos livros mais importantes do século 20 — chamado A sociedade aberta e seus inimigos. Assim como Isaiah Berlin, ele faz um esforço de compreensão sobre as origens do fenômeno do nazismo. Dedica muitos anos a escrever esse livro seminal. Faz com que o pensamento totalitário parta de Platão, considerado o maior filósofo de seu tempo e fonte, digamos, de boa parte do que é o pensamento filosófico ocidental.
Karl Popper afirma: na República, Platão tratou de organizar a sociedade perfeita, praticamente eliminando, assim, a liberdade. Nessa sociedade perfeita, cada indivíduo terá uma função determinada para que tudo funcione de uma maneira absolutamente regulada, garantindo não somente a existência material e o bem-estar, como também a educação e a formação do cidadão. Ele diz: essa ideia, que está por trás do anseio de trazer o paraíso à terra, só pode se materializar através de uma violência monstruosa.
Por quê? Porque nós, seres humanos, não somos iguais. Aquilo que causa felicidade a um ser humano pode causar sofrimento a outro. Aquilo que causa bem-estar a um ser humano pode ser visto por outro com grande repugnância. Assim, querer estabelecer uma espécie de norma válida para todos, da mesma maneira, significa introduzir uma violência, uma coerção espantosa numa sociedade onde o que existe é uma extraordinária diversidade no modo de ser, no modo de viver, no modo de pensar, no modo de entender a beleza, de entender as relações humanas. E ele mostra como todas as filosofias que trataram de organizar a vida do berço ao túmulo são filosofias, são ideologias que criaram os piores infernos da história da humanidade.
*Texto por Sergius Gonzaga
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Mario Vargas Llosa
Escritor