Postado em ago. de 2021
Literatura | Cultura | Mulheres Inspiradoras
De filme esquecido a série de sucesso, a escalada “O Conto da Aia” ao topo da cultura pop
“The Handmaid’s Tale”, série de televisão inspirada na obra de Margaret Atwood, virou um fenômeno cultural por despertar em sua fantasia distópica inquietações do mundo real.
Por Marcelo Perrone*
Quase ninguém sabe que o livro O Conto da Aia ganhou uma versão para o cinema, que pouca gente viu. Este filme esquecido caiu nas sombras logo após o seu lançamento e só recomeçou a ver a luz 27 anos depois, no embalo do sucesso de uma nova adaptação da obra mais popular de Margaret Atwood, a série “The Handmaid’s Tale”, conhecida no Brasil por seu título original. A escritora canadense é uma das personalidades que subiu ao palco da Temporada 2021 do Fronteiras do Pensamento.
Não se tem registro da passagem pelos cinemas brasileiros do longa-metragem de 1990, que recebeu aqui um nome melodramático: “A Decadência de uma Espécie”. Quem assim o batizou ou desconhecia que o livro lançado em 1985 tinha uma edição nacional, de 1987, pela Marco Zero, como “A História da Aia”, ou fez a escolha convicto de que “A Decadência de uma Espécie” poderia ser mais sedutor do que a tradução fidedigna.
“The Handmaid’s Tale”, a série, estreou em 2017 sob imediata aclamação de público e crítica. Já soma mais de 70 prêmios, entre eles 15 Emmy, o mais prestigiado troféu da televisão nos Estados Unidos. A quarta temporada chegou ao fim em junho de 2021 e a quinta já está confirmada. Além de seus méritos artísticos, a produção consagrou-se como fenômeno cultural ao sintonizar o espírito de seu tempo, espelhando em sua fantasia distópica inquietações do mundo real. Exemplo típico de zeitgeist.
“A Decadência de uma Espécie”, o filme, ganhou première mundial no Festival de Berlim de 1990, onde chegou levado por um time de craques. Volker Schlöndorff, diretor alemão, tinha no currículo a Palma de Ouro do Festival de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro com “O Tambor” (1979). Robert Duvall e Faye Dunaway, nomes conhecidos de Hollywood, despontavam no elenco. Harold Pinter, dramaturgo britânico com carreira no cinema adaptando suas peças e textos de outros autores, assinava o roteiro. Ryuichi Sakamoto, compositor japonês vencedor do Oscar com “O Último Imperador'' (1987), assumia os créditos da trilha sonora.
Recepção sem entusiasmo da crítica e falta de interesse de distribuidores, porém, condenaram “A Decadência de uma Espécie” a circular discretamente nos cinemas de poucos países. Recuperou menos da metade do seu orçamento de US$ 13 milhões e logo selou seu destino nas prateleiras das videolocadoras e nos horários ingratos da televisão por assinatura. Entender o porquê do fracasso do filme envolve observá-lo como um projeto que dificilmente teria como vingar à época, mesmo se fosse uma boa produção. Seu produtor, o norte-americano Daniel Wilson, comprou de Atwood os direitos de adaptação para o cinema, em 1986. E logo viu que os estúdios não estavam receptivos a uma trama que projetava os EUA de um futuro próximo como uma violenta teocracia, com as mulheres no andar de baixo da sociedade cumprindo papéis de esposas recatadas, serviçais e escravas sexuais.
Este lugar é Gilead, república que emergiu de uma generosa porção dos EUA após um golpe de Estado. A nova ordem é um regime fundamentalista cristão militarizado e guiado por textos do Velho Testamento. Fanáticos religiosos e belicosos, os novos donos de poder se veem na missão purificadora de restaurar para o cidadão de bem a ordem e os bons costumes perdidos na tolerância da democracia. Gilead é também uma sociedade estéril. As poucas mulheres que ainda podem gerar filhos, denominadas aias, são destinadas a procriar descendentes para os governantes. Para isso, são submetidas a estupros conduzidos como rituais. Insubordinação à nova ordem resulta em execuções públicas sumárias. Esta é a nova vida da jovem protagonista da trama, após ter a fuga com o marido e a filha barrada na fronteira. Com a missão de gerar o herdeiro do personagem chamado Comandante, a garota ganha o nome de Offred (no filme ela se chama Kate, na série virou June e no livro a sua identidade pregressa não existe).
VOLTA POR CIMA
Wilson passou um bom tempo batendo em portas e ouvindo que seu filme era “sobre e para mulheres”. Essa rejeição refletia a força da narrativa de Atwood, que iluminava naqueles meados dos anos 1980 questões sobre o feminismo arrefecidas após os grandes avanços de décadas anteriores. E também renovava o alerta sobre os falsos moralistas afeitos a regimes de exceção a partir de uma leitura enviesada de textos sagrados, inspiração que Atwood buscou tanto no puritanismo secular dos EUA quanto na então recente revolução islâmica no Irã.
Agrupando produtores independentes, Wilson realizou “A Decadência de uma Espécie” vencendo uma série de contratempos. O diretor seria o checo Karel Reisz, que deixou a cadeira para Schlöndorff. Escolher a atriz que viveria Offred foi uma gincana, pois o papel era visto como de risco por agentes e estrelas de maior brilho. Jodie Foster e Sigourney Weaver disseram não. Ofrred acabou com Natasha Richardson, sem nada muito relevante no currículo até então. Robert Duvall e Faye Dunaway deram vida ao casal Comandante e Serena. As dificuldades de realização talvez justifiquem “A Decadência de uma Espécie” não ser um bom filme. O roteiro de Pinter apresenta uma trama que não envolve o espectador com o drama e o suspense sugeridos no texto de Atwood. A Schlöndorff pode ser creditado um certo desconforto do elenco principal, com Natasha acusando a falta de maior estofo dramatúrgico para representar uma personagem complexa como Offred.
“The Handmaid’s Tale” encontrou outro cenário em 2017. A nova era de ouro das produções de prestígio na TV, a partir dos anos 2000, patrocinada por canais pagos abertos à ousadia e não tão dependentes de índices de audiência, espraiou-se nas hoje onipresentes plataformas de streaming. E a feroz disputa por bom conteúdo acabou recompensando Wilson, que havia ficado com 50% dos direitos da adaptação do livro. A outra metade acabou nas mãos do estúdio MGM, que o procurou para levantar outra vez o projeto. As portas, desta vez, abriram-se, e a série acabou se tornando o grande trunfo da então pouco conhecida plataforma Hulu.
O maior tempo para desenvolver a narrativa (o livro está basicamente contemplado na primeira temporada), a produção esmerada e a excepcional performance da atriz Elisabeth Moss como Offred são qualidades visíveis da adaptação. Quando se fala em capturar o espírito de seu tempo, é porque “The Handmaid’s Tale” estreou no exato instante de uma combustão política e comportamental, em abril de 2017, três meses depois de Donald Trump assumir a presidência dos EUA sustentado por um discurso truculento e ufanista que encantou uma base de eleitores conservadores. Naquele mesmo ano começou a ganhar repercussão, com epicentro na indústria cinematográfica, o movimento #metoo, que denunciava casos de abuso sexual contra mulheres. Neste caldeirão, em que ferveu as novas demandas do feminismo e da luta pela igualdade de gênero, e também o alerta contra governos inclinados a cercear liberdades individuais, “The Handmaid’s Tale” foi um ingrediente catalisador para aquecer corações e mentes.
Engajada na produção da série como consultora e roteirista, Atwood viu “O Conto da Aia” (editora Rocco, responsável pela obra da autora no Brasil) virar um best-seller mundial. O interesse por novas adaptações de seus livros, que vem desde 1981, é crescente. A Netflix estreou ainda em 2017 a minissérie “Alias Grace”, a partir do romance “Vulgo Grace”, de 1996. Lançado em 2019, “Os Testamentos”, romance que dá sequência a “O Conto da Aia”, teve os direitos comprados pela plataforma Hulu e lançou a expectativa de uma nova série. Mas, por enquanto, a nova trama, que se passa 15 anos à frente no tempo, terá alguns elementos incorporados nas próximas temporadas de “The Handmaid’s Tale”. A linha de produção da indústria audiovisual está sendo reprogramada em razão das paralisações impostas pela pandemia. No horizonte da Hulu está ainda a adaptação da trilogia apocalíptica encerrada com Maddadão, em 2013, muito estimada pelos fãs de Margaret Atwood. Mais detalhes, a própria autora, quem sabe, pode revelar em sua conferência no Fronteiras do Pensamento, no dia 27 de outubro.
*Marcelo Perrone é jornalista e editor de conteúdo do Fronteiras do Pensamento
Margaret Atwood
Escritora