Postado em jul. de 2013
História | Sociedade
Tzvetan Todorov e as três ondas do messianismo político
É suficiente dizer liberdade para que estejamos todos de acordo? Não sabemos nós que os tiranos do passado também se diziam partidários da liberdade?, questiona o filósofo franco-búlgaro Tzvetan Todorov
“É suficiente dizer 'liberdade' pra que estejamos todos de acordo? Não sabemos nós que os tiranos do passado também se diziam partidários da liberdade?"
Filósofo e linguista franco-búlgaro, Tzvetan Todorov veio ao Fronteiras do Pensamento para apresentar um tecido que permeia a história da civilização ocidental: o messianismo político, as “perigosas" esperanças ilusórias de construir um mundo livre em que a humanidade terá equilíbrio total e viverá a boa vida universalmente. Para Todorov, já na origem da cultura grega antiga e no cristianismo primitivo do século V, a percepção da história se dividiu, quando um debate teológico colocou duas teses em choque: a de Santo Agostinho, que pregava a salvação pela submissão aos preceitos da Igreja, e a do monge Pelágio, que defendia a salvação como resultado dos próprios esforços.
Entre o século V e o XVIII, as ambições de Pelágio foram consideradas heresias e Agostinho acabou prevalecendo. Com o Iluminismo, tornou-se possível expressar publicamente a preferência pelo pensamento de Pelágio, mas, com isso, os homens passaram a se preocupar menos com o destino do indivíduo e mais com o destino da sociedade: menos moral e mais política. Assim, os debates eruditos entre teólogos e filósofos foram sendo substituídos, progressivamente, por atos políticos e discursos que interpelam os poderosos e a multidão.
As reivindicações de autonomia, que caracterizam o discurso de Pelágio, saíram das academias e tomaram as praças públicas: “o combate não é mais conduzido pelos letrados, mas por homens de ação. Foi assim que se passou das publicações confidenciais à Revolução Francesa"
Ao se deslocar do campo individual para o coletivo, se desligando da religião, o projeto de Pelágio se radicaliza: a vontade humana pode fazer reinar o bem e trazer a salvação a todos. Para a religião, esta felicidade se dá no céu após a morte, mas, para Pelágio, se produz aqui e agora. Assim, surgem os messianismos que prometem uma transformação radical e imediata do mundo. Ainda, a natureza dos objetivos dos homens se torna secular. O messiaspassa a ser um personagem coletivo, o povo, uma abstração que permite que certos indivíduos se apresentem como sua encarnação. A renúncia a todo sobrenatural “permite sonhar um mundo que se transforma de acordo com nossos desejos e reforça a vontade de agir. Daqui em diante, tudo é possível."
O que caracteriza o messianismo não é apenas conhecer o mundo e criticá-lo com o objetivo de melhorá-lo como um todo, isso é natural à espécie humana, argumenta Tzvetan Todorov. No messianismo, todos os aspectos da vida do povo estão envolvidos. “Não contente em modificar as instituições, ele pretende transformar o ser humano e, para fazê-lo, não se hesita a recorrer às armas. É o controle integral da sociedade".
Adeptos de Pelágio, os revolucionários franceses propõem que não haja limite algum à progressão infinita da humanidade. Aquele que comanda não pode ser frágil – deve querer e perpetuar o bem e tornar os homens aquilo que ele quer que sejam. As sociedades não têm obrigação de se submeter às tradições, apenas aos princípios da razão e da justiça.
“Para criar uma sociedade nova é preciso criar um homem novo." Os homens são considerados uma tábula rasa que pode caminhar para a perfeição. Novas leis são escritas: “a França revolucionária consumia constituições a um ritmo absurdo", esclarece Todorov, que elucida seu ponto com uma passagem do chefe revolucionário Saint-Just: “O legislador comandará no futuro. De nada nos vale o homem fraco, pois é ele que deve querer o bem e perpetuar este bem. É tarefa do legislador tornar os homens o que ele quer que eles sejam". Ou seja, explica Todorov, o homem é moldável é colocado nas mãos do legislador, da assembleia, dominada por alguns indivíduos.
Uma vez escrito “o bem", foi necessário perpetuá-lo. O uso da violência é legitimado. A revolução foi sucedida pelo terror, que não vem de circunstâncias fortuitas e sim da estrutura do projeto. “Como se trata do bem supremo, todos os caminhos seguidos são bons", esclarece Todorov ao elucidar que o revolucionário, ao impor o bem, se torna a encarnação do mal.
O próximo passo foi a conversão do meio em fim. O terror e as instituições do Estado absorvem todas as forças do poder. A guilhotina não pode ser detida. Os próprios Condorcet e Saint-Just se tornam vítimas do terror. “Mesmo sob os ideais da igualdade e da liberdade, o messianismo político seassemelha às origens religiosas. É um messianismo sem messias. Possui o objetivo equivalente de estabelecer o paraíso na Terra", argumenta Todorov. Outros pontos se equivalem, exemplifica: a fé cega e os dogmas, o fervor nos atos e a transformação de seus partidários ou fiéis, caídos no combate como mártires, “figuras a serem adoradas como santos".
A partir da exclamação de Saint-Just, “O povo francês vota a liberdade do mundo", Todorov critica: “A destruição do inimigo não é mais sequer um inconveniente, é um dever moral. A violência não é sequer camuflada, é sim reivindicada." Os revolucionários franceses se colocavam como a parte suprema da civilização e usavam todo tipo de terror para destruir a “barbárie africana" e a “ignorância do selvagem". É em nome da “igualdade" que os revolucionários desejam transformar a vida das populações. Essa “nobre" causa estimula os jovens a partirem para esta missão.
De acordo com Todorov, esse primeiro movimento de “conspiração dos iguais" é apenas uma antessala. Mesmo que esta conspiração tenha falhado, vários outros visionários pensaram novos projetos de revolução. Saint-Simon, Charles Fourier, Proudhon, Louis Blanc, Alexander Herzen e Bakunin propuseram diferentes versões do socialismo, mas a que obteve mais sucesso foi a de Karl Marx e Friedrich Engels.
Para Todorov, inaugura-se a segunda fase do messianismo político. Nos anos 40, Marx e Engels, criaram o Manifesto do Partido Comunista num contexto de admiração geral pela conquista da ciência ilustrada pela revolução industrial contemporânea. É a doutrina do cientificismo, que defende que o mundo pode ser integralmente conhecido, desde a matéria inerte ao funcionamento da sociedade. Ou seja, o mundo poderia ser transformado de acordo com um ideal derivado do conhecimento.
Como todos os messianismos, argumenta Todorov, o comunismo defendeu a ideia de que a história possui uma direção definida e imutável. É aí que ele encontra legitimação para seus atos, na inevitabilidade histórica: “no comunismo, para se conhecer a direção da marcha não é necessário ler os textos sagrados, mas sim as leis da história de maneira científica".
O fim previsto pela ciência marxista é o desaparecimento de toda diferença entre grupos humanos, pois diferenças eram vistas como pontos de conflito e, para tanto, lutariam até a morte. Por isso queriam abolir a propriedade privada e concentrar todos os instrumentos de produção no estado. O Manifesto diz que a existência da burguesia não é mais compatível com a sociedade, portanto, deveriam aboli-la. O texto não esclarece as maneiras para abolir a burguesia, mas diz que serão necessárias “intervenções despóticas".A utopia comunista foi orientada, num primeiro momento, ao interior de cada país: guerra civil entre classes. Em seguida, propõe a “educação" dos povos que não abraçam projeto, mas sem exterminá-los. É um projeto gradual e progressivo.
Após a queda do império comunista no começo dos anos 90, surge uma terceira forma do messianismo político na democracia moderna, que consiste em impor os regimes democráticos e os direitos humanos pela força – um movimento que engendra uma ameaça interna para os próprios países democráticos.
A primeira manifestação, de acordo com o conferencista, foi a intervenção da OTAN no conflito da Iugoslávia, em 1999, que opôs o poder central de Belgrado e a província de Kosovo. Essa intervenção foi embasada numa doutrina formulada por vários países ocidentais alguns anos antes, após o genocídio de Ruanda de 1994: o direito de ingerência. Essa doutrina afirma que, se um país viola os direitos humanos, os outros podem ou até devem usar a força para impedir os agressores de agirem.
O espírito de ingerência estava presente na invasão ao Iraque, em 2003, conduzida por uma coalisão de países liderados pelos Estados Unidos, baseada num pretexto “falacioso", como coloca o filósofo: a suposta presença de armas de destruição em massa. O espírito de ingerência em nome do bem estava totalmente presente neste episódio, relembra o convidado. Antes da invasão, um documento apresentou a doutrina que levou George Bush à ação: tratava-se da estratégia de segurança nacional. Esse documento tem valores centrais: democracia, liberdade e livre empresa. O governo dos Estados Unidos se declarou encarregado de uma missão: impor esses valores em todo o globo, se necessário pela força, porque “melhoraria o destino dos homens".
Novamente, o objetivo elevado justifica qualquer meio tomado, neste caso, a guerra.“Mesmo perseguindo nobres ideais, esse programa é assustador. Ele reata laços com antigos projetos do messianismo político colonial e comunista que faziam cintilar a chegada da liberdade e da dignidade engajando-se, ao mesmo tempo, em ações militares. Ele lembra, inclusive, tentativas de conquistas em nome do bem com base religiosa, como as cruzadas da Idade Média, por isso o termo 'cruzada' foi reutilizado nessa ocasião", explica. Os protagonistas estavam convencidos da superioridade da causa. O projeto de impor o bem é arriscado porque é necessário declarar guerra a todos os que pensam de forma diferente.
“A natureza desse ideal nos coloca um problema: é suficiente dizer 'liberdade' pra que estejamos todos de acordo? Não sabemos nós que os tiranos do passado também se diziam partidários do bem e da liberdade? Podemos lutar pela liberdade negligenciando os ensinamentos da história? Podemos dizer que esses valores de liberdade são justos e verdadeiros em todas as sociedades? É preciso não conhecer a história para dizermos que sim."
Tzvetan Todorov
Filósofo