Umberto Eco e a legião dos imbecis na internet

Postado em jul. de 2021

Literatura | Cultura

Umberto Eco e a legião dos imbecis na internet

Eduardo Wolf narra entrevista com Umberto Eco, autor de "O nome da rosa", na qual foram abordados temas como a imprensa, a internet, o estado da cultura, além de aspectos de seu livro mais recente.


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Por Eduardo Wolf

Em 2015, durante a cerimônia de outorga prêmio de doutor honoris causa na Universidade de Torino, o romancista, filósofo e teórico da literatura e da linguagem Umberto Eco deu uma de suas declarações mais polêmicas. Segundo o célebre autor de O nome da rosa, da Editora Record, “a internet deu voz a uma legião de imbecis”. O comentário algo ranzinza, por não ser de autoria de algum sorumbático niilista dos tempos digitais, mas sim de um notável comunicador, erudito que alcançou a celebridade pop, especialista de mídias e de comunicação em amplo sentido, não apenas causou significativo furor – na internet em especial, é claro – como também foi levado a sério por muita gente boa, como deveria, mesmo, e resultou em algumas reflexões interessantes sobre as ilusões de nosso entusiasmo digital.

O nome da rosa

Eu tive o privilégio de entrevistar Eco em sua residência, em Milão, para as Páginas Amarelas da revista Veja poucos dias depois de sua famosa declaração sobre a internet, em junho de 2015. Fui recebido por sua esposa, Renate, um pouco espantada pela minha chegada no domingo pela manhã (eles haviam se confundido com o horário agendado para a entrevista, esperavam-me à tarde), mas que prontamente me preparou um café, se pôs a conversar comigo sobre alguns quadros da casa – ela é especialista em história da arte – e insistiu que eu visse os livros que quisesse enquanto ela tentava contatar o marido – Eco estava se divertindo em uma feira de livros antigos ali pelas redondezas do Castello Sforzesco. 

De uma das janelas da sala em que eu aguardava, avistava uma das torres do Castello. O domingo tornava tudo tranquilo, e a própria experiência de eu estar ali para entrevistá-lo, assumia algo de irreal, de fantástico. 

Eco chegou pedindo desculpas pela confusão, bastante suado (o calor de junho) e um pouco molhado da chuva. Prontamente pôs-se a falar. Gentil, interessado no interlocutor – não há como não dizer: bonachão! –, mantinha um charutinho no canto da boca (ele não fuma mais, mas o hábito...) e falava, ao saber que eu recém chegara de um colóquio sobre Aristóteles em Paris, sobre a recepção da Poética do Estagirita na Idade Média, sobre como foi sua paixão pela estética de Tomás de Aquino (fato que ainda me surpreende) e sobre como a atual ultra-especialização acadêmica o espantava e o aborrecia. Senti-me em casa e, ainda assim, maravilhado. 

Quando passamos à entrevista propriamente dita, centrada em seu romance mais recente – e que seria seu último –, Número Zero, e em seus temas principais (jornalismo, desinformação e política, conspirações, etc.), era um prazer ouvi-lo especialmente pela generosidade com que tentava me fazer tirar melhor proveito das minhas perguntas. Eu, obviamente nervoso, fui me soltando aos poucos graças à experiência do entrevistado, claro. 

Número zero

Minha conversa com Eco, assim como a leitura de seu livro Número Zero, hoje, volta-me fortemente à memória em função do acirramento precisamente daqueles temas acerca dos quais ele tratava: a radicalidade com que a internet e, especialmente, as redes sociais, tem servido para universalizar a circulação das mais estapafúrdias e esdrúxulas opiniões – o que foi agravado durante o período desta pandemia global que vivemos. 

Quando perguntei a Eco sobre sua declaração, quis saber o que ele achava do eventual potencial “crítico” da internet. Sua resposta parece-me ainda hoje pouco explorada: “No caso da internet, não penso que ela possa fazer a crítica da vida, porque o trabalho crítico significa filtrar, distinguir as coisas, ao passo que a internet é como o personagem do [escritor argentino Jorge Luís] Borges, Funes, memorioso: ela lembra de tudo, não esquece nada. Seria preciso exercer essa crítica — filtrar, distinguir — sobre a própria internet. Eu sempre digo que a primeira disciplina a ser ministrada nas escolas deveria ser sobre como usar a internet: como analisar e filtrar informações. O problema é que nem mesmo os professores estão preparados para isso. Foi nesse sentido que eu defendi recentemente que os jornais, em vez de se tornarem vítimas da internet, repetindo o que circula na rede, deveriam dedicar espaço para a análise das informações que circulam nos sites, mostrando aos leitores o que é sério, o que é um hoax, por exemplo. Será que os jornais estão prontos pra isso? Seria preciso ter gente especializada em diversas áreas. Obviamente, sendo você um conhecedor de Aristóteles, você consegue reconhecer se um site é bom ou não, mas você não poderá fazer o mesmo com um site sobre teoria das cordas. A crítica da internet exige um novo tipo de expertise, mesmo para os jornais. E isso é muito importante para os jovens, pois eles não têm, aos 15, 16 anos, os conhecimentos necessários para filtrar as informações a que têm acesso na rede. Ora, assim como quem lê diversos jornais acaba aprendendo a distinguir abordagens distintas da parte dos jornais, os jovens hoje precisam aprender a buscar essa variedade de abordagens nos sites que frequentam.” 

Seis anos depois, a situação parece apenas ter se degradado – e muito. Das loucuras parcialmente inofensivas que sempre estiverem expostas na rede mundial às teorias conspiratórias mais perigosas, o que os anos seguintes à declaração de Eco nos mostraram é que essas redes viriam a desempenhar um papel decisivo na crise das democracias que todos estamos testemunhando já há alguns anos. (Um filme espetacular sobre isso está disponível no Netflix: Rede de Ódio, do diretor polonês Jan Komassa). 

 

Aliás, Número Zero, o romance de 2015, abordava o tema dessas teorias conspiratórias, muitas das quais ganharam vida nos últimos anos. Das loucuras trompistas sobre “fraude” nas eleições americanas às campanhas antivacina (mesmo em meio à pandemia), parece que a principal forma de imbecilidade praticada e disseminada pela internet é justamente essa pletora de teorias conspiratórias, muitas das quais acabam por ter resultados fatais (vide mortes no Capitólio, ou disseminação de um vírus letal). Eco, aliás, foi um notável investigador das teorias da conspiração, e sua lição na entrevista que fiz com ele foi cristalina: “Há muitos anos que eu me interesso por conspirações, ou, melhor dizendo, pela semiótica das conspirações, sobre como construímos uma conspiração. Ora, o fato é que o mundo sempre foi repleto de conspirações. Há um ensaio seminal de Karl Popper [“The Conspiracy Theory of Society”] sobre isso que é bastante esclarecedor: nós podemos encontrar conspirações na Ilíada [de Homero], com os deuses do Olimpo tramando o envolvimento de certos personagens ou a própria ruína de Troia. A ideia de conspiração é contínua. Tome o exemplo dos Templários na Idade Média; tome o exemplo das teorias do Abbé Barruel, no século XVIII, afirmando que a Revolução Francesa de 1789 foi fruto de uma conspiração de sociedades secretas como os Maçons e os Illuminati; depois disso, os judeus foram acrescentados à trama, com o as teorias sobre os Protocolos dos Sábios de Sião. Hoje, se você procurar na internet, há centenas de teorias da conspiração. No meu romance [Número Zero], há um personagem, Braggadocio, que é um paranóico, que constrói a sua própria conspiração. A sua teoria contém o único elemento da trama histórica que é puramente inventado — eu não acredito que Mussolini não tenha sido executado em 1945, etc. Isso é uma invenção, a invenção de um paranóico. Contudo, todo o restante da trama histórica que eu narro e que é parte da teoria conspiratória de Braggadocio realmente aconteceu. A questão é que nós devemos distinguir entre conspirações verdadeiras e conspirações falsas. A característica de uma conspiração verdadeira é que ele é invariavelmente descoberta. Houve uma conspiração para matar Júlio Cesar, e todos sabemos; houve uma conspiração para matar Napoleão III, que fracassou em seus propósitos, mas todos a conhecemos. O perigo está nas conspirações falsas, pois você não pode desmenti-las — elas simplesmente não existem! Elas se prestam, no entanto, à manipulação: quem quiser tirar proveito delas, pode montar contra-conspirações muito reais: o que Hitler fez, aceitando e propagando a falsa conspiração dos judeus, foi criar sua própria conspiração.”

Agora que estamos todos acompanhando vivamente a expansão de tantas e tão novas formas de teorias conspiratórias afetando nossas vidas (fraude de urnas, vacinas que transformam as pessoas em jacarés, etc.), confesso que a recordação desse belo momento de conversa com Eco me deixou com um misto de pessimismo amargo, de um lado, por termos chegado a níveis tão impressionantes de difusão da perversidade, com uma pontinha de otimismo “ponderado”. Vou buscar na própria experiência de entrevistar Eco esse otimismo. 

Terminada a entrevista, feitas as análises sobre a imprensa, a internet, o estado da cultura e um mergulho em seu livro mais recente, Eco generosamente dispôs-se a mostrar-me uma outra dimensão do mundo – este mesmo mundo que nós habitamos, e que frequentemente julgamos ser apenas consumido por essas tolices, “imbecilidades” ou sandices: o mundo de James Joyce e Jorge Luis Borges, seus dois heróis literários. 

Explico-me. Passando pelos corredores de seu apartamento, abarrotados de livros, paredes e mais paredes, primeiro exibiu-me com grande entusiasmo uma parede em especial, repleta de edições do "Ulysses" (a brasileira, de Houaiss, entre elas), e, com uma felicidade quase infantil, mostrou-me a primeira edição autografada pelo próprio Joyce. Depois, levou-me por uma sala dedicada exclusivamente a livros medievais e renascentistas sobre línguas, línguas inventadas, elaborações de línguas perfeitas e outras fantasias, para logo depois, na sequência de um corredor que parecia não ter fim, ingressarmos em um imenso salão com a biblioteca de Filosofia -- qual a sala mais fantasiosa? 

E ali estava Borges. Não como Joyce, presente na assinatura da primeira edição (ainda que também assim), mas em tudo: no quadro da Catedral Branca que pendia nas paredes da sala, nas iluminuras expostas pelos corredores, na bibliofilia real de livros fantásticos, na fantasia vivida cotidianamente por aquele homem que supunha uma continuidade perfeita entre o marido bonachão que vai à feira de livros da vizinhança e o criador de mundos tortuosos, cômicos, labirínticos da ficção que suplanta, momentaneamente, a realidade. 

Anos depois dessa magnífica jornada em Milão, ainda fico com a sensação de que não me despedi. Talvez por isso meu otimismo. Sinto que fiquei por lá, entre um livro sobre a Kabbalah e um tratado sobre o tomismo anacrônico de Wittgenstein, como se me deixasse assimilar àquele mundo de símbolos da cultura, da arte e do pensamento – nossa melhor resistência às mentiras, às falsidades e às loucuras perversas do mundo, digital ou não.

>>> Leia o ensaio "Construir o inimigo", de Humberto Eco

 

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