Postado em nov. de 2021
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Aos cem anos, Edgar Morin indica o caminho para o mundo pós-coronavírus
Em um de seus recentes livros, “É Hora de Mudarmos de Via – As Lições do Coronavírus”, um dos mais aclamados pensadores contemporâneos traz reflexões tecidas no calor da pandemia.
Edgar Morin encara a pandemia do coronavírus com um misto de perplexidade, serenidade e expectativa. É mais uma grande crise mundial que testemunha em cem anos de vida, completados em 8 de julho deste 2021. Um dos mais aclamados pensadores contemporâneos, o sociólogo, historiador e filósofo francês traz no livro “É Hora de Mudarmos de Via – As Lições do Coronavírus” (editora Bertrand Brasil) reflexões tecidas no calor do grave momento, sobre as quais apresenta também uma síntese de sua vida e obra – retoma aqui conceitos que apresentou em “A Via – Para o Futuro da Humanidade”, volume lançado em 2011.
Sem as ferramentas para fazer a análise historiográfica de um evento concluído, com origem, impacto e consequência bem delineados, o autor busca captar os efeitos de um episódio ainda em curso e que transcorre entre avanços e retrocessos. Porque esta pandemia desafia previsões sobre em que momento ganhará seu ponto final no registro histórico.
Morin estava com 99 anos quando se dedicou ao livro que projetava como trabalho derradeiro – não foi, agora em 2021 já lançou "Lições de um Século de Vida". A crise sanitária mostrava seu impacto junto aos sistemas de saúde, governos batiam cabeça nas estratégias de combate e as vacinas ainda estavam no horizonte da esperança
Diante desta nova era de incertezas, alimentando uma “esperança sem euforia”, ele observa o mundo em convulsão tanto na escala macro da política e da economia quanto no microcosmo dos indivíduos. Analisa a gravidade da questão ambiental, alerta sobre os riscos de erosão da democracia em países seduzidos por governos autoritários, comenta a ascensão da China ao papel protagonista no palco das grandes potências que regulam os humores da geopolítica e reflete sobre os avanços tecnológicos sob a gerência de gigantescas corporações. A mudança de via que propõe no título diz respeito ao caminho expresso e de mão única que o mundo deveria seguir para se recompor. Sua analogia comporta uma larga estrada com múltiplas pistas temáticas a serem percorridas, mesmo que em diferentes velocidades, por governos e pessoas.
Diz Morin nas primeiras das 98 páginas: “Essa crise inaugurada pela pandemia surpreendeu-me muito, mas não surpreendeu minha maneira de pensar; ao contrário, a confirmou. Pois, afinal, sou cria de todas as crises que meus 99 anos viveram. O leitor agora pode entender que, para mim, é normal esperar o inesperado, prever que o imprevisível aconteça. Entenderá que temo os retrocessos, que me preocupo com as explosões de barbárie e que detecto a possibilidade de cataclismos históricos. Entenderá também por que não perdi totalmente a esperança. Entenderá, portanto, que quero despertar, redespertar as consciências, dedicando minhas últimas energias a este livro”.
Antes de apontar a via na qual a humanidade deve seguir para transformar esta experiência que já dura quase dois anos em um aprendizado para desafios futuros, o autor faz um resumo de sua trajetória. Sua mãe morreu quando ele tinha 10 anos, em decorrência de uma enfermidade adquirida antes dele nascer, na pandemia da gripe espanhola. Seu pai comerciante foi abalado pelos efeitos da grande crise econômica de 1929. Morin acompanhou a ascensão de Hitler na Alemanha, a ocupação da França pelos nazistas, engajou-se na militância antifascista e na Resistência. Nesse ambiente de tensão, sofrimento e morte, forjou seu pensamento humanista e pacifista. Aderiu ao comunismo, aprofundou-se em Marx e rejeitou Stalin. Emergiu como brilhante e livre pensador interpretando as complexidades e contradições do mundo cindido pela Guerra Fria. Captou no nascedouro as movimentações do Maio de 68 e foi um dos primeiros pensadores a engajar-se, no começo dos anos 1970, nos alertas dos cientistas sobre os riscos da degradação do meio ambiente
Morin destaca sua resistência intelectual e política “às duas barbáries que ameaçam cada vez mais a humanidade”: uma refere-se aos ódios que se materializam em racismo, xenofobia, guerras e dominações; a outra diz respeito à lógica do cálculo e do lucro que comandam boa parte de mundo. Em um comentário sobre reformas sem revoluções e as bases republicanas erguidas sobre os preceitos da liberdade, igualdade e fraternidade, diz que gerenciar antagonismos faz parte do pensamento político. Sugere uma base democrática plural abastecida pelas fontes socialista (melhoria da sociedade pela solidariedade e recusa da dominação do lucro), libertária (autonomia e desenvolvimento do indivíduo), comunista (fraternidade nas relações humanas) e ecológica (campo inescapável em qualquer ação política).
No segmento “15 lições do coronavírus”, Morin apresenta sua percepção do estado das coisas em meados de 2020. É um olhar que seguia o comportamento dos governantes no trato da saúde pública e dos impactos econômicos. Observava as pessoas que se viram subitamente confinadas dentro de casa e a profunda desigualdade social iluminada pela ameaça do vírus. Um momento histórico, diz Morin, em que os preceitos da civilização se colocaram à prova, com redes de solidariedade ocupando o vácuo assistencial deixado pelo poder público, mas também com parte da sociedade se fechando ao sofrimento alheio e pensando em seu próprio conforto e poder de consumo.
Este diagnóstico, que mede o pulso de um mundo pressionado pela pandemia, assim como a agenda que deve pautar a reorganização em tempos vindouros, tem impulsionado o mercado literário com análises por diferentes vieses: medicina, filosofia, economia, direito, religião, meio ambiente e urbanismo. A exemplo de Morin, nomes como Yuval Harari e Slavoj Zizek também lançaram obras motivadas pela leitura inicial da crise da Covid-19. Morin, porém, carrega um repertório mais amplo de conhecimento e, sobretudo, vivência em momentos históricos graves. O período atual recomenda mais questionamentos do que certezas:
“Nunca estivemos tão fechados fisicamente no isolamento e nunca tão abertos para o destino terrestre. Estamos condenados a refletir sobre nossos caminhos, nossa relação com o mundo e sobre o próprio mundo. O pós-coronavírus é tão preocupante como a própria crise. Poderia tanto ser apocalíptico quanto portador de esperança. Muitos comungam a certeza de que o mundo de amanhã não será o mesmo de ontem. Mas como será? A crise sanitária, econômica, política e social conduzirá ao desmembramento de nossas sociedades? Saberemos extrair lições dessa pandemia que revelou a comunhão de destinos para todos os humanos, em ligação com o destino bioecológico do planeta? E eis que entramos na era das incertezas. O futuro imprevisível está em gestação hoje. Tomara que seja a regeneração da política, para a proteção do planeta e para a humanização da sociedade”.
Preciso intérprete da história e do tempo presente, Morin é crítico tanto das políticas privatistas neoliberais quanto dos aparatos regulatórios estatais: “A crise lançou fortes luzes sobre as insuficiências de uma política que tem favorecido o capital em detrimento do trabalho e sacrificado a prevenção e a precaução em nome da rentabilidade e da competitividade. Os hospitais e as equipes de saúde que neles trabalham são, assim, vítimas tanto da política neoliberal, que por toda parte se empenha em atrofiar os serviços públicos, quanto de gestões estatais hiperburocratizadas, submetidas, ademais, às pressões de poderosos lobbies”.
O autor renova no livro sua posição sobre prós e contras da globalização, um dos temas de sua segunda participação no Fronteiras do Pensamento, em 2011, quando abordou a crise econômica que convulsionou economias de todo o mundo em 2008, ano de sua primeira conferência no projeto:
“A pandemia mundial criou uma crise violenta da globalização. Também é possível perguntar se a globalização não contribuiu para a crise violenta da pandemia. Ecologistas, cientistas e epidemiologistas indicaram que a desorganização dos ecossistemas, os atentados à biodiversidade, a circulação humana e a poluição rural e urbana favoreceram a emergência dos vírus (...) Além do impacto nefasto sobre o meio ambiente, a globalização provoca a perda de soberania e de autonomia econômica dos Estados. (...) Quando a crise se globalizou, a interdependência rompida deixou nações e povos com economias mutiladas numa dependência econômica e moral até então desconhecida”.
Entre as proposições de Morin, está limitar a globalização ao seu caráter tecnoeconômico, que implica a multiplicação e o desenvolvimento de laços e cooperações. Em sintonia, ocorreriam movimentos de desglobalização, com foco na autonomia de abastecimento alimentar e sanitário das nações, bem como a satisfação de suas necessidades energéticas e industriais mínimas. A meta, diz, é estabelecer uma globalização humanizada: “A partir daí, soberanismo e globalização deixam de se apresentar como excludentes”.
Este processo integra uma das pistas formadoras desta grande via proposta por Morin, na qual trafegariam as ações políticas para reformar o Estado, a democracia e a sociedade – para ampliar a participação popular nas tomadas de decisões –, com atenção especial à ecopolítica, avaliada como “necessidade premente”. Também sugere a reformulação do pensamento reformador, com a “via” mostrando-se um caminho para mudanças mais efetivo do que a radical revolução ou o estático projeto de sociedade. “Porque a revolução soviética e, depois, a maoista produziram uma opressão contrária à sua missão de emancipação e porque o seu fracasso final restaurou aquilo que elas desejavam eliminar: capitalismo e religião”.
Um choque civilizatório, defende Morin, aguçaria responsabilidade do indivíduo para com a coletividade, dado que o egocentrismo conduz à degradação do senso moral. Neste breve livro, ele reexamina com peculiar lucidez e generoso poder de síntese eventos históricos que moldaram o mundo no século 20 e no alvorecer deste novo milênio. Entre todos os “ismos” que vivenciou e destrinchou, o humanismo é o que melhor lhe define. Aos cem anos, Morin enxerga à frente e nos fornece a luz para acompanhá-lo na jornada.
Edgar Morin
Filósofo