Postado em jun. de 2018
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Camille Paglia e o feminismo de uma vez por todas
As mulheres contemporâneas estão infelizes porque perderam algo extremamente importante. Camille Paglia esclarece, de uma vez por todas, sua posição sobre o feminismo.
Camille Paglia ficou famosa nos anos 1990, com sua obra Personas Sexuais. O livro, de 700 páginas, era baseado em uma consistente perspectiva histórica, apoiada em noções de arquétipos, lendas e mitos, e traçou um caminho interdisciplinar através da cultura ocidental, recontando o que ela viu como uma batalha sem fim entre a natureza (violenta, irracional, indomável e feminina) e a cultura (estética, lógica, sempre tentando e falhando em domesticar a natureza e, sim, masculina).
Uma autodeclarada libertária defensora da liberdade sexual e de expressão, em meio às guerras culturais do início dos anos 1990, ela afirmava que a segunda onda feminista havia se tornado uma força homogeneizada e repressiva. Ela questionava se a civilização ocidental e os homens que a construíram não mereciam algum crédito e se as feministas não estavam ignorando tudo de importante a respeito não somente da arte, mas também do sexo e até da felicidade das mulheres.
Apesar de Paglia escrever, de tempos em tempos, sobre política e cultura, ela se retirou, em grande parte, do centro do debate feminista. Mas, não antes de publicar Free women, free men. Lançado em 2017, o livro reúne material produzido ao longo de sua carreira abordando sexo, gênero e feminismo – seus temas mais recorrentes e favoritos. Nesta mesma época, veio ao Fronteiras do Pensamento e esclareceu, de uma vez por todas, sua posição sobre a questão, que você confere agora:
Chamo minha visão de feminismo de “feminismo da igualdade”. Meu foco é igualdade de oportunidades para as mulheres. Acredito que a missão do feminismo seja remover obstáculos para o avanço das mulheres nos âmbitos político e profissional. Mas, e afirmei isso constantemente em meus escritos, jamais poderemos resolver plenamente os problemas entre os homens e as mulheres no âmbito pessoal, onde existem questões como a atração sexual, o romance e o irracional.
Esse foi o erro do feminismo contemporâneo: imaginar que as estratégias de emancipação feminina no âmbito público poderiam ser transferidas para o âmbito privado e impostas através de regulações oriundas de autoridades.
Sou uma libertária, ou seja, quero defender os direitos do indivíduo de ser livre, de pensar livremente, de falar livremente, de viver livremente. Acredito, por exemplo, que as pessoas deveriam parar de se identificar com seus trabalhos. Sinto que aquilo que as pessoas são mais aquilo que fazem em suas vidas privada do que a função que desempenham em seus trabalhos.
Acho que há muitos, muitos problemas na sociedade contemporânea. O capitalismo moderno criou um dilema da libertação para as mulheres. Pela primeira vez na história, as mulheres podem conquistar sua independência financeira e já não dependem mais de um marido, pai ou irmão para sustentá-las. Foi uma enorme quebra de paradigma, esse novo sistema moderno de empregos, mas há todos os tipos de doenças e males psicológicos neste novo mundo. As pessoas vão a escritórios onde homens e mulheres trabalham lado a lado, de uma forma que homens e mulheres jamais trabalharam juntos ao longo de toda a história humana. Podemos voltar cem mil anos no tempo, e veremos que jamais houve esse tipo de proximidade física e ainda exercendo os mesmos trabalhos, como ocorre hoje.
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Então, acredito que, por um lado, as mulheres têm muitas opções para si mesmas, porque podem se sustentar e ser livres. Mas, ao mesmo tempo, ainda estamos procurando nosso caminho, ainda estamos tentando descobrir como homens e mulheres podem viver juntos e trabalhar juntos em um mesmo ambiente.
Sempre tento chamar a atenção das pessoas para o fato de que, na era agrária, que antecedeu a atual era, de tecnologia e do ambiente de trabalho da classe média, havia uma divisão natural do trabalho. Havia o mundo dos homens e o mundo das mulheres. Era raro que os dois fizessem algo juntos, o contato em si era raro. Então, as mulheres de muitas gerações tiveram muito mais poder em relação às suas próprias habilidades específicas: cozinhar, trabalhar com cerâmica, costurar e assim por diante. As mulheres encontravam um tipo de felicidade dentro do mundo das mulheres.
Lembro disso, porque minha família veio da Itália. Meus quatro avós e minha mãe nasceram lá. Minhas mais antigas memórias são de um vilarejo inteiro de italianos que foram aos EUA para trabalhar em fábricas de sapatos em Nova York. Lembro das diversas gerações, da felicidade de todas estarem cozinhando juntas, das conversas, da energia do ambiente etc. Os homens estavam nas fábricas! Então, eles chegavam em casa, todos os homens sentavam, tomavam seus cafés com licor de anis e conversavam entre si. Havia muito pouco contato entre eles e as mulheres. De modo que grande parte do descontentamento atual vem do fato de que existe muito mais contato do que jamais tiveram ao longo de muitos séculos.
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Em qualquer lugar que eu vá, seja na Itália, na Inglaterra ou no Brasil, vejo que as mulheres da alta classe média, com seus trabalhos especializados, são infelizes. Elas são muito infelizes e não sabem por quê. Na minha visão, elas estão infelizes porque elas perderam algo extremamente importante: na transição da era agrária, elas perderam a solidariedade das outras mulheres.
A segunda onda do feminismo, quando reapareceu nos anos 1960, se focou bastante em abrir oportunidades de carreira para as mulheres nas áreas profissionais e políticas – e foi incrivelmente bem-sucedida nisso. Mas, neste processo, esse movimento de segunda onda também tendeu a denegrir o papel da esposa e da mãe e desvalorizar a forte inclinação que a mulher tem de gerar filhos, já que carrega as crianças em seus ventres. Penso que estamos testemunhando um processo correto de recuperação das coisas que a maioria das mulheres valoriza na vida.
Creio que não podemos mais idolatrar a mulher profissional, este modelo ideal de ambição da classe média alta, impiedosa, indo para o trabalho com sua maleta. Ela não é o produto derradeiro da história humana. Ao contrário, ela é, de muitas formas, uma versão limitada da felicidade humana. Portanto, acredito que as feministas devem escutar mais as mulheres reais e não tentar ditar o que é importante para elas e o que não é.
Camille Paglia
Ensaísta e crítica cultural