Postado em jun. de 2013
Sociedade | Governança | Social
Comunicação e poder
"O papel central da comunicação está na mediação das relações entre as mentes." Leia o texto de Bruno Fischer Dimarch sobre a conferência de Manuel Castells para o CMais
Na Avenida Paulista, espaço central da cidade, manifestantes se mobilizam contra o aumento da tarifa dos ônibus. No Teatro Geo, Manuel Castells, sob a mediação de Marcelo Tas, discorre sobre as mobilizações contemporâneas em sua conferência no Fronteiras do Pensamento São Paulo.
Com muita clareza, o sociólogo espanhol delineia um percurso analítico na busca do entendimento acerca dos modos como operam as relações de poder em nossa sociedade (na cidade, na tecnologia, na política, nas empresas). “Para mim, as relações de poder são as relações fundamentais da sociedade. Porque quem detém o poder organiza e estrutura as instituições da sociedade em função de seus valores e interesses."
Por não ser um sistema monolítico, toda organização institucional detentora de poder coexiste ao contrapoder, uma vez que, onde há dominação, há resistência à dominação. Aqueles que estão à frente das instituições dominantes agregam a estas seus valores, e, por sua vez, a resistência emerge daqueles que não sentem seus próprios valores representados por tais instituições. Dessa forma, consolida-se uma dinâmica de construção e reconstrução das relações de poder, um processo de constante renegociação pautado na diversidade de valores.
Para Castells, o poder reside nas mentes, uma vez que é nelas que as relações acontecem (aceitação, indignação, construção de valores etc.). O papel central da comunicação está na mediação das relações entre as mentes. A investigação empírica realizada pelo autor consolidou a obra Comunicación y poder, ainda inédita no Brasil.
Nossa sociedade se constrói no espaço da comunicação, que atualmente atravessa uma enorme transformação tecnológica, organizativa, empresarial e cultural. “Quando digo que se constrói na comunicação, não afirmo que os meios de comunicação detêm o poder. Isso seria muito simplista. Os meios de comunicação, incluindo não apenas os meios tradicionais de comunicação, mas o conjunto de dispositivos de comunicação, ou seja, as redes horizontais de internet, telefones e plataformas móveis, são ainda mais importantes. Eles não detêm o poder, mas são o espaço onde se joga o poder, onde se constrói o poder a partir de interesses, a partir de estratégias, dos diferentes atores sociais."
Castells coloca que esta é a forma inteligente de controle do poder, pois opera por meio da influência das mentes, diferentemente dos métodos de coação para manutenção do poder, nos quais a violência gera um sistema débil.
Neste paradigma, o conferencista identifica a adaptação que a linguagem política teve que efetuar em relação aos meios de comunicação. Mais significativo do que aquilo que se diz, é o imperativo de estar nos meios de comunicação, pois o que não está não existe – e, consequentemente, a principal forma de censura não é mais reprimir a informação, mas bloquear seu acesso.
As mensagens veiculadas para fins políticos precisam ser simples – ninguém, nem os próprios políticos, lê os programas de governo dos partidos – e a personalização é a forma mais simples de comunicar. No lugar das propostas políticas são colocadas figuras, líderes fabricados, de rápida assimilação e identificação. Outros sim, quanto menos personalizada é a política, mais difícil é o controle da manutenção do poder.
Desta personalização emerge a política do escândalo. Decisiva nos resultados eleitorais, ela ganha cada vez mais espaço e vem evoluindo nos últimos 25 anos. Nos Estados Unidos e em alguns outros países, já existe um profissional especializado na construção de escândalos baseados em fatos reais organizados e distorcidos. Em sociedades mais puritanas e tradicionais, relações extraconjugais diminuem as chances eleitorais dos líderes.“A corrupção é sistêmica em toda classe política. Isso quer dizer que todos, organizações e líderes políticos, acabam sendo salpicados de uma maneira ou de outra. Por outro lado, a partir da corrupção real, organizam-se corrupções distorcidas e fictícias como forma de política de escândalo, que, dependendo da sociedade, incluem elementos de moralidade ou não", afirma Castells.
O efeito da política de escândalos traz consequências. A desconfiança generalizada na classe política é um dos principais efeitos produzidos. Não se observa a particularidade de um caso específico, mas de todos os políticos. Como todos estão sob a mira da política de escândalos, o foco incide a cada momento sobre uma personalidade.
“Na opinião pública do cidadão, a imagem já está claramente enraizada: todos são corruptos. E, por conseguinte, se rompe o sistema geral na classe política. Assim, os políticos, nas pesquisas de reputação em todo o mundo, ocupam a última posição entre todas as profissões em termos de prestígio", elucida o sociólogo. Com a crise na confiança no modo como a democracia opera, se agrava também a resposta dos Estados frente às reinvindicações dos cidadãos. Após as eleições, a descrença se intensifica, não há canais de participação e as promessas de campanha não são cumpridas. O crescimento da distância entre a política e a sociedade que não crê nela é um aspecto perigoso da contemporaneidade, ressalta.
A mudança de paradigmas na realidade comunicativa é outro fator de análise de Castells frente à política. O autor traça um panorama que mostra a ampliação da presença e do volume de tecnologias de informação e comunicação no cotidiano nas últimas décadas. “A humanidade está conectada e isso aconteceu no espaço de duas décadas, em especial na última."
Às novas formas de comunicação foi dado o nome “meios de autocomunicação de massa": de massa, porque pode alcançar potencialmente as massas por meio de redes; e autocomunicativa, devido à autonomia que as novas tecnologias proporcionam. A questão da autonomia é tão essencial que as empresas que tentaram bloquear, controlar e/ou cobrar fecharam. É o caso da AOL e do My Space. Quem cria barreiras tecnológicas perde seus usuários.
Nos meios de autocomunicação de massa não há privacidade, todavia não há censura de mensagens. É preciso respeitar os códigos de comunicação livre. Dentro deste cenário, as empresas procuram vender publicidade sem exercer controle sobre o conteúdo criado e compartilhado pelos usuários. A liberdade na internet encontra respaldo legislativo e há grupos que lutam por ela. Muitos jovens que estão nesta frente consideram a internet um dos meios principais de suas vidas.
O cenário dos meios de autocomunicação de massa constrói novas formas de poder e contrapoder. Uma vez que a circulação de informação deve ser livre, as ações de repressão se direcionam aos emissores (pois o conteúdo é livre, mas personalizado e localizável) e não às mensagens (que não podem ser interrompidas).
Manuel Castells abordou também o novo paradigma dos movimentos sociais, entendidos como “aqueles que buscam a transformação dos valores da sociedade". O campo de ação dos movimentos é a mente. O contrapoder é cultural, fomenta novas ideias e posturas (como nos movimentos feministas e ecológicos, por exemplo). Na atualidade, os movimentos sociais passam a se constituir e se organizar nas redes de autocomunicação.
Os movimentos sociais emergem a partir de bases fundamentalmente emocionais. Por vezes, o mote de um movimento parece pequeno, mas ele é uma “gota a mais" na sensação de que os poderes instituídos concentram tudo para si. A palavra que aparece nos fundamentos de quase todos os movimentos em todos os países é dignidade. “Não são movimentos por uma reinvindicação concreta, são movimentos para defender a minha dignidade, porque eu não sou reconhecido como pessoa, não sou reconhecido como cidadão", defende Castells. O protesto na Avenida Paulista, por exemplo, aparenta ser por uma causa pequena, mas o fundo da manifestação é maior do que a causa evidente.
Como há um padrão similar em diversos movimentos mesmo em contextos diferentes, conclui-se que existem novas formas da nossa sociedade em rede no século XXI. Na Islândia, no Egito, na Grécia, em Israel eclodiram movimentos sociais que tiveram os meios de autocomunicação de massa como chave de articulação de questões cuja base reside na indignação. Os protestos contra a polícia turca na Praça Taksim em favor da manutenção daquele espaço público, no qual foi projetada a construção de um shopping, seguem esta mesma lógica. O espaço público é reivindicado por ser ocupado por jovens turcos, e em seu lugar seria construído um espaço privado que organiza o público em torno de questões comerciais. Nos Estados Unidos, mais de mil cidades foram ocupadas pelo Occupy Wall Street. Na Nigéria houve também um forte movimento Occupy.“Agora os movimentos desapareceram? Não, eles nunca desaparecem. Eles existem na rede constantemente e persistem na rede, porque é um espaço que não pode ser reprimido. Quando a pressão física é muito forte, eles se retiram, rediscutem, deliberam, não há líder, não há um programa, mas têm a capacidade de resistir e lançar novos projetos a qualquer momento", acrescenta. As tecnologias não causam os movimentos sociais contemporâneos, mas permitem formas inéditas de construção e organização, em uma dupla atuação: no espaço físico urbano e no ciberespaço.
Por fim, Castells trouxe à luz a questão da política insurgente. Na Espanha, a indignação frente às mentiras do governo Aznar em 2004 sobre a autoria do atentado terrorista em Madri engendrou uma indignação espontânea dos jovens, que não toleraram a mentira sobre algo tão sério como a questão da vida e da morte. “Essa mobilização espontânea dos jovens mudou o destino do voto para um milhão de jovens em 24 horas, e deu a vitória totalmente inesperada aos socialistas. Depois, com os socialistas, também foi um desastre, foram expulsos do governo. Mas ficou claro que não se pode mentir impunemente sem ter, ao menos, um castigo eleitoral", afirma Castells.
Há novos mecanismos da política eleitoral também. Barack Obama, em sua primeira campanha, era um outsider político e não tinha grandes chances de enfrentar Hillary Clinton nas primárias. Relembra: “ele construiu sua campanha baseado, pela primeira vez, em um uso inteligente da internet, ou seja, deixando a autonomia aos grupos que se constituem em torno da internet. Não é publicidade. Não é uma campanha centralizada e manipulada a partir dos escritórios da campanha. É uma campanha onde se joga a mobilização espontânea da sociedade em torno de um candidato".
Na Itália também houve um interessante movimento de insurgência política. Beppe Grillo e o Movimento Cinco Estrelas, que surgiu a partir da crise financeira italiana, foi uma ação articulada pela internet. O blogueiro, comediante e político fundou, em 2009, o movimento que se transformou em uma das maiores forças políticas italianas. O movimento proíbe seus candidatos de estarem na televisão, eles devem se organizar em bases de assembleias locais populares e debates pela internet; os candidatos fazem sua apresentação mediante um vídeo na rede e por meio dela são votados. Em longo prazo, o movimento tem como programa a dissolução das instituições parlamentares e da democracia, em função da democracia local complementada pelo debate e a eleição pela internet. “É uma loucura, não é? Estúpido ou utópico. De qualquer forma, nas eleições de fevereiro ele se converteu no primeiro partido da Itália em termos de intenção direta de voto."
O fundamental nos sistemas de poder e nas democracias é o espaço público. É nele que a sociedade delibera e constrói sua decisão coletiva para que seja esta processada pelas instituições sociais.
O componente emocional das relações de poder agora se estende ao campo comunicativo da internet e, portanto, a liberdade de imprensa também se estende a ela. “Ampliar o espaço da liberdade é fundamental, e essa é a obra da autocomunicação de massa, mas isso não garante a liberdade. Nós somos anjos e demônios. Viver na internet tem um perigo, e o perigo somos nós mesmos. Se nós olharmos no espelho nossa expressão na internet e olharmos a realidade de nossa própria imagem, talvez tenhamos o sobressalto que nos motive a empreender a reconstrução mental e moral de um mundo caracterizado pela contradição entre nosso superdesenvolvimento tecnológico e nosso subdesenvolvimento ético", finalizou Manuel.
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Manuel Castells
Sociólogo