Postado em jan. de 2022
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Fronteiras do Pensamento – Era da Conexão: caixa de reflexão e ressonância das questões contemporâneas
O ciclo de conferências apresentou ao longo de cinco meses oito renomadas personalidades de diferentes campos do conhecimento.
Na conferência final da temporada 2021 do Fronteiras do Pensamento, o economista indiano Pavan Sukhdev fez referência à alegoria da Espaçonave Terra, usada pelo economista americano Henry George em seu livro “Progresso e Pobreza”, de 1879. O conceito de que estamos todos no mesmo barco – e somos responsáveis por sua manutenção e pelo empenho solidário que garanta a tranquilidade da navegação – ganhou ao longo do tempo diferentes leituras e adaptações, inspirando trabalhos acadêmicos a obras de ficção e também políticas de governança interna e de relações internacionais.
Sukhdev citou a abordagem que ganhou corpo nos anos 1960, quando o economista inglês Kenneth Boulding promoveu uma revisão conceitual sobre a Espaçonave Terra, até então vista como uma cápsula segura e abastecida por recursos infinitos. A atualização dos dados de navegação, porém, indicava que elementos como combustível, água e alimentos eram limitados e precisavam ser usados com inteligência para manter a nave no curso e os viajantes vivos.
A crise climática e o esgotamento dos recursos naturais da Terra são as grandes pautas da atualidade e repercutiram na caixa de reflexão e ressonância que é o Fronteiras do Pensamento. O ciclo de conferências apresentou ao longo de cinco meses oito renomadas personalidades de diferentes campos do conhecimento. Nesta edição, o tema Era da Reconexão propôs a projeção de que mundo poderemos ter após dois anos de convivência com uma pandemia que segue provocando mortes e incertezas. Estas análises foram costuradas pelos convidados junto a outras questões candentes na sociedade contemporânea: as ameaças que rondam as democracias, a ascensão do poder político e econômico na China, as tecnologias vigilantes e invasivas e a desigualdade social, chaga de grande amplitude que tanto prejudica o combate ao coronavírus quanto distorce as pesquisas e políticas referentes ao consumo de drogas, área de estudo do psicólogo e neurocientista Carl Hart – foi dele a única conferência presencial da temporada, apresentada em uma plataforma virtual exclusiva abastecida com conteúdos extras e aulas preparatórias.
Como destacou o biólogo evolucionário Jared Diamond na conferência de abertura, a pandemia em curso, analisada sob a perspectiva histórica e científica, representa um evento sem paralelo na história da humanidade. Não por sua taxa de letalidade, muito inferior à de outras pestes que arrasaram civilizações, mudaram o curso de guerras e forjaram grandes ciclos migratórios, como também apontaram em suas falas os historiadores Niall Ferguson e Yuval Harari. Mas por sua característica globalizada: o vírus circula com viajantes para todas as áreas do planeta, atingindo praticamente no mesmo instante metrópoles e regiões remotas. O coronavírus provocou medidas extremas como o lockdown, paralisou atividades econômicas, gerou desemprego e agravou as já imensas diferenças entre pobres e ricos.
Entendimento consensual nas conversas, a pandemia, apesar da heroica e rápida resposta da ciência na produção de vacinas, evidenciou a falta de uma frente de enfrentamento articulada em escala global. A irregularidade da cobertura vacinal resulta da desigualdade social e do negacionismo, fatores que contribuem para o vírus seguir ameaçando a volta à normalidade plena. Diamond frisou: sem o combate global a um problema global, basta um único foco do coronavírus no mundo para ninguém estar plenamente seguro em lugar algum.
Urgência ambiental
Diferentes vozes no Fronteiras do Pensamento ressaltaram que pandemias cumprem ciclos e uma hora somem. Outras podem vir e a ciência tende a ter respostas cada vez mais rápidas para barrá-las. São dramas com desfechos relativamente rápidos na linha do tempo da História. Disse Ferguson: “É impossível prever o próximo grande desastre, pois eles são aleatórios e têm diferentes formas e tamanhos. É improvável que tenham a capacidade de levar ao fim do mundo. Devemos aprender com eles”. Harari ponderou: “Saberemos nos próximos anos o que aprendemos com essa pandemia, se é que aprendemos algo”.
Já a crise climática, explicou Diamond, resulta de um processo lento e de percepção difusa, mas com consequências devastadoras. E corre em paralelo com outras duas razões de preocupação iminente: o esgotamento dos recursos naturais e o agravamento das diferenças entre ricos que se tornam cada vez mais ricos e pobres que se mostram cada dia mais vulneráveis. É preciso, alertou o biólogo, escolher logo o melhor caminho e os atalhos necessários para evitar o pior cenário, no qual a elevação dos índices de poluição, o aumento do nível dos oceanos, as ondas de calor e frio extremos e o esgotamento de reservas de água potável tendem a desestabilizar o mundo, trazendo no arrasto mais pobreza, fome, disseminação de doenças e ondas migratórias desordenadas. Para Harari, “a covid não destruiu o mundo, mas as mudanças climáticas têm esse poder de dar fim à civilização”. Seu sentimento, comparou o historiador, é o de assistir a um grande desastre de trem em câmara lenta. Ao defender uma ação internacional urgente “descolada do jogo político” que destina 2% do PIB mundial a ações para mitigar a crise ambiental, Harari reforçou: “Daqui a 10 anos poderá ser tarde demais”.
Ataques à democracia
Especialista em questões do leste europeu, a jornalista Anne Applebaum trouxe ao Fronteiras do Pensamento a discussão sobre o que chama “crepúsculo da democracia”. A correspondente internacional identificou, na esteira da ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, uma onda de governantes autoritários com características comuns: nacionalismo, isolacionismo, rejeição às regras da democracia liberal, ataques à imprensa, ao poder judiciário e ao sistema eleitoral, cruzada na qual insuflam seus seguidores contra os supostos “inimigos” do regime. É uma espécie de tribalismo erguido em torno da truculência, da intolerância e do culto a um grande chefe – cenário da distopia construída por outra conferencista, a escritora Margaret Atwood, em livros como “O Conto da Aia”. Anne defendeu: “Quem preza a democracia preza a liberdade de pensamento e o jogo democrático arbitrado pelo processo eleitoral”. Margaret, por sua vez, lembrando que a luta feminista pelo direito ao voto avançou em pleno século 20, afirmou: “Democracia é uma aspiração, uma obra em progresso e em constante redefinição”.
Em sua conferência, o psicólogo e linguista Steven Pinker comentou que a crise sanitária e os arroubos autoritários ocorrem no momento em que a humanidade cristaliza a busca por paz, saúde, prosperidade, liberdade e felicidade. Hoje, destacou Pinker, vive-se por mais tempo, trabalha-se relativamente menos, morrem menos pessoas por fome (mais por má distribuição do que por escassez de alimentos) e mais países estão sob governos democráticos – durante parte considerável do século 20, na Europa, lembrou, várias nações foram garroteadas pela União Soviética na Cortina de Ferro e Espanha e Portugal estiveram sob o comando de ditaduras. Em concordância com Applebaum, Pinker também observou um comportamento tribal nesses movimentos reacionários semeados por figuras autoritárias e populistas que veem no “sistema” uma ameaça a valores e comportamentos buscados em um passado idealizado. Para Pinker, entretanto, são irreversíveis o desenho de um mundo sem fronteiras e o avanço das pautas progressistas empunhadas pelos jovens.
Futuro sustentável
Referência em economia verde, Pavan Sukhdev percorre o mundo explicando a governos e grandes corporações o que há muitos anos defende em seus estudos e publicações: o desenvolvimento sustentável é um caminho sem volta e quem desviar dele ficará à deriva. A Espaçonave Terra, ilustração que Sukhdev buscou em sua conferência, carrega recursos finitos e que estão se esgotando muito rapidamente. Desmatamento, emissão de gases e acidez dos oceanos decorrente da ação humana e do desajuste climático comprometem a continuidade da viagem. O economista sublinhou com números a dimensão da tragédia: morrem a cada ano cerca de 8 milhões de pessoas por conta dos efeitos da poluição. Em dois anos, a covid-19 provocou 5,3 milhões de vítimas fatais (dados de 22 de dezembro).
Em seu desfecho da temporada, o Fronteiras do Pensamento sintetizou na fala de Sukhdev uma preocupação que transita por múltiplos campos de interesse. Os alertas sistemáticos dos cientistas não movem com a velocidade esperada as pesadas engrenagens do poder político mundial, por isso o clima de frustração que marcou a mais recente conferência do clima promovida pela ONU. Porém, mostrou Sukhdev, as ações direcionadas ao e pelo poder econômico tendem a ser mais efetivas. As relações de produção, consumo e lucro precisam agregar valores sociais e geração de bens e serviços públicos. No projeto ideal de economia sustentável, soma-se ao capital financeiro de uma empresa (acionistas), ao capital humano (empregados) e ao capital social (impacto na comunidade), o capital natural (preservação do planeta). O tempo para reparar e prevenir danos é curto. Essas mudanças de paradigmas terão de ser feitas com a nave em velocidade de cruzeiro. Espera-se que a parada final, embora já vislumbrada no horizonte, ainda esteja muito distante.