Postado em ago. de 2023
Sociedade | História
Gustavo Borba reflete sobre conferência
"O Fronteiras é um daqueles poucos eventos em que, a cada palestra que assistimos, dizemos: essa foi a melhor do ano."
Ontem foi a quarta palestra da temporada de 2023 do Fronteiras do Pensamento. Esse ano, temos apenas mais duas pela frente.
O Fronteiras é um daqueles poucos eventos onde, a cada palestra que assistimos, dizemos: essa foi a melhor do ano. E ontem, foi assim.
Michael Sandel é um professor renomado de Harvard, que chamou a minha atenção pela primeira vez quando escreveu o livro Justice, em 2008. Na realidade foi a Aninha que me falou dele, como exemplo de didática em aula. Sandel é autor de vários livros, sempre trazendo para a pauta um debate sobre a importância do diálogo e da contraposição de argumentos para buscarmos compreensões mais sistêmicas da realidade. Suas aulas são assim, suas palestras são assim, e seus livros seguem essa mesma dinâmica. Um dos principais livros, a tirania do mérito, foi o ponto de partida para o debate de ontem.
Durante sua palestra, Sandel construiu uma narrativa em termos históricos, voltando para o período de governo de Reagan e Thatcher, durante a década de 80, momento histórico geralmente identificado como um ponto de mudança no modelo de política e de economia vigente.
Dois dos autores de educação que mais gosto de ler, o Dennis Shirley e o Andy Hargreaves, em seu livro The fourth way, definem 4 momentos históricos na educação e um deles é o segundo período, com foco em padrões de resultado, cortes em serviços sociais, e priorização da ideia de responsabilidade individual e empreendedorismo. O período Reagan e Tatcher.
O fato é que a perspectiva de foco no individuo, que tem sido reforçada ao longo do tempo, impõe socialmente uma ideia de mérito (ou não) dependendo do “esforço” do indivíduo.
Yancey Strickler, um dos fundadores do Kickstarter, em seu livro “This could be our future”, apresenta alguns fatores que nos ajudam a entender esse processo. Ele coloca em pauta dados do Bureau of labor statistics americano que dizem que entre 1948 e 1973 o aumento do valor pago pela hora de trabalho foi de 91%. Isso ocorreu em um período de 25 anos. Nos 44 anos subsequentes, até 2017, o aumento foi de 9,2%. Uma das consequências desse processo é que a dívida em cartão de crédito nos EUA em 1966 era zero, em 1980 era 55 bilhões, e em 2017, 1 trilhão.
Ele complementa esses dados com uma pesquisa realizada pelo UCLA’s higher education research institute com estudantes ingressantes na faculdade. Segundo esse levantamento, as pessoas até o início da década de 70 diziam que buscavam uma formação superior para desenvolver uma vida com significado. Esse processo foi mudando e mais recentemente, em primeiro lugar, está a busca por retorno financeiro.
Esses dados corroboram a perspectiva de uma corrida para ser o melhor, para alcançar o “topo”. E esse topo está atrelado ao resultado financeiro.
Esse pano de fundo esteve, em alguma medida, na palestra de ontem.
Sandel trouxe para pauta o debate das fragilidades do conceito de meritocracia e a importância de reduzirmos a dicotomia, a separação em grupos, o distanciamento que temos atualmente em nossa sociedade, devido a polarização.
Sandel desconstruiu inclusive a perspectiva atrelada a ideia de que a meritocracia é um caminho adequado, desde que todos estejam no início da corrida com as mesmas condições (melhor treinamento, equipamentos, conhecimento). Existe fatores que promovem a desigualdade sempre (por exemplo a aptidão para algo) e o interesse da sociedade em determinadas atividades, dependendo do período histórico (por exemplo, o interesse mundial por futebol masculino).
O ponto central aqui não é saber se o argumento é ou não correto, se concordamos ou discordamos com determinada perspectiva, mas sim ouvir o diferente e ampliar a construção do nosso discernimento.
Ninguém muda, ou melhora sua visão de mundo, ouvindo a mesma coisa. Precisamos ouvir os outros e abrir espaço para a mudança em nossa perspectiva.
A palestra e o espaço de perguntas avançaram nesse caminho: como construir uma sociedade que valorize todos, onde todo mundo que executa determinado trabalho tem um reconhecimento e direito a vida e remuneração digna.
Uma das questões recorrentes nas palestras, apareceu de novo no debate com o Sandel: o impacto das redes e espaços digitais em nossa construção social.
Para falar sobre isso, resgato aqui uma entrevista que ouvi recentemente do próximo palestrante do Fronteiras, o Douglas Rushkoff, com o Andrew Keen. Rushkoff falava sobre o livro seminal que publicou 10 anos atrás, onde colocava em pauta as mudanças relacionadas a promoção da tecnologia digital e a construção de novas narrativas. Se antes, na tecnologia analógica, o nosso ambiente envolvia histórias processuais, com um caminho do início ao final, quando mudamos do analógico para o digital, vivemos em pulsos. A noção de tempo muda, e agora temos piscadelas espalhadas em um espectro circunscrito em um espaço — nossa bolha. E cabe a nós conectar esses pontos. Se forma uma colcha de retalhos, com narrativas parcial e preenchidas com inúmeras possibilidades nessa era da pós-verdade que vivemos. O fluxo dá lugar ao pontual. Talvez a reflexão dê lugar a velocidade.
Temos um grande desafio pela frente. Precisamos aprender de novo a conviver como sociedade, a conversar como coletivo. E como diz o título da entrevista do Rushkoff para Keen, precisamos “reocupar a realidade”. Talvez esse seja o desafio da humanidade nesse momento.
Fontes:
Stickler, Yancey. This could be our future. A Manifesto for a More Generous World, 2019
Rushkoff, Douglas. Douglas Rushkoff on Re-Occupying Reality. In Conversation with Andrew Keen on Keen On. https://lithub.com/douglas-rushkoff-on-re-occupying-reality/, 2023.
Michael Sandel
Filósofo político e escritor norte-americano