Postado em abr. de 2017
Ciência | Filosofia
Marcelo Gleiser: A realidade não é o que podemos ver
A natureza da realidade é tema de obra do italiano Carlo Rovelli, recentemente lançada no Brasil. Quem fala mais sobre o livro é o físico Marcelo Gleiser.
Espaço e o tempo realmente existem? De que é feita a realidade? De onde vem a matéria? O cientista Carlo Rovelli passou a vida inteira investigando essas questões, tentando ampliar os limites do que sabemos.
Em A realidade não é o que parece, agora lançado no Brasil, ele traduz os principais avanços da física nos últimos séculos. De Demócrito à gravidade quântica em loop, Rovelli refaz esse percurso, em linguagem acessível e poética, até chegar à teoria à qual dedicou sua vida: a gravidade quântica em loop.
Em artigo, outro físico conhecido por sua poética e acessibilidade, Marcelo Gleiser, fala sobre a obra, que propõe um questionamento tão antigo quanto a civilização: "A natureza da realidade é um assunto complicado. Podemos nós achar sentido nela, chegar ao seu fim? Ou estamos tão aprisionados em nossos próprios hábitos que, como os escravos na caverna de Platão, não podemos nos livrar de nossas correntes?"
A realidade não é o que podemos ver | Marcelo Gleiser (originalmente publicado em Cosmos & Culture)
Alguns físicos, não muitos, são físicos/poetas.
Eles veem o mundo, ou melhor, a realidade física, como uma narrativa lírica escrita em um código secreto que a mente humana pode decifrar
O físico e escritor italiano Carlo Rovelli é um deles. Depois de seu best-seller Sete Breves Lições de Física, um livro cuja popularidade surpreendeu o próprio autor, Rovelli lança um livro ainda mais ambicioso (escrito antes de Sete Breves Lições de Física). Em A Realidade Não é o que Parece, ele descreve sua visão da realidade – o poema que ele dedicou sua carreira tentando decifrar.
Seu estilo de escrita é encantador, tão lírico quanto um livro sobre física permite ser. Suas referências a outros poetas, em particular Dante e Petrarca, exalam um orgulho patriota e o entendimento, infelizmente raro na maioria dos departamentos de física, da profunda ligação entre as ciências e as humanidades enquanto parceiras gêmeas na busca dos seres humanos em encontrar significado em um universo misterioso e intrigante.
Como podemos contemplar a vastidão do espaço e a brevidade da vida sem se questionar a respeito de nosso lugar e propósito.
Ao escrever um livro popular e independente sobre suas ideias em relação à gravidade quântica – o teórico tenta unir a Teoria da Relatividade de Einstein e a física quântica –, Rovelli precisou refazer o já antes realizado trajeto das raízes históricas da física moderna, começando com a Grécia pré-Socrática e avançando através de Galileu, Kepler e Newton até Einstein e a física quântica.
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Mas ele o faz com um novo estilo, demonstrando talento em resumir noções difíceis em frases curtas e de efeito. Ao descrever como Einstein proporcionou realidade física ao espaço vazio e inerte de Newton, Rovelli escreve, “o campo gravitacional é o espaço... É uma entidade real que ondula, flutua, dobra e contorce".
Ao descrever o estranho e novo mundo da física quântica, no qual podemos apenas confirmar a realidade e uma partícula através de suas interações com as outras, ele escreve, fiel a interpretação “relacional" da mecânica quântica: “É apenas através das interações que a natureza desenha o mundo". Ou, “O mundo da mecânica quântica não é um mundo de objetos: é um mundo de eventos".
Rovelli vê o mundo da assim como seu (justamente) idolatrado filosofo jônico Anaximander o fez em 600 AC, como um fluxo eterno entre eventos, alguns, como rochas ou pessoas, mais “monótonos" (duráveis) do que os pertencentes à fugaz realidade dos processos quânticos.
A natureza da realidade é um assunto complicado. Podemos nós achar sentido nela, chegar ao seu fim? Ou estamos tão aprisionados em nossos próprios hábitos que, como os escravos na caverna de Platão, não podemos nos livrar de nossas correntes?
Em minha obra, A Ilha do Conhecimento, tracei a evolução das visões de mundo da humanidade, também desde os tempos pré-Socráticos até a modernidade, focando-me precisamente na ambiguidade do próprio conceito de realidade e como ele depende da nossa perspectiva humana. Para afirmar, ou acreditar, que a ciência que realizamos nos leva para mais próximos a uma final e subjacente verdade parece tão historicamente errado quanto filosoficamente ingênuo.
Como Heinsenberg celebremente escreveu, “O que observamos não é a natureza, mas a natureza exposta ao nosso método de questionamento". A forma como vemos o mundo molda nossa narrativa ao descrevê-lo. Mesmo sob as lentes objetivas da ciência, ainda é uma visão humana de mundo.
Se a ciência é a melhor forma que possuímos para evitar sermos enganados por nossas próprias percepções, ela ainda assim reflete as mesmas. O toque humano está em tudo aquilo que criamos, inclusive ciência.
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Até certo ponto, a visão de Rovelli reflete isso, já que ele reconta a história da evolução de nossa resposta à questão “Do que é feito o mundo?" – o que os filósofos chamam ontologia.
No tempo de Newton, era o espaço, tempo e as partículas. Depois da física quântica e de Einstein, é o espaço-tempo e os campos quânticos. É aí que reside a tensão – e para onde vamos ao limiar do que sabemos, sem nenhuma certeza do que vem adiante.
É aqui que ideias hipotéticas tais quais a teoria de corda e a gravidade quântica em loop, a resposta favorita de Rovelli, aparecem como o próximo passo nos aspectos mais profundos da realidade física. E é aqui que paixões e visões de mundo preferidas muitas vezes obstruem o julgamento das pessoas, dando viés para esse ou aquele objetivo com um sentido de propósito que é imerecidamente considerado único ou inevitável. Estamos quase cegos no final do conhecimento, na fronteira entre o saber e o não-saber.
Qual é o grande problema da gravidade quântica?
Por um lado, a Teoria da Relatividade de Einstein equiparou o espaço-tempo com o campo gravitacional, uma entidade que estica e contorce em resposta à matéria e energia. Isso é física com uma noção de continuidade, aplicada em grandes escalas, tangíveis aos humanos, mesmo apesar de efeitos estranhos como o tempo diminuindo e buracos negros no espaço.
Por outro, são os campos quânticos, a noção de que o próprio substrato do que chamamos matéria e radiação emerge de diferentes campos quânticos, de elétrons, de quark, prótons e afins. Campos quânticos oferecem um difícil comprometimento entre o contínuo e o granular, onde as partículas que observamos são excitações de campos contínuos subjacentes, pequenos caroços de energia que colidem uns com os outros e com partículas dos detectores que utilizamos para detectá-los. Sua realidade é revelada enquanto eles interagem, como Rovelli tão claramente descreve.
O desafio é, de alguma forma, trazer a noção de granularidade para o espaço-tempo, trazer o discreto para o contínuo. Esse é o problema que confundiu os físicos teóricos por pelo menos meio século.
Rovelli descreve o mais magistralmente possível as ideias básicas por trás da gravidade básica em loop, como, caso levemos a granularidade do espaço-tempo a sério, os conceitos de espaço e tempo enquanto os conhecemos dissolvem-se – e ficamos com uma rede de nós conectados representando os campos que atribuímos, em longas distancias, ao espaço-tempo.
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Aplicando técnicas da física quântica ao volume e à área do espaço, torna-se possível demonstrar que há um espectro finito de volumes e áreas possíveis, uma quantização do próprio espaço, assim como os níveis de energia são quantizados em um átomo.
Fiquei surpreso ao ler no prefácio que ele afirma esse livro ser o primeiro no assunto, mesmo ele listando dois outros na bibliografia. Ambos valem a pena; Once Before Time: A Whole Story of the Universe, de Martin Bojowalde, e Três Caminhos para a Gravidade Quântica, de Lee Smolin. Uma vez que Rovelli já trabalhou com Smolin, achei a inconsistência curiosa.
A construção é incrivelmente engenhosa e Rovelli passa a aplicá-la em diversas situações. O único ponto de cuidado aqui, e um que certamente os defensores tanto da gravidade quântica em loop e da teoria de cordas considerariam tão heréticas que certamente estariam erradas (mas eu adianto aqui, de qualquer forma), e que todos os argumentos que fizemos para quantizar a gravidade, isto é, para quantizar o espaço-tempo, se baseiam em analogias.
Assista aos vídeos com Marcelo Gleiser
Por que precisamos quantizar o espaço-tempo? Porque o espaço tempo é um campo e todos os campos precisam ser quantizados. Entretanto, poderíamos imaginar que a teoria de Einstein é uma bela descrição da física que apenas tem efeito em escalas espaciais suficientemente grandes e que uma granularidade quântica do espaço não existe; e que apesar do espaço-tempo ser descrito como um corpo, ele é um tipo muito diferente de campo em relação aos que descrevem campos de matéria e radiação, coisas que de fato colidem umas com as outras. Resumidamente, a gravidade é diferente. Argumentos análogos reducionistas devem ser recebidos com cautela.
Então, por que tentar fazer isso? Além da analogia, a resposta usual é a seguinte: pois, dentro da imagem do Big Bang da cosmologia moderna, no que voltamos suficientemente próximos ao começo do tempo, o próprio universo se torna uma entidade quântica. Isso é bastante possível, mas não temos certeza; é uma extrapolação.
Uma alternativa que tem ganhado bastante força nos anos recentes é a de que o universo vai para um salto próximo ao tempo inicial e seu tamanho nunca atravessa a barreira quântica (claro, existem ambas as soluções da gravidade quântica e da teoria de cordas que possuem saltos; mas não precisamos dessas teorias para encontrá-lo).
Outra razão normalmente dada para quantizar a gravidade é que os buracos negros são objetos instáveis e evaporam lentamente, perdendo sua massa. Se seguirmos este processo até sua conclusão, o que ocorre quando um buraco negro desaparece? O que sobra no seu meio ou centro interno?
Eu estou pulando muitas sutilezas aqui, mas poderíamos facilmente argumentar que não sabemos o suficiente sobre buracos negros, e certamente sobre os estágios finais de sua evaporação, para termos certeza de que os efeitos da gravidade quântica estão presentes.
Pode ser até que buracos negros não evaporem completamente, que algo novo e inesperado ocorra abaixo de certo tamanho, incluindo um sopro de radiação e partículas bem antes que alcance o tamanho onde os efeitos da gravidade quântica se tornem importantes (O Comprimento de Planck, para os experts).
Qualquer que seja sua visão acerca dessa complexa questão – quantizar a gravidade ou não, gravidade quântica em loop, ou supercordas ou... O livro de Rovelli é um tesouro. É um prazer lê-lo, cheio de maravilhosas analogias, imagens e, por último, mas não menos importante, uma celebração do espirito humano, em “permanente dúvida, a fonte mais profunda da ciência".
A REALIDADE NÃO É O QUE PARECE (leia um trecho da obra): "O pensamento científico explora e redesenha o mundo, oferece-nos imagens dele que pouco a pouco ficam melhores, ensina-nos a pensá-lo de maneira mais eficaz. A ciência é uma exploração contínua das formas de pensamento.
Sua força é a capacidade visionária de derrubar ideias preconcebidas, desvelar novos territórios do real e construir imagens novas e melhores do mundo. Esta aventura apoia-se em todo o conhecimento acumulado, mas sua alma é a mudança. Olhar mais longe. O mundo é ilimitado e iridescente; queremos sair para vê-lo.
Estamos imersos em seu mistério e em sua beleza, e além da colina existem territórios ainda inexplorados. A incerteza em que estamos mergulhados, nossa precariedade, suspensa sobre o abismo da imensidão daquilo que não sabemos, não torna a vida sem sentido: ao contrário, a torna preciosa.
Escrevi este livro para contar aquela que, para mim, é a maravilha dessa aventura. Eu o escrevi pensando num leitor que nada conhece de física, mas tem curiosidade em saber o que compreendemos e o que não compreendemos hoje da trama elementar do mundo, e onde estamos pesquisando. E para tentar transmitir a beleza arrebatadora do panorama sobre a realidade visível a partir dessa perspectiva.
Também o escrevi pensando nos colegas, companheiros de viagem dispersos por todo o mundo ou nos jovens apaixonados por ciência que querem seguir esse caminho."