Marcelo Gleiser e "O Deus das lacunas": quando Deus é invocado para preencher os espaços no conhecimento científico

Postado em mar. de 2016

História | Ciência | Cultura

Marcelo Gleiser e "O Deus das lacunas": quando Deus é invocado para preencher os espaços no conhecimento científico

Quando Deus preenche os espaços do conhecimento, extingue-se a possibilidade de novos questionamentos.


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O que acontece quando inserimos Deus nas lacunas do conhecimento científico? Para Marcelo Gleiser, preencher tais lacunas com Deus pode ser um problema para a ciência, pois é a partir destes espaços em branco que se criam os questionamentos e a busca por respostas sobre o universo. Leia abaixo a tradução da coluna de Marcelo Gleiser para o site NPR, What the 'God of the gaps' teaches us about science:

O Deus das lacunas: quando Deus é invocado para preencher os espaços no conhecimento científico. Uma abordagem teológica condenada e ultrapassada, mas uma que, mesmo assim, ainda está bastante viva nas mentes de muitos.

No Escólio geral, um tipo de epílogo de seu monumental Princípios matemáticos da filosofia matemática (aqui, uso uma tradução da 3ª edição por Ian Brice disponível na web, mas há outras), Isaac Newton escreveu:

"This most elegant system of the sun, planets, and comets could not have arisen without the design and dominion of an intelligent and powerful being.
And if the fixed stars are the centers of similar systems, they will all be constructed according to a similar design and subject to the dominion of the One ... And so that the system of the fixed stars will not fall upon one another as a result of their gravity, he has placed them at immense distances from one another."

(Este mais elegante sistema do sol, planetas e cometas não poderia ter surgido sem o design e o domínio de um ser inteligente e poderoso.
E se as estrelas fixas são centros de sistemas similares, todas serão construídas de acordo com um design similar, estando sujeitas ao domínio Daquele ... E para que as estrelas fixas não caiam umas sobre as outras como resultado de sua própria gravidade, ele as posicionou com imensa distância umas das outras.)

Podemos ver atualmente como Newton fez uso direto da abordagem “O Deus das lacunas", onde Deus é invocado para explicar algo que a ciência não consegue. Em Newton, as coisas são mais complexas do que isso, dado que ele via o cosmos como impressão e manifestação diretas do plano e da mente de Deus. Talvez, de maneira chocante, para Newton – o arquiteto da mecânica e da lei universal da gravidade, coinventor do cálculo e que descobriu algumas das leis fundamentais da ótica, inspirador do Iluminismo e do modelo de racionalidade – Deus fosse uma parte integral e essencial do universo.

Claro, o contexto histórico era essencial aqui. A longa vida de Newton cobriu a segunda metade do século 17 e o começo do século 18, quando a divisão entre ciência e religião, e entre ciência e filosofia, ainda não era tão clara. Ironicamente, a divisão surgiu principalmente por causa do sucesso da extraordinária ciência de Newton: se era possível computar, com alta precisão, os movimentos de objetos celestes e terrestres, reduzindo o cosmos a partículas materiais que agem sob a influência de forças, tudo não poderia ser reduzido, incluindo as questões humanas?

O Deus de Newton se apertou em gaps cada vez menores graças ao avanço da ciência que ele havia criado. Um exemplo famoso foi a formação do sistema solar, o sol, os planetas, cometas e luas, que, como vimos na citação acima, Newton atribuía à intervenção divina. O físico e matemático francês, Pierre-Simon Laplace – no início dos 1800 – propôs uma origem puramente física do sistema solar baseada na contração de uma grande nuvem de gás giratória, uma ideia muito próxima da que consideramos atualmente. A bola giratória se achataria nos polos e cresceria no plano do equador da nuvem, quebrando-se em anéis separados, de onde os planetas se formariam (a formação planetária é mais complexa do que isso).

A parte interessante desta história surge quando Laplace dá a Napoleão uma cópia de seu Mecânica celeste, descrevendo detalhadamente os movimentos dos planetas e cometas no sistema solar. Napoleão convida Laplace para ir ao seu palácio e, após parabenizar o sábio, expressa sua surpresa ao não ver Deus mencionado em seu manuscrito. A famosa resposta de Laplace diz tudo: “Senhor, eu não preciso desta hipótese."

Conto esta história, porque ilustra tão bem como a ciência se move. Claro, Laplace estava sendo arrogante, mas também estava sendo desonesto. Não porque ele precisava de Deus para explicar o que ele não sabia, mas porque há muitas coisas que ele não sabia. Por exemplo, ele não podia explicar de onde a nuvem de gás vinha. Teria Deus a colocado ali? Laplace não tinha nada disso, mas também não tinha uma resposta.

Levou um tempo para que a teoria moderna da cosmologia propusesse um mecanismo para a formação das estrelas e das galáxias, como uma combinação de ingredientes improváveis: matéria normal (coisas das quais somos feitos, como elétrons e prótons), matéria escura (coisas que são seis vezes mais abundantes do que a matéria, mas que ainda não sabemos a composição), energia escura (coisas que ainda não compreendemos realmente, mas que sabemos que estão lá e em quantidade dominante – algo como três vezes mais do que a matéria escura), e pequenas flutuações nos valores dos campos que presumimos existir desde o início da história do universo. Uma vez que combinamos todos estes ingredientes – e eles são bem justificados a partir de observações – mesmo que a lista pareça bizarra, podemos reproduzir o universo de maneira muito próxima da que o enxergamos com nossas ferramentas.

A grande diferença entre Newton, Laplace e a cosmologia moderna é que não presumimos (ou não deveríamos) saber tudo que há para saber sobre o universo. Mesmo enquanto nos esforçamos para saber mais sobre a natureza – e é isso que a ciência deve fazer – também percebemos (ou deveríamos) a vastidão daquilo que não sabemos. Uma coisa deve ficar clara a todos que compartilham o grande desejo do cientista de aprender mais sobre o mundo: colocar Deus nas lacunas da corrente atual de conhecimento certamente não expandirá nossa compreensão do universo. Por isso precisamos da ciência e de sua persistente abordagem moderna e secular.

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Marcelo Gleiser

Marcelo Gleiser

Física

Físico teórico brasileiro
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