O que a tecnologia fez e diz sobre nós?

Postado em mai. de 2022

Ciência | História | Futuro e Tendências Globais

O que a tecnologia fez e diz sobre nós?

O psicólogo e historiador Felipe Pimentel escreve sobre nossa relação com as ferramentas tecnológicas. Eis o cerne do debate que o Fronteiras do Pensamento propõe para este ano.


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A tecnologia define o humano? Arqueólogos e historiadores estabelecem marcos a história dos hominídeos através da tecnologia. E é precisamente quando os seres humanos aprendem a fabricar ferramentas, há cerca de 2,5 milhões de anos, que damos início ao gênero homo em nossa história. Sendo o precursor o Homo habilis, cujo nome advém da sua grande habilidade de fabricar… ferramentas. A história da humanidade mistura-se à história da tecnologia.


Por isso, como espécie, nós falamos da tecnologia, a desejamos e nos assustamos com ela e as transformações que provocou. Podemos citar a tecnologia agrícola e pastoril, quando nos sedentarizamos; a fabricação de metais, quando nos “civilizamos”; a moeda, o arado de ferro, a nau, a pólvora, o éter; tudo isso modificou a história da humanidade definitivamente. No final do século XVIII, esse impacto tornou-se ainda maior. A Revolução Industrial introduziu uma singularidade que é preciso explicar. Todas essas invenções citadas até aqui são pré-industriais. Sua criação não gerou uma “revolução industrial”. Por quê? A tecnologia fabril é marcada não pela criação de uma mera ferramenta, mas de uma máquina. Qual a diferença entre elas?


Ferramentas são objetos que auxiliam determinado trabalho humano. Máquinas trabalham sozinhas. Isso aconteceu primeiramente no setor têxtil, com os teares mecânicos e a máquina a vapor, e esse princípio do automatismo se disseminou. No século XIX e início do 20, durante os quais vigorava já a Segunda Revolução Industrial, uma multiplicidade de invenções transformou a vida da humanidade para sempre: na medicina, antibióticos, vacinas e analgésicos; nos transportes, barcos a vapor, ferrovias, aviões e automóveis; nas comunicações, o gravador, o microfone, o rádio, o telégrafo e o telefone; na vida doméstica, o fogão e a geladeira; na indústria de base, o aço e o petróleo; e tantas outras. O efeito disso sobre a população foi acachapante, levando a humanidade de 1 bilhão de pessoas em 1800 aos mais de 7 bilhões do século XXI.

Passamos também pela Terceira Revolução Industrial, iniciada na segunda metade do século XX, caracterizada por novos métodos de gerenciamento de projetos (como o toyotismo), pela virtualização da economia e, principalmente, pela tecnologia da informática. De lá para cá, os computadores que ocupavam o espaço de uma sala inteira passaram a caber na palma da mão. Mas, além disso, algo mudou?


Alguns teóricos já afirmam que estamos na Quarta Revolução Industrial. Outros são mais prudentes e perguntam pelo critério. As tecnologias do século XXI são distintas, por princípio, das tecnologias da terceira Revolução Industrial? É um debate. Agora, há algo peculiar no século XXI: as novas tecnologias imiscuíram-se agudamente e transformaram todos os setores. O nosso modo de fazer política, cultura, dinheiro, jornalismo, educação. A tal “exponencialidade” dos negócios digitais, produtos completamente intangíveis, escalou os valores absurdamente. Se, há cerca de 10 anos, o Waze foi adquirido pela Google por US$ 1 bilhão, a notícia badalada recente mostra o Twitter avaliado em mais de US$ 40 bilhões. Na cultura e no jornalismo, novas mídias, práticas e valores emergiram com as possibilidades da informação descentralizada e não mediada. Hoje consumimos informação, ensino, produtos e até mesmo política através da tecnologia. Mas o que há de novo? Há algo realmente distinto de tudo o que já houve na história da humanidade e sua tecnologia?


Arrisco uma hipótese. Se as ferramentas forjaram a civilização e depois as máquinas dominaram uma produção, as máquinas do século 21 parecem ir além: não se trata só de melhorias técnicas em nossa vida ou de facilidades produtivas, pois não estamos apenas dividindo com as máquinas um trabalho; nós estamos habitando as máquinas. Elas não são mais companheiras da nossa paisagem, mas nós adentramos à paisagem delas, elas nos capturaram e virtualizaram nossa vida, trabalho, consumo e relações. Com a nossa anuência ou não, o seu algoritmo sabe mais do que nós mesmos sobre o que desejamos, e nós permitimos digitalizar a nossa personalidade, passando a viver e conviver neste mundo nublado das telas. O famigerado Metaverso nem precisa ameaçar chegar: já o habitamos há tempos, no trabalho, na escola, nas relações. O que isso tem feito de nós? A tecnologia tem essa capacidade de definir e questionar nossa humanidade. Enquanto isso, as pessoas acusam um certo mal-estar. Não parece possível retroceder. Mas para onde vamos, de onde viemos, quem somos nós?

Junte-se a nós nesta discussão na Temporada 2022 do Fronteiras do Pensamento. 

Artigo publicado no Caderno DOC do Jornal Zero Hora e GZH no dia 27/05/22. 

Imagem: Freepik

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