O que virá depois?

Postado em set. de 2022

Sociedade | Psicologia e Saúde Mental

O que virá depois?

Artigo escrito pela presidente do Conselho da Sociedade de Psicologia do RS, para a Revista Fronteiras, explica a relevância da obra da conferencista da Temporada 2022 Élisabeth Roudinesco.


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Nada é mais próximo da patologia do que o culto da normalidade levada ao extremo”, afirma Élisabeth Roudinesco em sua obra Por que a Psicanálise?. Assim, a pesquisadora da Universidade de Paris VII, historiadora e psicanalista francesa, aponta que os comportamentos mais criminosos e desviantes surgem, não raro, nas famílias aparentemente mais “normais”. Historicamente, encontramos essa extrema racionalidade, por exemplo, no comportamento de Eichmann, o funcionário aparentemente tranquilo e ordeiro que agiu a serviço da execução de um genocídio como se executasse um trabalho banal. Com o auxílio das mais modernas tecnologias e em nome da ciência, ocorreu a forma mais surpreendente de inversão da norma de todos os tempos, e a humanidade, em vez de se beneficiar do progresso conquistado, voltou-o contra si mesma.

Na inversão da norma, nesse contraste entre o que é levado ao extremo como aparente normalidade e o que é oculto, estão, pode-se dizer, os fundamentos da psicanálise. Ela nasce de uma tensão e de uma ruptura com os saberes oficiais para escutar a história do sujeito “à contrapelo”, retirando a estranheza do escuro para colocá-la em evidência, e tecendo, a partir dos restos, a composição da narrativa de um saber não oficial. Por esse modo original de investigação e discurso que prioriza o avesso – o sonho, a sexualidade, o inconsciente –, inaugurou-se o que Roudinesco definiu como um avanço da civilização contra a barbárie. Ela afirma que o sujeito freudiano, por poder pensar na existência de seu inconsciente, é livre, pois é capaz de reconstruir sua significação.

Em 2004, em uma obra que sempre será atual, Roudinesco estabelece um fecundo diálogo com o amigo Jacques Derrida, no livro intitulado De que amanhã. O título remete aos versos de um poema de Victor Hugo, que descreve o amanhã como “um espectro sempre mascarado que nos segue lado a lado”, sem que saibamos de que amanhã se trata: “Tudo hoje em dia, nas ideias como nas coisas, na sociedade como no indivíduo, encontra-se em estado de crepúsculo. De que natureza é esse crepúsculo? O que virá depois?”. Com esse
ponto de partida, dentre as profundas investigações filosóficas que vão construindo, falam sobre o futuro da liberdade humana, as transformações na família ocidental
e os riscos de a psicanálise perder-se de sua potência subversiva. Se o futuro nos segue lado a lado, será ele sempre um grande momento? O que criamos com nossa ciência? Estamos emancipados ou solitários e embrutecidos?

Élisabeth Roudinesco é uma intelectual brilhante, estudiosa da obra de Sigmund Freud, Jacques Lacan e autora de suas premiadas biografias. Escreveu sobre a história da psicanálise na França, publicou o Dicionário de Psicanálise em diversos países e leciona a história da psicanálise há mais de vinte anos. Entretanto, ela é referência não apenas por sua vasta obra, mas porque nelas seu olhar sempre sagaz atualiza o dispositivo psicanalítico como crítica do sujeito e da cultura, o que é imprescindível para que o amanhã não se perpetue como uma normalidade levada ao extremo, mas aponte sempre para uma infinita ressignificação, garantia da condição de sujeito.

Eneida Cardoso Braga Psicóloga, psicanalista, doutora em filosofia pela PUCRS com estágio doutoral na Université de Strasbourg – FR, membro pleno, supervisora e coordenadora de seminários na Sigmund Freud Associação Psicanalítica, presidente do Conselho da Sociedade de Psicologia do RS.

 

 

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