Postado em nov. de 2020
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Sou alérgico ao argumento 'você não pode falar dos negros porque não é negro'
Contardo Calligaris, psicanalista e colunista da Folha de S.Paulo, aborda a complexidade da política das identidades em artigo.
Adolph Reed é um pensador de esquerda, professor emérito na universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Já faz tempo que ele manifesta sua antipatia pela “política das identidades” - resumindo, pela ideia de que nossa identidade (nossa raça, nossa orientação sexual etc.) deveria ser o critério decisivo na hora de escolher nossas alianças políticas.
Mesmo hoje, depois do assassinato de George Floyd e do crescimento do movimento Black Lives Matter (as vidas negras importam), Adolph Reed continua perguntando se o principal problema americano é mesmo o racismo ou a pobreza dos marginalizados do sistema, seja qual for a etnia deles. Ele acredita que algum progresso só possa vir da luta comum dos desfavorecidos de todo o mosaico americano.
Na semana passada, Reed, convidado para proferir uma palestra, acabou cancelando o evento diante das ameaças de protestos.
O termo “política das identidades” foi inventado nos anos 1970 por um grupo de feministas negras lésbicas em Boston, no estado de Massachusetts. Elas achavam que 1) o movimento feminista era racista e 2) o movimento dos direitos civis era homofóbico. Decidiram respeitar a especificidade de sua identidade, de lésbicas e negras.
Obviamente, a objeção à política das identidades é que ela fragmenta qualquer frente unida de ação política.
A política das identidades é amiga do conceito de “lugar de fala”, que poderia ser um bom jeito para cada um de nós se interrogar sobre as motivações silenciadas (e ignoradas de nós mesmos) de nossas ideias e declarações - tanto na esfera pública quanto na privada.
Sou sensível aos argumentos de Djamila Ribeiro (“O que é Lugar de Fala?”, Letramento): é crucial levar em conta a organização do poder ao redor de uma fala.
Mas receio a estupidez dos argumentos “ad hominem”. O argumento “ad hominem” consiste em anular uma proposição por uma crítica ao seu autor. Quando não estamos a fim de responder a uma crítica ou não sabemos como, a solução é simplesmente atacar quem a enunciou. O caso de Adolph Reed, que mencionei, é interessante porque Reed (só agora me dou conta que nem sequer mencionei esse fato) é negro: ele não pode ser silenciado simplesmente com o argumento de que não teria como falar sobre ou contra a política de identidades “por ele ser branco”.
No conceito de lugar de fala, tudo o que é argumento “ad hominem” me parece uma falácia. O resto me parece mais um instrumento para sondar as nossas motivações.
Como psicanalista, constato, justamente, que as tais motivações são sempre mais complexas e misteriosas do que parecem a nós mesmos e a quem nos escuta.
E os militantes progressistas deveriam se lembrar de que, de Lênin a Mao, de Castro a Ho Chi Mihn, de Marx a Engels, os que mais falaram em nome do proletariado eram todos rebentos de classes abastadas. De onde falavam, então?
Resumindo, não concordo inteiramente com Adolph Reed, mas fujo dos excessos da política das identidades, sobretudo quando ela produz argumentos “ad hominem” (ou ”ad mulierem”), como aconteceu recentemente ao redor das críticas que Lilia Schwarcz moveu ao novo filme de Beyoncé.
Ou seja, sou alérgico aos argumentos “você não pode falar dos negros porque não é negro” ou “não pode falar dos gays porque não é gay”. Até porque, inversamente, ser negro ou gay não impede ninguém de falar as piores asneiras, inclusive contra negros e gays.
Agora, também existem dimensões concretas e cotidianas da experiência (de ser negro ou gay ou de viver em qualquer margem social) que são cruciais e constitutivas da identidade de um indivíduo e do lugar de onde ele fala.
Por exemplo, é diferente falar do lugar de quem lê, o tempo inteiro, no olhar dos outros, repulsa, desconfiança, desaprovação quando não ódio. E é possível que, sem essa experiência específica, algo faça falta à nossa capacidade de compreender o mundo no qual o negro, por exemplo, vive.
O melhor filme deste ano até agora é, para mim, “Queen & Slim”, de Melina Matsoukas. Está na Apple TV desde sexta passada, e espero que chegue logo a plataformas mais populares. É a história de um casal negro que, no seu primeiro encontro, tem um “acidente” que o projeta num thriller tanto mais trágico por ser involuntário.
Não perca sob nenhum pretexto: raramente me foi dado enxergar de tão perto o que significa, concretamente, ser negro.
(Via Folha de S. Paulo)
Contardo Calligaris
Psicanalista e cronista