Postado em jul. de 2017
Literatura | Filosofia | Sociedade | Cultura
Alain de Botton: “As outras pessoas têm o mesmo tipo de vulnerabilidade que nós”
Filósofo suíço fala sobre os desafios do amor no cotidiano, e sobre a dimensão afetiva das relações do homem com a religião e a política.
Política, religião, amor, relacionamentos e saúde emocional. Num primeiro momento, não parece que todos esses tópicos se relacionam de forma natural. Entretanto, todos eles se cruzam na lógica daquilo que figura em nosso cotidiano. Tais relações ficam mais evidentes quando explicitadas por Alain de Botton, pensador suíço com formação em História, Literatura e Filosofia, criador da School of Life, e conhecido justamente como o “filósofo da vida cotidiana”.
Em seu livro mais recente, O curso do amor (2016), De Botton fala sobre o amor para além da fase inicial de encantamento e paixão, com todas as peculiaridades e dificuldades que a convivência, o dia-a-dia e o passar dos anos trazem. Para o filósofo, a arte carrega a complexa função de fazer com que as pessoas se sintam menos estranhas e deslocadas, legitimando os tantos sentimentos humanos e confortando as pessoas em sua vulnerabilidade.
Durante entrevista ao jornal português Expresso, Alain de Botton tratou não apenas do tema em questão - o amor -, mas dos outros tópicos pertinentes ao cotidiano: nossas relações com a política e a religião, e como elas são afetadas pela esfera pessoal de nossas vidas.
Você trabalhou neste romance sobre o amor durante cinco anos. Tem vários projetos correndo ao mesmo tempo?
Sim, vários, e há um momento em que os pensamentos que vão surgindo parecem certos.
Você tem vindo a desafiar convenções, algumas delas estabelecidas há séculos. É o caso do Romantismo com letra grande, convenções sociais como o casamento, a religião, o trabalho, a política...
Eu não as desafio completamente, procuro o que é interessante nelas. Quando tratei da religião, não disse que deveríamos esquecê-la. Sou sempre muito simpático com o objeto do meu ataque. A religião era o alvo do ataque, mas também o aliado. Desta vez, com o amor... eu não quero que se diga que o livro ataca o amor, não. Sou muito a favor do amor. Penso é que temos de ter mais cuidado. É uma manobra semelhante à que usei com outros temas. A arte está muito bem, mas temos que usá-la de determinada maneira.
Você está sempre a dizer “vamos ser diretos e fazer uma abordagem racional”, seja do que for, como se dissesse “vamos ter maturidade perante as coisas”.
Concordo que maturidade é uma palavra interessante. É maçante quando se diz que temos que ser mais maduros, porque vivemos numa sociedade com uma mentalidade impulsiva, romântica e muito jovem. A minha ideia dos seres humanos é que eles têm cérebros dignos de muito pouca confiança, e este é um ponto filosófico clássico. É como dizer que temos este cérebro que julgamos que nos dá informação rigorosa, mas não é verdade. Nós não compreendemos mesmo as outras pessoas, não compreendemos a nós mesmos, e tudo é muito mais perturbador e complexo do que imaginamos. Por isso temos de ter cuidado e analisar, pensar, parar, separar elementos, esse tipo de coisas. Em particular em áreas como as relações amorosas, em que as pessoas são particularmente impulsivas e impacientes. Há quem acabe com um casamento por causa de um fim de semana que correu mal! O quê?
Esses gestos não estão diretamente ligados às expectativas?
Sim. Eu não sou uma pessoa de expectativas baixas, acredito em expectativas altas. Mas se as temos torna-se mais complexo e somos obrigados a trabalhá-las, a planejar.
A complexidade não é um problema em si.
Não, mas uma pessoa tem de estar preparada para ela, não há nada pior do que a complexidade que não foi prevista. As pessoas ficam muito impacientes, entram em pânico, sentem-se perseguidas, perguntam-se por que é que a vida está correndo tão mal. No espaço público não há informação suficiente sobre a complexidade das coisas. A história que contamos a nós mesmos a propósito, digamos, do amor, não é suficientemente honesta em relação às complexidades que implica.
Parece-me que vivemos em várias épocas diferentes dependendo da área da vida. A política rege-se por regras ultrapassadas, os resultados eleitorais já não refletem o eleitorado como antes, as tecnologias de informação deixam bem claro que parece que vivemos simultaneamente em eras diferentes.
Sim, é verdade, e muitas das nossas respostas têm um milhão de anos! Dá em grandes contrastes quase cômicos. Já fomos à Lua, estamos de partida para Marte, mas ainda não sabemos como evitar a discussão sobre a maneira de pendurar a toalha das mãos no toalheiro.
Não conseguir resolver essas pequenas coisas nos torna ridículos?
Ontem estive numa conferência organizada pela Google, e o Eric Schmidt [presidente da Alphabet] dizia durante a sua intervenção que estamos trabalhando na cura do câncer, conseguimos ter segurança nas estradas, criamos viaturas sem condutor... A certa altura perguntaram-lhe se havia alguma área em que a Google não desse cartas, e ele respondeu: “Fanatismo, falta de tolerância... Não sabemos o que fazer com isso.” E acrescentou que gostaria que a Google fizesse um aplicativo para a sabedoria e para a tolerância. Eu fiquei pensando como é fascinante que quem sabe tratar o câncer diga que não pode fazer nada pela tolerância. É intrigante! O que pode ser mais difícil do que curar o câncer? Deveria estar no mesmo nível de dificuldade!
O que é que o espanta?
Me espanta muito a falta de ambição das nossas sociedades em relação a questões emocionais. Já que a nossa felicidade e bem-estar são tão dependentes do nosso funcionamento emocional, é muito estranho que abandonemos e entreguemos esta área à sorte e ao instinto. Mesmo as grandes companhias tecnológicas que detestam deixar as coisas entregues ao instinto respondem: “Ah, sim, OK, isso é um mistério”.
Voltando ao Romantismo com letra grande, cito-o: “O Romantismo diz-nos que vamos conhecer a pessoa, o que é errôneo, porque todos nós somos humanos e loucos de formas incrivelmente variadas.” Falhamos na abordagem desta loucura?
Se ouvirmos discussões que os casais têm após passarem algum tempo juntos, os maridos ou esposas estão muito zangados com o outro por ele não estar certo, por não ser suficientemente bom. Isto é frequente porque partimos da posição errada de afeto e seguimos em direção ao fundo. Como acontece com a religião. Tenho muita simpatia pela ideia católica do pecado original, que diz basicamente que todas as pessoas são pecadoras. Eu sou um judeu secular, porém acho que essa é uma ideia encantadora e um ótimo ponto de partida. Se começarmos uma relação com alguém admitindo “tenho muitos problemas, não sou nada perfeito”, esse é um bom ponto de partida. Significa que não haverá tanta autoconsciência de integridade moral, que é o verdadeiro inimigo do perdão. E o perdão é muito importante!
Você está falando de generosidade?
Eu digo em algum lugar do livro que temos de tratar uns aos outros como fazemos com as crianças pequenas, porque quando lidamos com elas somos muito generosos. É um trabalho difícil, mas somos sempre capazes de procurar uma boa explicação para o fato de, se a criança não é uma pessoa horrível, por que fez uma coisa horrível? Quando se trata dos adultos, os classificamos logo como horríveis, presumimos que o que fizeram foi para nos magoar, em vez de pensarmos que talvez estejam apenas cansados, aborrecidos, esse tipo de coisas.
Você acredita que somos muito vulneráveis, que achamos que tudo pode nos destruir por qualquer razão?
Exato! Somos muito vulneráveis e muito ansiosos. Isso é básico para todos, e achamos que é verdade para nós, mas não para os outros. Uma lição básica é acreditarmos que sabemos muito sobre nós mesmos, e tão pouco sobre os outros. Temos que acreditar que as outras pessoas têm o mesmo tipo de vulnerabilidade que nós. Não exatamente o mesmo arrependimento, mas algum arrependimento. Não exatamente o mesmo medo, mas medo. Insistimos que as outras pessoas são diferentes e projetamos isso no amor, e quando idealizamos uma pessoa achamos que ela é perfeita. Quando odiamos uma pessoa, fazemos o mesmo e achamos que ela é o diabo, um horror. E isto porque simplesmente recusamos ter a percepção de que o outro é mais ou menos como nós, uma mistura de bom e mau, estúpido e esperto.
Você disse há pouco que a maturidade é maçante enquanto assunto. No entanto, ela é essencial para a relação entre adultos. Ao crescermos, admitimos com mais dificuldade que um adulto seja imaturo?
Ser imaturo não é um insulto. Há uma obsessão tão grande por não querer ser infantil... O cristianismo é de novo interessante quando diz que todos somos crianças filhas de Deus. É um ótimo ponto de partida. A psicanálise diz o mesmo, que o adulto será chamado adulto e que tem muitos períodos, incluindo a infância, a existirem simultaneamente dentro de si. Não é um insulto, é só a realidade. Se a cultura nos enviar estas mensagens, ajuda, porque modela o tipo de conversas que as pessoas têm na cozinha e no quarto.
O conceito de normalidade é difuso.
A cultura decide o que é normal, e eu acho que a nossa ideia do que é normal não ajuda nada, deixa muita coisa de fora. Faz com que muitas pessoas se sintam estranhas. O que é normal tem a ver com as especificidades de cada cultura. Nós achamos que o século XIX foi muito anormal e que agora somos muito maduros na nossa aferição do mundo, mas não é exatamente assim.
E cada época pensa em si deste modo?
Sim.
Enquanto escrevia “O curso do amor”, você pensava no que seria normal para um casal?
Claro, quando dei o livro para o meu editor ler, ele mostrou preocupação pelos personagens serem malcriados e agressivos um com o outro. Eu perguntei a ele como ele se comporta em casal. E ele respondeu: “Tal e qual como eu e a minha mulher, não é normal.” E eu retorqui: “Por quê?” Porque não é normal para a conversa pública. A conversa pública a propósito do amor ainda é reduzida.
O que se pode fazer por ela?
A arte e a literatura deveriam ser responsáveis por trazer o amor para a conversa pública, é essa a sua função. Em sociedade, as pessoas dizem sempre que estão “bem, ótimo”, e depois vão para casa com vontade de se matar. A arte para mim é alargar o sentido daquilo que é normal, fazer-nos sentir um pouco menos solitários. A função primordial da arte é assegurar o leitor da sua normalidade, da legitimidade do seu medo, esperança, infantilidade, zanga.
A literatura hoje precisa de ter objetivos?
Está muito fora de moda ter objetivos. O modernismo centra-se no esvaziamento da ideologia e foge ao didatismo. Os artistas visuais não devem ter missões artísticas afirmadas, é considerado vulgar, ordinário. Se alguém disser: “Estou a pintar para ajudar as pessoas a serem melhores pessoas”, soa muito esquisito. Eu tenho um sentido neorreligioso, nós viemos de sociedades religiosas que nos guiavam e tinham ideias sobre sabedoria. Nem sempre as ideias certas, mas com uma fortíssima intenção moral. Isto entra em colapso no final do século XIX, início do século XX, e o que o substitui é a liberdade, a ideia de que cada pessoa é livre. Mas liberdade também significa estar sozinho, e aquilo que passa a estar no lugar da religião é a cultura. Por isso se constroem as óperas, as livrarias. Toda esta energia está realmente dizendo que a cultura pode nos guiar como a religião fazia antes. Precisamos ver como.
Quer dar um exemplo?
Se eu for à Tate Gallery e disser que me sinto sozinho e confuso, eles vão me dizer: “O quê? Não podemos ajudá-lo, somos apenas a Tate Gallery!” A Tate não é a catedral de Londres, não é um lugar de consolo. Isto me preocupa porque criamos uma cultura solitária onde é muito difícil perceber para onde podemos nos virar.
É comum crentes, em particular católicos, acusarem os ateus de terem escolhido estar sozinhos no mundo. Penso que a responsabilidade de um ateu é considerável.
Concordo, atribui um grande fardo ao indivíduo. A pessoa está sozinha, mas tem de encontrar soluções. Eu sou ateu, sempre fui, e vivo numa sociedade ateia. Ninguém é crente na Inglaterra, a Igreja desapareceu há muito tempo, a religião é uma coisa de outra época, por isso não acho que ser ateu seja uma ameaça. Imagino que em Portugal seja diferente, que haja maior presença da religião e que, por isso, a sua ausência seja mais ameaçadora.
Concorda que a religião é hoje mais vezes formulada em termos de fanatismo, extremismo, radicalismo? No caso do Sadik Khan, recentemente eleito para a Câmara de Londres, praticamente todos os comentários sobre ele o reduziam ao fato de ser muçulmano e moderado.
O cristianismo foi uma religião extremamente fanática em vários pontos da sua história. Comparado com uma religião poderosa e impositiva, é atualmente um gatinho. As religiões passam por períodos de maior e menor violência, perseguição e intolerância. O islã está numa fase parcialmente de extrema intolerância. Não me surpreende que a mídia fale de Sadik Kahn como muçulmano... mas moderado, porque os extremistas têm sido um problema.
Que tipo de impacto isso tem na sociedade britânica?
O Reino Unido é extremamente tolerante. Não porque os britânicos sejam extraordinários, mas porque há um sentido da vida pública que é fria, mas também muito tolerante. O país tem sido um lugar de tolerância religiosa há centenas de anos. No século XVII, quando os franceses estavam queimando protestantes, eles fugiam para a Inglaterra, onde ficavam à vontade. Há uma notável tolerância numa cidade como Londres. Parte da vitória de Khan se deve ao fato de as pessoas em Londres não poderem imaginar o que faria a sua autoimagem recusar um político que fosse muçulmano, ou simplesmente por ele ser muçulmano. Qualquer pessoa aqui dirá que não se julga ninguém pela sua religião!
E como vê a mudança de Boris Johnson para Sadik Khan?
Eu detestava o Boris Johnson, acho que é um homem horrível e perigoso, por isso estou muito contente que tenha saído. Espero que ele não destrua o país de outra maneira qualquer.
Já fez estragos na liderança da campanha para o Brexit, não?
Corremos o risco de fazer estragos muito sérios.
Fez um vídeo sobre Londres onde diz que a cidade se está a tornar uma má versão do Dubai e chama-lhe Dublon. Em tom de campanha, exorta os londrinos a transformarem a raiva em ação. Isso não é intervenção política?
Acho que um dos problemas das nossas sociedades é a feiura, e é muito estranho que nenhum politico assuma que o problema do mundo é ser feio. Porém, a feiura é um assunto muito importante. Muitas vezes aparece ligado à pobreza, as pessoas não dizem a palavra pobreza, mas associam a fealdade à descrição da pobreza. O mundo moderno é muito mais feio do que tem de ser, e não se trata de uma questão de dinheiro: é uma questão de ideias. Temos ideias erradas sobre o planejamento das cidades, a responsabilidade dos governos nisso, como funciona a arquitetura. Bastou que se fizessem dez grandes asneiras para que o mundo moderno tivesse um aspecto geral desastroso. Os seres humanos adoram a beleza, basta ver que quando vão de férias vão para lugares bonitos, não vão para Birmingham nem para Frankfurt, porque são lugares feios. Vão para Amsterdam ou para Veneza, porque são cidades bonitas. Mas por que é que são tão raros, por que há tão poucas cidades assim bonitas?
E podem estar rodeadas de lugares feios.
Sim, basta olhar para os arredores de Paris: não é falta de dinheiro, é um erro intelectual. E isso me endoidece! Escrevi um livro sobre isso, fiz uma série de televisão, provoquei imensa agitação e me mantive muito ativo neste debate no Reino Unido durante dez anos. Estou ligeiramente retirado agora porque me cansei. Mas ainda me preocupo, é um desespero.
Qual é o papel dos intelectuais nestes debates?
Muitas vezes, os intelectuais e os acadêmicos acham que os problemas do mundo se aprofundam no desconhecimento de uma solução. Por isso, vão para as universidades e escrevem um livro sobre a justiça, como resolver o problema da fome e da corrupção ou a feiura das cidades. Ótimo! E o mundo muda porque se escreveu um livro. Só que não funciona assim. Não basta a ideia, é preciso saber se alguém está ouvindo, se as pessoas acreditam nas conclusões a que se chega. Daí se passa à educação, à política, meios de comunicação social, tudo isso.
Dizem que vivemos na época wiki — Wikipédia e WikiLeaks: há intelectuais ativos, dispomos de informação, temos os meios, temos os instrumentos, sabemos tudo...
E não fazemos nada! A política, numa sociedade democrática, uma eleição ou um político é o resultado de todo o tipo de ações que demoram muito mais tempo. Estamos falando de cronologias diferentes. Uma eleição é o resultado de uma década de acontecimentos na sociedade, fatos muito mais lentos. O fenômeno Trump nos Estados Unidos não começou hoje. O papel dos meios de comunicação deveria ser ajudar um certo tipo de política a acontecer, porque a mídia informa a sociedade das várias questões que lhe dizem respeito. Um político só pode fazer algumas coisas com ajuda da mídia. Os políticos são o último estágio da mudança, os meios de comunicação estão antes disso na pirâmide da mudança, da mesma forma que no primeiro momento está a educação e depois a arte e a cultura.
Voltando ao novo livro: espera-se que uma história de amor caia do céu como um raio, e o que você faz é trazer a história à terra e analisá-la. É mais próximo de um caso de estudo?
Sim, eu sei que não é um livro para todos, que haverá quem recuse aquela voz analítica e exija a história, mas ela está lá. Aprendi que tenho de usar o meu prazer de escritor e escrever aquilo que gostaria de ler. Mesmo que seja pouco habitual. Há que ter a esperança de que alguns leitores gostem de um livro assim, é para isso que é preciso coragem. Este livro tocou profundamente algumas pessoas, e outras nem de raspão.
Isso obriga as pessoas a refletirem sobre as próprias vidas?
Sim, e eu não quis escrever um ensaio filosófico nem só um romance. Quis uma fusão dos dois com uma tensão permanente.
A terapia não é muito popular. Não fica mais difícil?
Concordo, há muita hostilidade contra as terapias. E é verdade que há por aí muitos psicoterapeutas malucos, mas há ideias básicas na psicanálise que me parecem totalmente corretas. Coisas básicas como dizer que a forma como amamos foi modelada pela experiência com os nossos pais me parecem irrefutáveis. Certos estilos de vínculo, o modo como nos relacionamos com outras pessoas depende do nível de segurança que sentimos quando crianças. Estas coisas têm todas uma história pessoal, e não sei como é que se poderia compreender um ser humano sem este modelo.
No seu trabalho, você dá um passo atrás para olhar a estrutura daquilo que analisa. Faz isso em termos de séculos, de história e como mecanismo para pôr os assuntos em perspectiva. É tranquilizante?
Estudei história das ideias em Cambridge, onde o treino nos dizia que cada ideia tem uma história e é sempre interessante recuar e aprendê-la. Assim podemos perceber as coisas fora do comum da nossa própria sociedade, boas ideias que ficaram bloqueadas no passado. Não diziam exatamente isto, mas foi o que aproveitei daquilo que se ensinava. Parte do papel do pensador é recuar e resgatar o que pode esclarecer as estranhezas do presente. A dada altura no livro escrevo que o romantismo defende que, quando amamos, temos de amar tudo na outra pessoa, que a crítica é sempre agressiva e negativa, não se pode pensar em educar o amante. Se recuarmos à Grécia Antiga, o amor para eles é educação. A educação é o amor de se tornar uma pessoa melhor através do amor. Temos uma ideologia do romantismo fixada em 1750 que permanece nas cozinhas de Lisboa de hoje em dia. É fascinante, adoro estas ideias que não sabemos de onde vêm, as achamos normais como se não tivessem história. Mas elas sempre têm uma história.
A compreensão pela história é uma espécie de terapia?
Sim, nos dá mais opções, abre uma janela. De repente, este casal está discutindo, e se abre uma janela pela qual podem olhar para os gregos antigos a distância.
Se lhe dá mais recuo pensar através da história, como reage à globalização?
É o mesmo princípio. Em vez de o fazê-lo através do tempo, faço através do espaço. Da mesma forma que na história podemos olhar para épocas diferentes, agora podemos olhar através de diferentes países. Hoje em dia, na China, sabe-se mais sobre o Ocidente e vice-versa, ainda que, muitas vezes, não em profundidade. A proposta vazia da globalização diz que podemos enviar uma banana para o outro lado do mundo em dois minutos. Mas a proposta interessante diz que se pode observar o relativismo de todas as convicções introduzindo mais opções, em última análise, as melhores opções para determinada sociedade. É o oposto do provincianismo, onde não se dispõe de suficientes janelas abertas e as pessoas acreditam que aquilo que pensam é tudo o que existe. O provincianismo tem uma arrogância, e eu acho que nos tornamos um pouco menos provincianos com a parte boa da globalização.
A parte boa da globalização?
Sim, lembro sempre do que Flaubert dizia a respeito do caminho de ferro: um idiota entrava num comboio em Rouen e duas horas depois saía em Paris sendo ainda um idiota. É brutal, mas significa que as pessoas podem continuar a ser provincianas independentemente dos instrumentos que tenham ao seu dispor.
Você disse que, assim como Freud, é um pessimista. Como?
Há uma diferença entre ser um pessimista e ter uma filosofia pessimista. Ser um pessimista pressupõe a expectativa de que não vale a pena fazer muito porque tudo vai correr mal. Eu não tenho esse tipo de pessimismo. Penso que a filosofia do pessimismo tem muito a ensinar-nos, em particular sobre coisas como política e amor. Porque algumas das piores características da nossa época podem ser ligadas a uma espécie de utopia furiosa, como a de Donald Trump. É interessante que Barack Obama seja extremamente pessimista. A resposta que deu para justificar não enviar tropas americanas para o Oriente Médio foi que provavelmente não faria qualquer diferença.
Não será realismo depois do que já aconteceu?
Com certeza! O que quero dizer é que isso é muito pouco comum quando estamos tão habituados à retórica do “vamos em frente, vamos resolver tudo”. O pessimismo é uma boa filosofia nos momentos em que suaviza a utopia furiosa. Pode nos tornar mais pacientes e capazes de perdoar. Eu prefiro esperar pouco e ser agradavelmente surpreendido. O pessimismo não compromete um resultado positivo, ajuda a alcançá-lo.
A promessa de solução de todos os problemas não faz parte das campanhas eleitorais?
Todo o sistema midiático e a obsessão numa eleição exagera a importância do candidato. Só que a sociedade muda por movimentos profundos e lentos. Os meios de comunicação gostam de afirmar que as grandes mudanças se devem a grandes homens e grandes mulheres. Acho que Donald Trump é um fenômeno de impaciência, ele considera tudo e todos à sua volta como lentos e afirma-se rápido. Diz que a política é lenta, e os negócios são pelo contrário rápidos. É isso que ele vende, que, se elegermos alguém dos negócios, a política adquire a velocidade dos negócios: o sonho americano. Ele esquece que a política é lenta porque foi assim desenhada para poder travar os loucos. Os fundadores da América eram obcecados pela tirania, obcecados pela possibilidade de subida ao poder de um tirano, porque era isso que eles conheciam séculos seguidos na Europa. Ao escreverem a Constituição, pretendiam dar espaço ao positivo, preparando-se para evitar um mau Presidente. A Constituição é a instância do sistema americano capaz de dar o poder a um bom Presidente.
Vivemos tempos perigosos?
Não mais do que em qualquer outra época. A experiência humana, a nossa vida é perigosa. Podemos cair mortos num segundo. Nunca pensamos nisso, mas isto é perigoso do princípio ao fim.
(Via Expresso)
Alain de Botton
Filósofo