Postado em jul. de 2018
Literatura | Educação | Sociedade | Cultura
Alberto Manguel: "É na tensão entre a imposição de regras e seu questionamento que a sociedade existe"
A realidade física das informações não basta para o entendimento completo de algo. É a literatura que abre portas para a empatia, diz diretor da Biblioteca Nacional argentina.
Vestido impecavelmente como quem se prepara para iniciar uma conferência, Alberto Manguel, 69, recebe a Folha de S.Paulo às 9h em seu escritório na Biblioteca Nacional, em Buenos Aires, instituição que preside desde 2016.
Com um cargo já ocupado por um de seus mentores intelectuais, Jorge Luis Borges (1899-1986), Manguel expandiu as atividades da biblioteca em quantidade e qualidade de conferências, exposições, digitalização de acervo, entre outras coisas.
>> Assista a Alberto Manguel - Memórias de Jorge Luis Borges
Recebeu, por outro lado, críticas quando assumiu, pois a então nova gestão do presidente Mauricio Macri havia decidido enxugar o quadro de funcionários da instituição.
Quando Manguel chegou, havia cartazes contra o governo nas paredes e certa insatisfação entre os que ficaram. O que se vê hoje é um ambiente como ele queria, mais leve e despolitizado, com uma preocupação clara de promover eventos e atividades sobre autores de distintas ideologias.
No Brasil, Manguel tem agora lançado O Leitor Como Metáfora (ed. Sesc SP), e, em abril de 2019, chegará pela Companhia das Letras o livro que há pouco terminou de escrever (Packing My Library), em que faz digressões a partir do ato de desmontar, ao lado de seu companheiro, a biblioteca de mais de 40 mil títulos que tinha numa casa na França.
Numa arejada sala que dá para o jardim da Biblioteca e que está toda decorada com obras inspiradas na Divina Comédia, de Dante Alighieri, Manguel falou à Folha. Confira abaixo:
Por que o sr. diz que O Leitor Como Metáfora é uma continuação dos temas tratados em Uma História da Leitura?
Alberto Manguel: Este sempre foi o meu tema, o que significa ser um leitor. O papel de leitor está associado ao do cidadão, porque é por meio da palavra escrita que aprendemos os códigos de nossa sociedade.
Nos dá acesso à memória da sociedade por meio de escritos dos nossos antepassados. Isso não ocorria em sociedades orais, onde a memória se transmite por meio do relato das pessoas mais velhas aos mais jovens. Ou seja, é uma memória que ocorre no tempo em que está sendo narrada.
O extraordinário da memória escrita é que a transmissão se faz pelo tempo e o espaço, como se estes não existissem. Posso conversar com Sêneca.
Isso sempre é algo positivo?
Alberto Manguel: Não necessariamente. Depende de que sociedade falamos. Se é uma sociedade que define limites ao cidadão sobre o que pode ler, é negativo.
No período da escravidão nos EUA, havia penas duríssimas a quem ensinasse negros a ler. E muitas vezes eram religiosos, interessados em que lessem a Bíblia. Quem estava no poder temia que escravos poderiam ler textos abolicionistas e pôr em risco a ordem.
Quando uma pessoa aprende a ler, pode ler tudo, e isso por muito tempo assustou quem estava no poder. Impôs-se um dilema, pois não se pode construir uma sociedade democrática em que cidadãos não leem, pois ler te permite votar, comprar, ir ao banco, trabalhar, pagar impostos.
Mas a leitura também faz com que se tenha acesso a certa visão do mundo que permite fazer perguntas. Por exemplo, a mulher não tinha há alguns anos a categoria social de pessoa jurídica. Havia coisas que não podia fazer.
A obrigação de cidadão, frente a essas leis, é, gradualmente, questioná-las. Isso leva a transformações. E é nessa tensão entre a imposição de regras e seu questionamento que a sociedade existe.
Neste livro, o sr. põe muita atenção no tema das metáforas relacionadas àquele que lê.
Alberto Manguel: Sim, e como vão mudando. Quando se começou a associar a ideia da sabedoria por meio dos livros com a da torre de marfim, o significado era diferente. Refletia prestígio.
Aquele que lia tinha acesso a uma sabedoria que os outros não tinham. [O poeta nicaraguense] Ruben Darío (1867-1916), por exemplo, falava dos poetas como para-raios celestes. É uma metáfora linda, e positiva.
No fim do século 19 e começo do 20, com a ebulição dos movimentos sociais, a ideia do intelectual na torre de marfim se tornou pejorativa, como alguém separado das sociedade, ou por ter nível intelectual mais alto, em posição hierárquica no topo, inatingível.
Hoje há metáforas ainda mais depreciativas do leitor. Você vê isso nas escolas, como se tratam os garotos que leem, são chamados de "nerds", são associados a quem se afasta da coisa pública, um ignorante, quando é todo o contrário, porque é a leitura que faz com que entremos no mundo.
E a mudança do significado das metáforas, como explica no livro, está diretamente ligada a conjunturas históricas?
Alberto Manguel: Sim, e que variam de uma sociedade para outra. Na Argentina, após a ditadura militar (1976-1983), não posso dizer que "fulano está desaparecido" só porque não o encontro para convidá-lo a uma festa. Cai muito mal, tenho que achar um sinônimo. "Desaparecido", a partir dos anos 1970, é aquele que foi levado pela repressão e nunca mais voltou.
>> Assista a Alberto Manguel - Lembranças do que lemos e vivemos
Outro tema do livro é a relação entre leitura e viagem. O que mudou, com relação aos dias de hoje, com o fato de que o leitor viaja mais? Teoricamente, ele precisa menos de livros para conhecer outros países?
Alberto Manguel: Não concordo. Podemos ler uma notícia sobre um país no qual há 9 milhões de crianças que passam fome. Somos capazes de ler isso e incorporar, e mudar de assunto.
Mas quando lemos Os Miseráveis, de Victor Hugo (1802-1885), sentimos uma empatia por esse personagem que rouba um pedaço de pão que, aí sim, nos faz ter a sensibilidade para entender algo do drama que significa 9 milhões de crianças passando fome.
A realidade física das informações não basta para o entendimento completo de algo.
Posso ir a São Paulo e conhecer algumas esquinas, hotéis, e me lembrar dos cantos que recorri, e de que havia ruído e confusão e nada mais.
Mas é só quando leio a um autor como Raduan Nassar (autor de Lavoura Arcaica, obra de 1975 que se passa numa asfixiante situação familiar no interior de São Paulo) posso ter uma ideia mais clara de como são as relações familiares, como se gera a violência nessa sociedade, e qual o peso da religião e da tradição.
A literatura me proporciona isso. Essa é a São Paulo que reconheço, procuro. E vejo nas pessoas a essência do que Nassar viu. Uma boa biblioteca proporciona muito mais conhecimento do mundo do que um pacote de viagem em que se promete "conhecer" 15 cidades em tantos dias.
Como avalia a proliferação dessas ficções de fantasia, sempre entre os best-sellers? São uma literatura escapista?
Alberto Manguel: É preciso ter cuidado com esse termo. Escapista pode ser um adjetivo para nomear uma literatura que tira uma pessoa da realidade sem levá-la a lugar algum. Como Paulo Coelho. É totalmente escapista porque é absolutamente artificial. Não há nenhum lugar na obra de Paulo Coelho em que um leitor possa entrar. Portanto é má literatura.
Eu diria que é criminosamente uma má literatura, porque dá a ilusão de que se está lendo algo e não há nada ali.
A pessoa que lê Paulo Coelho não está lendo nada.
Mas isso não se aplica a outro tipo de literatura que às vezes também é rotulada como escapista, mas que, sim, te leva a algum lugar. E aí eu mencionaria J.R.R Tolkien (1892-1973), Philip K. Dick (1928-1982) e Margaret Atwood. Eles te levam a outros mundos para que se reflita sobre este.
>> Assista a Alberto Manguel - A biblioteca imaginária
O que o sr. acha da recente polêmica sobre os que defendem boicote a artistas, escritores, cineastas que não sejam um exemplo de retidão moral?
Alberto Manguel: Isso sempre existiu. Um dos maiores escritores do século 20 é o francês Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). Era um antissemita convicto, mas os editores franceses já tinham isso resolvido.
Seus panfletos antissemitas nunca entraram em nenhuma antologia nem foram reeditados, ao menos não por editoras sérias, pois não são considerados literatura. Mas isso não nos deve impedir de admirar sua genialidade como escritor.
Esse tipo de perseguição dita moral ocorreu com outros, como Oscar Wilde (1854-1900). Diria que ocorre desde os princípios do cristianismo, quando se perseguiam intelectuais pagãos isso acontece.
Mas hoje isso está mais intenso, talvez potencializado pelas redes sociais?
Alberto Manguel: Nego-me a achar que isso deva ser levado tão à sério e, sim, me espantam os linchamentos públicos. Margaret Atwood escreveu uma carta contra a expulsão de um professor da Universidade de British Columbia que foi afastado ao ser acusado de assédio por uma aluna.
Ela escreveu não defendendo o suposto assédio, obviamente, mas lembrando que não podemos saltar etapas do julgamento justo, senão voltaremos à barbárie. E só por isso, recebeu críticas muito violentas de grupos feministas.
É muito assustador o nível das reações nos dias de hoje, nesse sentido estou de acordo. Mas sempre houve essa cobrança sobre a vida pessoal dos intelectuais.
Como se deve combater isso?
Alberto Manguel: (Risos) Não sei, como combater a estupidez? Creio que com educação, leitura, bom senso. Mas a estupidez também sempre esteve aí, então confesso que não sei. Acho que se todos aprendermos a ler, pode ser que sejamos menos estúpidos, menos preconceituosos, mas tampouco isso é uma garantia.
Alberto Manguel
Escritor