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Postado em abr. de 2021
Filosofia | Psicologia e Saúde Mental
Andrei Venturini Martins: Quando o céu desaba...
Andrei Venturini Martins apoia-se na mitologia egípcia com o deus Shou para refletir sobre as formas de contingência que angustiam a humanidade e fazem o homem questionar o sentido da vida
Por Andrei Venturini Martins
Há um mito do antigo Egito que conta a história do deus Shou, o deus dos ares. Antes mesmo da existência do céu, homens e deuses viviam sobre a terra. Tal relação era conturbada, principalmente para o lado mais frágil, aquele dos homens, constantemente aturdidos pela poderosa violência das divindades. O caos reinava. A fim de conter o atrito entre as partes beligerantes, Shou assentou seus pés sobre a terra e levantou com seus fortes braços o peso inestimável do céu. Por essa ação, exilou os deuses na abóboda celeste e os homens, aparentemente aliviados, puderam desfrutar dos benefícios da terra sem a coação das divindades. O drama humano de outrora havia se dissipado pela ação divina, mas uma ameaça ainda rondava o coração dos mortais: a ordem corrente estava sempre ameaçada, pois, a qualquer momento, Shou poderia deixar o céu desmoronar sobre os homens. Para atenuar esse risco permanente, os mortais honravam o deus dos ares – como era conhecido – e mantinham, por meio dessa estratégia, um equilíbrio precário.[1]
A narrativa egípcia nos convida a pensar: às vezes, parece que Shou sai de férias. Quando isso acontece, o céu desaba, o peso do firmamento recai sobre nossas cabeças e nos apresenta uma das características mais marcantes da condição humana: a contingência. Em meio a um cosmos gigantesco, experimentamos nossa fragilidade quando nos deparamos com a violência do mundo, que se apresenta pelas doenças, pela fúria da natureza, ou quem sabe pelas dificílimas relações humanas.
As enfermidades nos revelam que temos um corpo que, com o passar do tempo, ganha autonomia: quando você é jovem, provavelmente possui uma razão capacitada para dar as diretrizes da ação, conduzindo seu organismo para onde quer que seja. Todavia, quando a idade já está avançada, o corpo ganha autonomia e, praticamente, passa a mandar em você. A Razão diz: Vou à biblioteca e, em seguida, passarei em um café. No entanto, o corpo impera: Alto lá! Hoje ficarás em casa com dores nas costas a lhe roer os ossos. É a voz da contingência expressa pela carne. Corpo é destino, por mais criativa que seja a medicina, carregamos conosco um cadáver.
Além do corpo, o que dizer da “mãe natureza”? Seus ventos movem moinhos e ajudam a navegar. Contudo, pelos furacões, arremessam nossas casas ao chão e carregam as tempestades que, pelo agito do mar, afundam os barcos. A terra, às vezes, entra em colapso e engole, com seus tremores, homens e animais. Há ainda os tsunamis, que rompem os limites das praias e, num instante, aniquilam cidades inteiras. Ciente dessa expressão da contingência da natureza, David Hume, filósofo escocês do século XVIII, dispara: “Tudo isso não nos oferece senão a ideia de uma Natureza cega, embebida de um grande princípio vivificador, que despeja de seu regaço sua prole defeituosa e degenerada, sem qualquer discernimento ou cuidado maternal”.[2] A Natureza, essa força cósmica, longe de se apresentar de forma orgânica e ordenada, com nexos causais, adequando as partes e o todo, mais parece nos apresentar os ecos da contingência, daquela desordem que nos ameaça e da qual, para os egípcios, só poderíamos ser resguardados pela benevolência de Shou.
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Mas ainda que estivéssemos protegidos das invectivas dos deuses, quem nos livraria da violência humana? As leis poderiam vir em nosso auxílio e nos socorrer sem demora? Não para Blaise Pascal, o pensador da contingência e da fragilidade humana em meio à aurora do pensamento moderno: “O furto, o incesto, o assassínio das crianças e dos pais, tudo teve seu lugar entre as ações virtuosas”.[3] As leis podem ser parâmetros de como deveríamos viver, mas não bastam para nos livrar da violência alheia. Há quem as transgrida pelo simples prazer de transgredir. Nas Confissões, a mais conhecida obra de Santo Agostinho, o filósofo narra o roubo de algumas peras, um acontecimento aparentemente insignificante, entretanto capaz de ilustrar a contingência que marca as relações humanas. Agostinho, ainda adolescente, apesar de ter frutas mais suculentas disponíveis em sua casa, invade o terreno de um vizinho com um grupo de amigos e furta bens alheios. Mais tarde, já como bispo da cidade de Hipona, dá o seu diagnóstico: “fizemos aquilo pelo prazer do proibido”.[4] O jovem de 16 anos fez o mal pelo prazer de transgredir, ou melhor, não havia outra causa em sua “maldade senão a própria maldade”.[5] É comum encontrarmos casos, evidentemente de grande repercussão pública, em que filósofos, sociólogos, antropólogos, psiquiatras e psicólogos suam a camisa a fim de darem uma explicação adequada aos crimes de sangue: parricídio, fratricídio etc. Penso que, para além das possíveis causas profundas ou superficiais que determinam um crime hediondo, não podemos deixar de considerar o diagnóstico agostiniano: o homem é mal e, por vezes, mata porque gosta. É uma explicação aparentemente rasa, mas possível, e que revela uma vontade humana corrompida, cindida entre o bem e o mal. Apesar da vilania humana, decerto ainda há cooperação entre as pessoas, como muito bem destacou o filósofo inglês Roger Scruton, em julho de 2019, em sua conferência no Fronteiras do Pensamento – e a prova disso são cidades inteiras, continentes gigantescos, que vivem a maior parte do tempo em relativa paz e não em guerra. Não obstante, o grande mestre de Viena, Sigmund Freud, dizia que em meio ao armistício aparente há muitíssimas pessoas civilizadas que “não se negam à satisfação de sua cobiça, de seu prazer em agredir, de seus apetites sexuais, não deixam de prejudicar outras com mentiras, fraudes e calúnias se puderem fazê-lo impunemente, e assim sempre foi, ao longo de muitas épocas da civilização”.[6] A impressão de Santo Agostinho, na antiguidade tardia, e aquela de Freud, no século das duas grandes guerras, não estão tão distantes: o homem, abandonado em si mesmo, está disposto a prejudicar seus semelhantes, desde que isso lhe seja favorável.
Mas se a contingência mostra suas garras pelas adversidades externas – doenças, natureza e relações com os outros –, não podemos nos esquecer da dramática “existência de um mundo interno”.[7] A contingência também irrompe de dentro, do coração, das profundezas da alma: “Porque ou se pensa nas misérias que se têm ou naquelas que nos ameaçam. E ainda quando se estivesse bastante protegido por todo o lado, o tédio, com sua autoridade própria, não deixaria de sair do fundo do coração, onde tem raízes naturais, e de encher o espírito com o seu veneno”.[8] No século XVII, tédio [ennui] significava uma tristeza profunda que se levanta do mais íntimo do nosso ser, e, quando isso acontece, o homem – e principalmente o jovem – passa a “sentir o seu nada sem o conhecer, porque é ter muita infelicidade estar em uma tristeza insuportável”.[9] Além do tédio, Pascal aquilata a erupção de outros afetos, como “o negrume, a tristeza, a mágoa, o despeito, o desespero”.[10] Esse é o quadro psicológico da contingência, uma espécie de mal-estar que nos habita no âmago de nosso ser e, assim como a guerra e a peste, sempre nos pegam desprevenidos.
Nesse caso, a contingência apresenta-se como uma expressão dolorida do inferno espiritual em que o homem está imerso, e do qual ninguém está imune, já que o céu de Shou pode desabar a qualquer momento, como bem destacou um dos pensadores mais proeminentes do século XX, Albert Camus: “Cenário desabar é coisa que acontece. Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o ‘por que’ e tudo começa dentro deste cansaço tingido de espanto”.[11] Essa sensação de desorientação diante do mundo, de falta de sentido, é a aquilo que Camus chamou de sentimento absurdo. Trata-se da percepção não somente da fragilidade humana diante da engrenagem violenta e indiferente do universo, mas da dificuldade de atribuir sentido a uma existência que nos escapa. Contudo, a percepção do caos pode ser uma oportunidade. É justamente quando Shou abandona o céu e o mundo desaba sobre nossos ombros que o absurdo se revela, trazendo consigo os traços da contingência. Nesse crudelíssimo momento, estaríamos aptos a responder à questão mais relevante da existência, indagação da qual ninguém poderá se esquivar: vale a pena viver?
Quando o céu de Shou desaba, sentimos as dores do mundo, abrimos os nossos olhos para o absurdo da existência, para o caos. E, mesmo diante da contingência que fere o corpo, que nos ameaça pela força da natureza, que nos tira dos trilhos quando falhamos na difícil arte de conviver com os outros – ou que irrompe soberana do profundo de nossa alma como tristeza profunda –, ainda podemos conservar o amor pela vida, reconhecendo-a como um valor inestimável, como pensava Camus: “No apego de um homem à sua vida, há algo mais forte que todas as misérias do mundo”.[12] O simples esforço para permanecer vivo, apesar da contingência que nos ataca de todos os lados, é uma confissão: vale a pena viver. Essa é a vida autêntica, desprovida das ilusões, ciente de que a existência está plena de luzes e de sombras.
Quando o céu desaba e renascemos para a vida tal qual ela é, somos convidados a pensar, e “começar a pensar é começar a ser atormentado”.[13]
[1] Rüdiger Safranski. Le Mal ou le Théâtre de la liberté. Trad. Valérie Sabathier. Paris: Bernard Grasset, 1999, p. 13-14.
[2] David HUME. Diálogos sobre a religião natural. Trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 159.
[3] Blaise PASCAL. Pensées, Laf. 60. Bru. 294.
[4] Santo AGOSTINHO. Confissões. 2ª ed. Trad. Lorenzo Mammì. São Paulo: Companhia das Letras, II, IV, 9.
[5] Santo AGOSTINHO. Confissões, II, IV, 9.
[6] Sigmund FREUD. O Futuro de uma Ilusão in Obras Completas. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 242 (Volume 17)
[7] Idem, Pulsões e Destinos da Pulsão in Escritos sobre Psicologia do Inconsciente (1911-1915). trad. Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2004, p. 147. (Volume I)
[8] Blaise PASCAL. Pensées, Laf. 136. Bru. 139.
[9] Ibid., Laf. 36. Bru. 164.
[10] Ibid., Laf. 622. Bru. 131.
[11] Albert CAMUS. Le mythe de Sisyphe: essai sur l’absurde, p. 29.
[12] Ibid., p. 22.
[13] Ibid., p. 29.
Andrei Venturini Martins, é professor no Instituto Federal São Paulo e pesquisador do Labô/PUC-SP.