Catherine Millet responde: o perigoso poder que queremos ter sobre os outros

Postado em jul. de 2018

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Catherine Millet responde: o perigoso poder que queremos ter sobre os outros

Seres humanos ideais, contidos e moldados ao que desejamos que sejam. Uma perigosa utopia, diz Catherine Millet, que estaria voltando com alguns movimentos feministas.


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A crítica de arte e escritora francesa Catherine Millet foi a conferencista do Fronteiras do Pensamento Porto Alegre desta segunda-feira (02), no Salão de Atos da UFRGS.

Millet iniciou a conferência abordando a questão das redes sociais – o novo “Fórum da democracia” - onde todas as questões são discutidas publicamente, o que nos conduziria a potenciais de agressividade antidemocráticos. A autora utiliza o fenômeno de linchamento oriundo das redes como chave para pensarmos os novos movimentos de militância, dentre eles, o #MeToo.

Uma das principais críticas feitas por Millet aos movimentos feministas diz respeito a um desejo utópico de criar um novo homem. Um homem contido, que se autocensura frequentemente e que estaria se tornando o ideal dos jovens de hoje: “É a retomada da ideia de criar homens ideais, que controlem seus desejos, que nunca cedam aos seus impulsos, que saibam dosar o seu comportamento”, declarou. Contudo, esclareceu, isso é um antigo sonho da humanidade em geral, que independe da luta feminista. Por isso, é ainda mais perigoso ceder às tentações deste desejo: "a questão vai além de uma tomada de poder. É uma tentativa de moldar o outro para que ele seja como desejamos. É uma miragem, um sonho extremamente perigoso."

Na conferência, a escritora respondeu perguntas do público e da mediadora, escritora e professora Kathrin Ronsenfield. Dentre elas, estava a Pergunta Braskem, enviada por nossos seguidores nos canais digitais. Confira abaixo e não esqueça: Catherine Millet estará no Fronteiras São Paulo nesta quarta-feira. Garanta sua participação!

No Brasil, é comum ouvirmos músicas que denigrem as mulheres e estimulam a violência feminina. Há muitas mulheres que apreciam e que até são as compositoras e cantoras destas letras, sendo que algumas, ao mesmo tempo, defendem os direitos das mulheres. A senhora afirma que “somos todos repletos de contradições”, mas é possível defender ideias diametralmente opostas nesta questão?

Catherine Millet: Nesse caso, acho que talvez exista uma coerência, que consistiria em distinguir o que está no campo do real e o que está no campo do simbólico. Eu mencionei que, muitas vezes, a violência verbal pode evitar efeitos de violência física. Acho que é o mesmo caso aqui.

É claro que homens e mulheres terão sempre uma guerra em curso até o fim dos tempos. Eles se amam muito, mas se amam sempre mantendo a situação em pé de guerra. Então, sempre teremos músicas agressivas em relação às mulheres, assim como sempre haverá músicas agressivas em relação à perspectiva dos homens. Essa guerra que existe entre nós é irredutível e, às vezes, até pode ser comunicada de forma bem-humorada, sem consequências físicas. Acho que isso é importante.

Na minha opinião, tudo bem essas canções existirem e que as mulheres as cantem. Acho que homens e mulheres precisam criar as suas próprias canções e eventualmente elas serão agressivas em relação aos homens também, não só às mulheres.

A senhora tocou de uma forma muito clara na necessidade de defender os direitos das mulheres e tudo aquilo que os movimentos emancipadores defenderam. Mas, por outro lado, criticou os excessos promovidos nas mídias sociais. Onde a senhora vê a grande diferença das mídias sociais? Será que essa diferença está no fato de que, nas mídias sociais, nós nos escondemos numa espécie de anonimato e que elas criam uma espécie de um simulacro de uma praça pública, mas não aquele encontro corpo a corpo que a democracia normalmente produziu?

Catherine Millet: É inteiramente diferente estar fisicamente confrontado a um interlocutor que vai responder e dessa forma precisamos assumir a nossa opinião face a quem nos escuta. Nas redes sociais, nós realmente nos escondemos no anonimato e existe também outro fator: nas redes, muitas vezes, existe uma seleção. Você posta uma mensagem e alguém vai responder, mas geralmente quem vai responder são aquelas pessoas que estão de acordo com você. Pouco a pouco, isso cria uma comunidade homogênea e distancia a pessoa de quem teria uma opinião conflitante ou em oposição ao que ela pensa.

As pessoas muitas vezes ficam por trás de um computador e se deixam levar, não tendo o menor controle sobre o que dizem. De certa forma, é como se estivessem sozinhos no mundo. Eles se deixam levar como alguém se deixa levar quando nos tiram do sério ou nos deixam muito chateados. Às vezes, isso acontece realmente, mas, se a pessoa está na sua frente, você não vai chamá-la de idiota.

Você diz que as francesas sabem se defender de situações de sedução. Sabemos nas situações extremas, mas qual a sua opinião sobre a permissão implícita que os homens se dão para assediar as mulheres?

Catherine Millet: O que me vem à mente é um artigo que apareceu na revista Marie Claire. Esse artigo falava sobre mulheres que abusam dos homens e foi interessante, por que a revista Marie Claire é bem feminista e segue de perto todos os desdobramentos do movimento #MeToo. Não sei por que eles decidiram publicar esse artigo, mas ele me tocou muito.

Eu sou casada há muitos anos com um homem que vivenciou isso. Ele é escritor e um dia uma mulher escreveu para ele uma mensagem e ela realmente perseguiu o meu marido durante meses. Não houve abuso físico, porque evidentemente uma mulher não tem essa possibilidade de, pela força física, limitar ou abusar de um homem. Mas o abuso verbal e o abuso simbólico - o fato de telefonar o tempo inteiro, enviar mensagens, aparecer na portaria ou diante da casa de alguém -  me parece muito grave.

Existem casos de abusos que se transformam em uma grande obsessão para a pessoa que sofre com essa experiência. É claro que, na legislação francesa, seja homem ou mulher, pode-se denunciar ou abrir um processo contra alguém que faz esse tipo de coisa. O meu posicionamento contra o #MeToo não quer dizer que eu ignoro todos os delitos cometidos pelos homens contra as mulheres. 

Considerando as diferenças culturais, a senhora fundamenta a posição de que a mulher deve ter o controle sobre de ter filhos, reconhece a situação de estupro e reconhece ainda que há poucos países em que as mulheres têm direito ao aborto. Então, há essa grande diferença entre a França, onde o direito ao aborto é liberado, e muitos outros países onde nem em situação de estupro isso é possível.

Catherine Millet: Eu conheço o fato de que há essas lutas e que as conquistas não são as mesmas em todos os países. Como eu disse no início da minha exposição, eu falo a partir do meu lugar e da minha experiência pessoal. É importante dizer que eu sou francesa, sou parisiense e vivo num certo contexto social. A vida que eu tenho e a vida das mulheres do meu contexto é completamente diferente das situações vivenciada por milhões de mulheres ao redor do mundo que não têm a oportunidade de viver em uma sociedade tão tolerante e aberta quanto a minha.

Justamente por ter essa consciência, sei que muitas denúncias que são feitas dentro desse contexto do #MeToo são de jovens meninas ricas e mimadas que reclamam por que um homem teve uma conduta inapropriada com elas em uma festa ou em uma noite qualquer. Mas, como comparar isso a uma situação extrema de uma mulher que foi estuprada e não pode recorrer ao aborto? Acho que existe uma grande distorção entre alguém que é vítima de estupro e pequenos incidentes, por exemplo o dessa jornalista que reclama que em um happy hour um homem fez um comentário machista. Essa desproporção é o que me fez agir em relação ao manifesto, porque acho que estamos misturando muito as coisas e os casos. 

A consolidação do feminismo não seria algo que pertence à classe intelectual? Como comparar as mulheres francesas intelectuais às mulheres oprimidas do terceiro mundo? Acho interessante entrar nessa longa tradição das mulheres intelectuais francesas que, a partir dos séculos XVII e XVIII, desenvolveram todo um mundo cultural e, de certa forma, criaram um companheirismo com os homens. A coragem das suas colegas de se manifestarem em público não pertence a essa tradição especificamente francesa?

Catherine Millet: É por isso que eu dizia agora há pouco que eu falo do meu ponto de vista burguês parisiense. Venho de um meio totalmente privilegiado que tem como herança uma longa tradição.

É claro que temos exemplos de mulheres totalmente emancipadas que participaram da vida intelectual, literária e também política do meu país. Mas, estamos falando de questões ligadas à sexualidade: se a emancipação sexual das mulheres não tivesse ocorrido, a sociedade não teria evoluído de tal maneira no nosso continente. Se esse movimento feminista não tivesse ocorrido no final do século XIX e início do século XX, com as mulheres pedindo direito de voto e também de emancipação sexual, acredito que isso não teria acontecido.

Em maio de 1968, falávamos de uma revolução sexual e essa revolução sexual não teria acontecido, porque para uma revolução sexual acontecer precisamos dos homens e também das mulheres assumindo essa liberdade sexual. Nós, mulheres, participamos não somente no campo intelectual, mas também no campo da emancipação sexual – o que foi fundamental. 

Muitas jornalistas estão sofrendo no exercício da profissão e esse é um assunto muito discutido aqui no Brasil. A senhora pode comentar qual a sua opinião a respeito disso?

Catherine Millet: Não conheço casos no campo do jornalismo, como você perguntou agora. Mas, com muita frequência, me refiro a uma entrevista que a atriz Juliette Binoche deu ao jornal Le Monde, quando perguntaram se ela já havia passado por situações comparáveis às das atrizes de Hollywood (que acusaram um grande produtor de abuso sexual). Ela respondeu o seguinte: “Sim. Já aconteceu comigo. Eu sabia que perderia a oportunidade de interpretar aquele determinado papel e eu não cedi.”

Nesse tipo de situação, as mulheres precisam pesar os riscos que elas estão passando, pensando no que vão ganhar se cederem e no que elas vão perder. Durante toda a nossa vida, teremos escolhas desse tipo e é necessário, em certo momento, decidir o que queremos ou não fazer. Reconheço que são situações às vezes muito difíceis de serem vivenciadas, mas eu diria que temos sempre a escolha de dizer não. Estamos falando do mundo do cinema, mas poderia ser do mundo do jornalismo também. É claro que não estamos falando de meios sociais em que a vida das mulheres é bem mais difícil e onde as escolhas e alternativas profissionais são bem mais difíceis de serem encontradas. 

Não existe por trás desse movimento #MeToo uma luta pelo poder? Essa pergunta retoma uma discussão que nós tivemos antes do evento começar, quando você tocou na questão dos métodos totalitários. Acho que é importante vermos essa questão de uma forma mais clara.

Catherine Millet: Todos buscam ter poder, mais ou menos. Às vezes, queremos ter poder no contexto da nossa família ou no contexto de um casal, ou às vezes buscamos um poder mais amplo.

Acho que respondi sua pergunta, quando falei que existia por parte dessas mulheres o desejo de transformar os homens, de moldar os homens para que eles fossem como elas desejam. Este é um sonho antigo e um sonho que foi extremamente negativo no século XX, porque justificou algumas utopias políticas que tiveram consequência muito drásticas.

A questão vai além de uma tomada de poder. É uma tentativa de moldar o outro para que ele seja como desejamos. É uma miragem, um sonho extremamente perigoso. Enquanto mulher, acho que essas mulheres que buscam transformar os homens começam a ter sucesso. Na minha opinião, muitos jovens homens na nossa sociedade são tão submetidos ao feminismo que estão dispostos a aceitar todas as críticas feitas pelo feminismo. Até mesmo através de confissões públicas em programas de TV eles dizem mea culpa. Eu acho meio agressivo ver que esses homens estão fazendo confissões públicas desse tipo em frente às câmeras. 

 

Qual foi a experiência que você viveu após as reações ao manifesto na França? O feedback da imprensa e da opinião pública foi violento? Houve mais pessoas que se identificaram com o manifesto ou mais reações de desaprovação?

Catherine Millet: A França, como sempre, se dividiu em dois. É claro que recebemos uma reação bem agressiva por parte de feministas, o que foi horrível. Mas acho que as minhas colegas coautoras, que são mais jovens, sofreram um pouco mais, porque elas estão nas redes sociais. Eu não estou em nenhuma rede social, então eu não li todas as ofensas que foram feitas contra mim. As minhas amigas mais jovens sim, elas liam tudo o que foi escrito contra elas e algumas vezes sofreram muito com isso.

Em seguida à publicação do texto, eu recebi muitos depoimentos que me tocaram muito, de mulheres que sofreram um estupro quando eram jovens e não quiseram se fechar no trauma. Elas superaram e retomaram a vida através da psicanálise, outras conseguiram com psicoterapia, outras através do seu próprio trabalho. Os depoimentos que mais me tocaram foram de mulheres que disseram: "Sim, esses problemas existem e aconteceram comigo, mas eu fui capaz de seguir adiante e isso não mudou a minha relação com os homens."

Considerando a idade dessas mulheres que assinaram o manifesto, você acredita que há algum hiato geracional que favorece a atual vitimização?

Catherine Millet: Acho que a mais jovem das coautoras tinha 35 e a mais velha 88 anos. Eu estou mais perto da mais velha do que da mais jovem, infelizmente. Várias gerações estavam ali representadas e muitos fizeram essa observação com relação à idade e se sentiram no direito de nos repreender, dizendo que nós pertencíamos a uma geração ultrapassada. Como muitas mulheres estavam ali representadas, eu não acredito que seja uma questão ligada à geração. Acho que o que determina o posicionamento das mulheres nessa situação é bem mais a relação que elas têm com o próprio corpo, a maneira que elas percebem o próprio corpo e a relação deste corpo com os outros.

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Catherine Millet

Catherine Millet

Crítica de arte e escritora

Crítica de arte e escritora francesa, é fundadora da Art Press.
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