Como a China se movimenta no tabuleiro geopolítico da nova Guerra Fria

Postado em out. de 2021

Economia e Negócios

Como a China se movimenta no tabuleiro geopolítico da nova Guerra Fria

Para avaliar alguns elementos que movem as peças no tabuleiro da geopolítica mundial, conversamos com Paulo Fagundes Visentini, do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais da UFRGS.


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O Fronteiras do Pensamento – Era da Reconexão lança no dia 13 de outubro a conferência do historiador britânico Niall Ferguson, um dos mais respeitados analistas dos movimentos que impactam e regulam dois campos indissociáveis: política e economia. O campo de estudo de Ferguson, autor de livros referenciais como “A Ascensão do Dinheiro” e “Civilização”, é amplo e interconectado, como são as relações internacionais no mundo globalizado, abarcando temas como poder das redes sociais, crise climática, ascensão de líderes populistas e a nova Guerra Fria, que tem agora Estados Unidos e China nos papéis protagonistas.

Para avaliar alguns desses elementos que movem as peças no tabuleiro da geopolítica mundial, conversamos com outro reconhecido especialista na área, Paulo Fagundes Visentini, professor aposentado de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com entre outras titulações, pós-doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics. Atualmente Coordenador do Núcleo Brasileiro de Estratégia e Relações Internacionais da UFRGS, Visentini é autor de, entre outros livros, “O Caótico Século XXI”, “Por que o Socialismo Ruiu?” e “A Relação Brasil-África”.

O historiador Niall Ferguson, um dos convidados da edição 2021 do Fronteiras do Pensamento, entre os temas que costuma abordar, destaca a nova Guerra Fria em curso, com os Estados Unidos tendo a China como antagonista, no lugar antes ocupado pela antiga União Soviética ou atual Rússia. Como o senhor observa o peso que a China mostra ter nas relações políticas e econômicas do cenário internacional?

Estamos na esteira de uma série de problemas estratégicos não equacionados desde o fim da Guerra Fria, entre eles como estabelecer relações internacionais mais estáveis. A Guerra Fria era um conflito estável, era bem regulado, seja pelo equilíbrio da ONU, seja pelo equilíbrio armamentista que existia. Havia um grau de previsibilidade muito grande. Da década de 1970 para cá, o mundo vem se tornando mais complexo, e o fim da Guerra Fria tornou difícil uma linha diretriz na política internacional. Faltava um adversário equivalente para os Estados Unidos poderem focar o seu poder e manter a estrutura do mundo ocidental. Na ausência deste concorrente, a tendência que a globalização e a revolução tecnológica trouxe é de uma concorrência maior entre as grandes potências industriais. A Europa, em geral, começou a ter diferenças com os Estados Unidos na política agrícola, na política cultural, que se tornou extremamente importante com as mídias eletrônicas, na indústria aeroespacial, na exportação de armamentos. Do outro lado do mundo, o Japão se acomodou e aconteceu algo inesperado. A China, que parecia que se acomodaria num patamar intermediário, continuou crescendo. 

A revista Economist tem um mapa que mostra o mundo em 2000 e em 2020, com os países que tinham comércio predominante com os Estados Unidos e com a China. Na América Latina, só Cuba e Paraguai tinham relações comerciais com a China, assim como poucos países da África. Agora, toda a América do Sul, toda a África, a maior parte da Europa e do Oriente Médio e do resto da Ásia tem com a China sua relação econômica principal. Então, o problema é como acomodar essa China industrial, com esse peso, principalmente quando começou a entrar nas tecnologias sensíveis, como o 5G e uma estação espacial própria. Fez um avanço tecnológico que julgavam que ela não conseguiria fazer. Isso tudo está muito associado à economia mundial. Provavelmente vai haver uma pressão brutal para que a China faça concessões em várias áreas e se faça uma divisão de mercado, seja por produto ou por região. Este é um ponto bastante sério, mas que do Donald Trump para o Joe Biden não mudou nada. Pelo contrário, o que o Biden fez foi costurar alianças melhores.

Com a retirada dos EUA do Afeganistão e a menor influência da Rússia, analistas apontam que a China será uma peça importante na geopolítica da região. Qual sua avaliação?

A China tem desenvolvido formas de manter aberto os grandes corredores navais para importar e exportar, é nisso que está fixada, essencialmente. Existe uma entidade chamada Organização para a Cooperação de Xangai. Nos anos 1990, quando a União Soviética estava uma anarquia e havia contrabando, tráfico, terrorismo e dificuldade de tocar a economia, criaram essa organização, com China, Rússia e as mais importantes repúblicas da Ásia Central, primeiro como um órgão securitário. Essa organização conseguiu estabelecer políticas comuns para controlar os problemas e foi alargada recentemente com a entrada da Índia e do Paquistão. Ali dentro se vê que é muito importante economicamente para a China construir as novas rotas da seda, abrindo corredores de exportação e desenvolvimento e também corredores de importação que garantem seu abastecimento. A China já tem como ter acesso ao Oriente Médio por terra. Esse crescimento chinês deixa a Rússia um pouco preocupada. 

A Rússia é um país que perdeu muito desde o fim da União Soviética, tem um declínio demográfico e é de difícil governabilidade. Essa contínua reeleição do Putin não é prova de força, mas de debilidade. Ele é alguém que consegue fazer o país funcionar, porque os interesses lá dentro são muito diversos e não tem mais uma doutrina do partido, como tem na China. Mas Rússia e China são países aliados porque a política norte-americana é a de confrontá-los. A Rússia, em função de sanções do Ocidente, como a imposta por sua ação na Ucrânia, vende gás para a China. Temos em jogo a permanência daquela geopolítica de impérios terrestres e impérios marítimos, basicamente Estados Unidos e Reino Unido, que se sentem ameaçados por esse crescimento chinês, porque não têm como projetar poder para dentro dessa massa continental, como foi visto no Afeganistão. 

No caso do Afeganistão, que importância estratégica tem esse país?

Para as riquezas da Ásia Central escoarem não para dentro da Rússia, mas para o oceano e para o mundo, precisam passar pelo Afeganistão e pelo Paquistão. E o Afeganistão desorganizado cria um problema enorme. Os Estados Unidos saíram e deixaram a batata quente para os chineses. É por isso que os chineses já estão conversando com os talibãs há um tempo, para negociar ajuda econômica em troca de estabilidade, nada de apoiar movimentos terroristas e coisas do gênero. Essa rota de acesso ao mar passa por um corredor de desenvolvimento que começa no Tibete, atravessa todo o Paquistão e vai até o porto de Gwadar, na entrada do Golfo Pérsico. Uma instabilidade no Afeganistão pode ameaçar essa rota que estão construindo, que tem ferrovia, rodovia, oleoduto, gasoduto e polos industriais.

Existe a ameaça de novos conflitos armados no Afeganistão?

Pode haver problemas se o Talibã não tiver uma certa moderação e não conseguir quadros para governar. E tem a questão do ópio. O Afeganistão ficou responsável pela produção de 80% do ópio no mundo e a Rússia cobra muito que o país elimine essa produção, porque alimenta o tráfico e a criminalidade. Estamos vendo golpes de estado, como em Mianmar, país que estava muito próximo do Ocidente. Os militares reassumiram o poder e o Ocidente pegou meio leve para eles não irem demais para o lado da China. Está acontecendo também em países africanos. Tem revolta na Etiópia, onde tem muito investimento chinês, aconteceu ainda a derrubada do governo da Guiné, que tem seus minérios explorados. Vai haver um jogo de pressão muito forte até que se encontre um modus vivendi. E tudo isso está coberto por uma nuvem, que é essa crise da pandemia e a crise econômica. Não dá para esquecer que 2018 e 2019 foram anos economicamente ruins e problemas políticos que poderiam decorrer disso foram atenuados pelo foco na pandemia. Governos voltaram a unir a sociedade, e as pessoas atribuem dificuldades como o desemprego não ao governo, mas à pandemia. É um momento novo e diferente de tudo o que a gente já enfrentou no passado.

Que impacto pode ainda ter questões relacionadas à pandemia do coronavírus, como a vacinação que não avança no mesmo ritmo em diferentes países, ou por desigualdade econômica que prejudica os países pobres ou campanhas contra a vacina em países desenvolvidos?

A questão da não vacinação está associada a todo esse processo de erosão da democracia. Na Rússia, contra o Putin, o Partido Comunista cresceu muito e a razão do crescimento foi porque viu que tinha gente que não queria se vacinar e fez campanha contra a vacina. São pessoas que estão se voltando para um comportamento irracional, rejeitando a visão democrática. É um fenômeno que me parece estar presente em muitos países. Depois dos protestos de Hong Kong, viram que as mídias sociais são instrumentos de entrada desse tipo de subversão, e o que estão fazendo, por exemplo, na China é blindar essas coisas, para não ter possibilidade de turbulência política.

O agravamento da crise dos imigrantes pode ser outro fator de desestabilização?

Tem de se prestar muita atenção nisso. Em 2020, saiu um relatório da ONU sobre a população mundial, com previsão dos países onde vai haver crescimento. Tem países da África, da Ásia Central e de parte do Oriente Médio. O Paquistão, um país pequeno, já passou a população do Brasil. No final deste século, até a população de Angola será maior do que a do Brasil. A nossa população vai começar a declinar em 30 anos, vamos voltar a ter 180 milhões de habitantes, temos recursos naturais e vamos atrair imigrantes. Mas muitos querem ir para lugares mais ricos, onde a população está envelhecendo. A globalização e os conflitos como o do Afeganistão permitiram que pessoas de lugares que não tinham nenhum tipo de informação a tivessem. O Talibã não deixava ver televisão. De repente, entram os americanos, dólar, consumo, a população aprende a língua e entende como essas pessoas pensam e agem. Agora, de repente, volta o Talibã. Se a pessoa trabalhou para os aliados, fala inglês, fez contatos, o que vai fazer? Quer cidadania americana, europeia. Isso vira um fenômeno de massa. Os Estados Unidos têm tradição de receber imigrantes, mas agora se vê um fluxo desordenado pela fronteira, muitas vezes organizado por gangues. Na Europa é diferente. Nos últimos 200 anos, as pessoas saíram da Europa e agora estão indo para a Europa, onde parte da população está desencantada, principalmente nos países do Leste Europeu, onde pensam: “o comunismo não resolveu os problemas, aí veio o capitalismo e a democracia e a situação de não ter dinheiro”.

É um cenário que facilita o surgimento de líderes populistas?

Na crise de 2008, eu estava dando um curso na Inglaterra e em uma semana 200 mil poloneses que trabalhavam com construção civil voltaram para Polônia. Os governos desses lugares (leste europeu) começaram a desenvolver uma narrativa antiliberal, antiocidental para tentar governar como o Putin. Em épocas de crise, a população se volta para esses líderes fortes em busca de uma solução, e eles se sentem empoderados e criam narrativas, como as que se voltam contra os imigrantes.

Outra crise grave a ser enfrentada está relacionada ao meio ambiente. Esse tema tende a se ampliar no debate político e interferir diretamente nas relações internacionais?

Vai crescer de forma política e de forma prática, como o derretimento de geleiras que afetará a agricultura e o clima em uma série de regiões do mundo. Uma região que é exportadora pode virar importadora. A China divulgou um documento dizendo que vai acabar com a queima de carvão de forma urgente. Mas para combater a catástrofe climática tem de mexer no modelo da sociedade de consumo. Olha as coisas jogadas no mar, garrafas pet, lixo. Estão se formando nos oceanos verdadeiras ilhas com esse material. Como surgiu essa coisa de usar tanto plástico? Foi na tentativa de baratear produtos e alargar mercados. Não há uma consciência coletiva e nós vamos ter efeitos econômicos muito sérios em relação a isso. E se juntar a isso o problema demográfico, vai se mexer na planilha de custos do sistema capitalista.

E qual o papel do Brasil nesta questão ambiental?

O Brasil pode até ter uma política institucionalizada de meio ambiente, mas não aplica direito essa política. Na questão do desmatamento, não é só o grande fazendeiro que desmata. Conheço bem uma parte da Amazônia e o hábito que o pequeno camponês tem de, em vez de ficar três quatro dias limpando uma área para plantar, tocar fogo. E muitos problemas ambientais estão nas cidades. As leis não são cumpridas e quando são é na base do exagero, como o sujeito que serra sem autorização um pedaço de árvore que está caindo em cima do seu telhado, dos fios, e pode ter um problema enorme, enquanto nesse mesmo momento estão sendo destruídos milhões de hectares de mata e sendo jogadas toneladas de lixo nos rios. É preciso cumprir a legislação e ter cuidado com as pressões internacionais, que às vezes aparecem com boas intenções, mas podem trazer elementos políticos. O Brasil vai ter de reconstruir sua imagem não com palavras, vai ter de mostrar algumas ações. Hoje, a gente está na lista vermelha não só para entrar com a vacina de covid em outros países, existe uma desconfiança. Seria importante esse debate sobre o meio ambiente sair da estagnação entre uma elite intelectualizada que defende o tema abstratamente, os que querem degradar a qualquer preço em nome do desenvolvimento e os que têm a visão realista de que é preciso mudar padrões de consumo e de comportamento. E isso não se faz só com a população, as empresas vão ter de se adequar a isso.

Que saldo a experiência desta pandemia ainda não totalmente controlada deve deixar no mundo?

A minha visão é positiva de médio a longo prazo. No curto prazo, acho que as pessoas pioraram. Estamos vendo o comportamento do cada um por si. Quem tem o salário garantido e pôde se proteger ficou em casa tranquilo. Mas a segurança dele é a insegurança do entregador que está correndo na rua. Num primeiro momento essa tendência egoísta de salvar o que é seu, de recuperar o que perdeu, vai ser muito forte. Em nível de países, vai ter um querendo se reconstruir às custas dos outros. O que vai solucionar isso são projetos políticos que encaminhem a questão ambiental, a questão social, a questão econômica, as formas de governança. Os votos nesses líderes bizarros são também votos de protesto. Precisa de um projeto político que tenha autoridade, em que as pessoas possam confiar. Olha como a China começa a mexer com o comportamento de seus milionários. Se o sujeito deve imposto, esconde dinheiro no exterior, faz negociata, botam na TV, mostram o julgamento, e ele vai preso, perde a empresa e a população sente uma resposta. E no resto do mundo não há muitas respostas. Nos Estados Unidos não se consegue fazer a metade trumpista da população se vacinar. É uma loucura que um Estado como a Flórida, que depende do turismo, viva essa situação.

 

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