Postado em abr. de 2021
Filosofia | Literatura
Conheça "O anel de Giges", novo livro de Eduardo Giannetti
A fábula de Giges, presente no segundo livro da República de Platão, é o tema do mais novo livro de Eduardo Giannetti.
Confira a seguir um excerto de O anel de Giges, livro mais recente de Eduardo Gianetti pela Companhia das Letras:
Prefácio
O corpo vê-se; o coração adivinha-se. Silêncios, segredos, manobras, despistes. Que sabem os outros do que nos vai pela alma? O que sabemos, afinal, nós mesmos? Respeito às leis e costumes morais à parte, o que significa ser — não só parecer — ético? Como a certeza da impunidade mexeria com o nosso modo de ser e agir? Introduzida por Gláucon, irmão de Platão, no livro 2 da República, a conjectura do anel de Giges nos provoca a um duelo a um só tempo intelectual e pessoal. Quem é quem é?
A ideia é simples — e aberta a todos. Desde que nos damos por gente, a vida em sociedade nos faz atores; ela nos educa e afia, em atos e palavras, na arte de expor e ocultar. Imagine a existência de um anel que faculte ao seu dono o privilégio de ficar invisível ao olhar alheio: ao simples girar do engaste no dedo a pessoa desaparece e, ao retorná-lo à posição normal, ela volta a ficar visível aos olhos de todos. O anel de Giges é o salvo-conduto da invisibilidade: transparência física, nudez moral.
Um caso-limite é como uma situação corriqueira exposta a condições extremas ou vista ao microscópio — impelida a revelar meandros e desnudar segredos de outro modo ocultos. O anel nos faz espectadores de nossas vidas em circunstâncias inusuais. Livre de receio e ameaça de punição legal; liberto das amarras e inibições da opinião alheia, o que a prerrogativa da inimputabilidade revelaria sobre o caráter e a alma de cada um? O que afinal desejaríamos do fundo do coração com o anel no dedo?
Não tenho a pretensão de responder por ninguém. Ouso, contudo, arriscar: se o leitor imagina que tem a resposta na ponta da língua e que sabe verdadeiramente quem seria e o que faria de posse do anel, a leitura deste livro terá o dom de fazê-lo interrogar-se, desconfiar de si e — possivelmente — mudar de ideia. Se não for o caso, é porque falhei como autor.
O experimento mental da fábula de Giges permite abordar o comportamento humano e a ética pelo prisma do anel. O que esperar de uma pessoa comum detentora do anel? Como provavelmente reagiria e o que faria com tal poder? Humilde pastor, o Giges da fábula de Gláucon transfigurou-se: foi para a capital do reino, seduziu a rainha, assassinou o rei com a cumplicidade dela, usurpou o trono da Lídia, tentou subornar os deuses e tornou-se fabulosamente rico. A posse do anel atiçou a fera da ambição desmedida e fez visível o sonho de glória e poder adormecido em sua alma. Mas quão representativo ou generalizável é o modelo do Giges-sem-lei?
E mais: a conjectura da invisibilidade permite questionar como responderiam as diferentes tradições e escolas de pensamento ético — platônica e cristã, kantiana e utilitarista — diante do desafio do anel. Em que circunstâncias, se é que alguma, seria moralmente justificável recorrer ao manto da invisibilidade? Qual a relação entre ética e felicidade? Como busco mostrar no livro, a prova do anel ajuda a explicitar e analisar o que há de errado com os ideais de perfeição e plenitude humana das principais correntes e tradições da ética ocidental.
O desafio, porém, não se restringe a saber o que os demais fariam (o previsível) ou a conceber o que deveriam idealmente fazer (o desejável). O teste da fábula se aplica às terceiras pessoas, mas cobra respostas de cada um. Ele nos provoca a abordar o anel pelo prisma da vida: não com as antenas de uma fria curiosidade ou simples exercício teórico, mas como questão pessoal.
Liberdade para quê? Se eu puder agir sem medo de represália ou ameaça de punição; se puder despir o que há de falso e ator em mim e aposentar a elaborada persona sob a qual me protejo ao cumprir as exigências da vida em sociedade, preservar a estima dos que me são queridos e exercer meu papel na divisão do trabalho, o que virá à tona e se revelará sobre quem sou realmente?
Um registro fiel do que nos vai pela mente requer mais que sinceridade; requer trabalho, autodisciplina e, sobretudo, coragem moral. Nas pegadas de Rousseau, embora por outras vias, não me esquivei da encrenca. O diálogo e o devaneio em primeira pessoa do Postscriptum (“Desenredo”) se propõem a responder ao desafio. Se não há nada nele que não tenha sido vivido, também não há nada que seja igual ao vivido.
Quem tem um projeto, o projeto o tem. O anel de Giges é fruto de longa e obstinada gestação. O primeiro contato que tive com a fábula de Platão remonta a meados dos anos 1980, quando o meu trabalho de doutorado sobre o papel dos intelectuais e das ideias filosóficas na política e na mudança social como inevitavelmente me levou a mergulhar na República. A semente germinou. Esboços preliminares do que viria a ser este livro passaram a frequentar meus cadernos de estudo a partir de janeiro de 2000. Em leituras, conversas e intermitências ruminativas passei a manter o radar de pesquisador em estado de alerta para as possibilidades de desenvolvimento dos temas, problemas e desdobramentos suscitados pela conjectura do anel. Trabalho de formiga.
A passagem dos anos, porém, fez surgir a questão: até quando? Ao revisitar, no início de 2019, décadas de apontamentos, referências e ideias embrionárias, senti que o projeto amadurecera. Hora de agir. Transferi-me para Tiradentes, no interior de Minas Gerais, e dediquei um ano sabático à tarefa de burilar e redigir o Anel. A primeira versão completa do texto ficou pronta na exata semana de março de 2020 em que a catástrofe da Covid-19 aportou de vez em solo brasileiro. A quarentena forçada da pandemia — na cola do meu isolamento voluntário em Minas — incitou-me a investir infinitamente na revisão da escrita e na incorporação de críticas e sugestões recebidas.
Palavras não pagam dívidas, mas permitem expressar gratidão. A longa gestação deste livro torna impraticável nomear a todos que apoiaram e inspiraram a realização do projeto — a lista resultaria a um só tempo embaraçosamente longa e ainda assim omissa. Sinto-me feliz, contudo, em poder registrar meu agradecimento aos amigos e amigas que generosamente se dispuseram a ler e comentar — em alguns casos mais de uma vez — os sucessivos manuscritos e revisões do texto: André Lara Resende, Christine M. W. da Fonseca (Chris), Cristina Franciscato, Fernando Moreira Salles, Hélio Schwartsman, Joel Pinheiro da Fonseca, Jorge Sabbaga, Luiz Fernando Ramos (Nando), Luiz Schwarcz, Márcia Copola, Marcos Pompéia, Maria Cecília L. G. dos Reis (Quilha), Otávio Marques da Costa, Persio Arida e Roberto Viana. Como procuro sustentar no Anel, toda a filosofia do mundo não vale uma boa amizade.
Capitulo 17
Os poderes e os limites do anel: physis e nómos
O Giges da fábula da República encontrou o anel de ouro no dedo de um cadáver. O corpo de tamanho anormal estava nu dentro de um enorme cavalo de bronze enterrado no solo. Quem era o antigo dono do anel? Como teriam sido sua vida e últimos dias? Em que circunstâncias ele foi parar onde estava — faleceu ou matou-se? São perguntas intrigantes, talvez, mas que nos levam a querer saber mais sobre a fábula do que nossa única fonte autoriza; somente um novo — e ainda mais caprichosamente fantasioso — diálogo dos mortos poderia arriscar a vã pretensão de tentar respondê-las.
O elemento de cuidadosa encenação dá à fábula um caráter enigmático. É mal dos enigmas, todavia, provocar e repelir o seu decifrar. Algumas inferências, não obstante, parecem plausíveis: o antigo dono do anel estava visível (isso é certo) e provavelmente sozinho no momento do óbito (a nudez é sugestiva). Além do mais, não deixou o anel como herança ou legado para outra pessoa, mas preferiu (ao que parece) ser enterrado com ele. A descoberta de Giges acontece por obra do acaso: um tremor de terra abre a fenda que lhe faculta o acesso ao cavalo. A curiosidade fez o resto.
Seja como for, contudo, o fato decisivo é que o antigo possuidor do anel estava morto. Embora o talismã confira um extraordinário poder e faculte ao seu detentor viver como se fosse “um deus entre os homens”, no dizer de Gláucon, ele não dá a prerrogativa da imortalidade. A imagem de um cadáver nu portando um anel, dentro de um mausoléu soterrado sugere mesmo um quê de sinistro ou macabro na cena fabulada por Platão.
A distinção entre physis (termo grego equivalente ao latim natura e raiz de palavras como “física”, “fisiologia” e “fisioterapia”) e nómos (grego: “lei; convenção; costume” e raiz de “anomia”, “isonomia” e “economia”) ajuda a elucidar os limites e os poderes do anel. Abstraindo por ora a questão do uso substantivo do anel na vida prática, o que se pode (ou não) alcançar por meio dele nas relações com as coisas e as pessoas?
A physis designa o que é por si mesmo, independentemente de vontade ou escolha humana: o fluxo espontâneo da matéria e da energia no espaço-tempo; as regularidades do mundo natural; os automatismos do corpo e da biologia. O nómos, por sua vez, denota o campo das leis, convenções e normas humanas; os costumes, opiniões e percepções socialmente compartilhados por uma comunidade.
A senescência e a morte biológica, por exemplo, pertencem à physis; o modo como cada cultura lida com os idosos e os usos e costumes referentes à disposição dos mortos (sepultamento, cremação, antropofagia, embalsamamento etc.) são expressões do nómos. A fome, a sede e o desejo sexual fazem parte da physis; as diferentes formas por meio das quais buscamos saciar, regular e expressar socialmente essas pulsões pertencem ao nómos e refletem as normas e convenções vigentes. A digestão dos alimentos e o corpo nu são physis; a dieta e o pudor da nudez (ou sua ausência) são nómos.
Os automatismos da physis, como a gravidade ou a reprodução celular, são iguais em toda parte e invariantes no tempo, ao passo que as leis, convenções e regras morais do nómos admitem enorme variabilidade entre diferentes culturas e no curso da história.
O invariante no caso do nómos não é o teor das normas — pois nem mesmo interdições de amplo alcance como o incesto, o infanticídio e o canibalismo têm adesão universal —, mas o fato de que nenhuma sociedade reconhecivelmente humana prescinde de algum tipo de normatividade. Assim como, apesar da enorme diversidade das línguas, não existe linguagem sem gramática, de igual modo não há sociedade humana possível sem nómos, ou seja, um código moral amplamente compartilhado definindo o que é proibido ou permitido, obrigatório ou facultativo.
Entre os componentes da gramática de convivência inerente a toda sociedade humana, não importa o seu substrato ou colorido específico, encontram-se normas restringindo a violência e o homicídio, governando a divisão de afazeres e a distribuição dos bens e, ainda, regulando as relações entre os sexos e o tratamento de crianças, idosos e deficientes. Pertence ao domínio do nómos a existência de padrões de rigor ou de maior ou menor tolerância no cumprimento de promessas e na exigência de veracidade nas trocas verbais.
A diferença crucial entre physis e nómos está no modo como nos relacionamos com eles. A physis é parte da ordem imutável das coisas. As leis naturais podem ser usadas e manipuladas em nosso benefício pela técnica, mas jamais subvertidas em sua essência: o avião desafia a gravidade medindo forças com ela ao decolar e, depois, servindo-se dela ao pousar; a engenharia genética se pauta pela estrita aderência às leis da biologia molecular; a fissão nuclear libera a energia latente nos átomos.
“A natureza é dominada obedecendo-se a ela”, como observou Francis Bacon, o profeta renascentista da ciência a serviço da tecnologia. A pretensão humana de domínio, todavia, tem limites. A natureza ferida e desgovernada, como o aquecimento global, a desertificação e a frequência de eventos climáticos extremos revelam, só obedece a si mesma.
Com o nómos é diferente. As leis, normas e convenções da vida em sociedade são criações humanas e passíveis de crítica e subversão na sua essência. Práticas, usos e costumes considerados aceitáveis e legais no passado (como, por exemplo, a escravidão, a segregação racial, a prisão de homossexuais e a proibição do voto feminino) tornaram-se aberrações cruéis e escandalosas aos nossos olhos. É plausível supor, de igual modo, embora longe de garantido, que práticas e costumes correntes hoje em dia, em áreas como relações de trabalho, desigualdade de gênero e racial, trato de idosos, meio ambiente e direitos animais, serão vistos como aberrações éticas e até criminosas pelas gerações futuras.
Ao contrário das leis universais e imutáveis da physis, que não podem ser revogadas, alteradas ou desobedecidas, a possibilidade de criação, revisão e transgressão das regras é inerente ao universo do nómos. Fruto da liberdade humana e dos imperativos locais de sobrevivência e convivência; resultado longamente sedimentado dos acertos e desacertos da história e da experimentação amarga na busca de uma ordem justa e harmoniosa (ou, ao menos, não violenta), o nómos é parte da ordem mutável das coisas — para o bem ou para o mal.
À luz desse contraste, cabe então perguntar: como fica o anel? O que se pode — ou não — fazer de posse dele? O poder conferido pelo anel é agudamente desigual. Quase nulo frente à fatalidade das regularidades e leis inexoráveis da physis, porém radical no âmbito das normas, exigências e interdições do nómos.
O dono do anel, como qualquer mortal, não escapa da physis. A prerrogativa de ficar invisível não significa que o corpo (e tudo que ele implica) deixe de existir; significa apenas que ele deixou de refletir a luz. O anel amplia drasticamente o campo de escolha, mas em nada modifica a atuação das leis da physis nas relações do seu detentor com os objetos e ocorrências do mundo natural ou, ainda, com todos os demais seres vivos não humanos (exceto, eventualmente, permitindo a ele acercar-se de um animal arredio sem ser visto ou escapar ileso de um ataque feroz).
O mesmo se aplica ao corpo do proprietário do anel: o tempo fará dele o que faz de qualquer um. Como todo mamífero, ele está igualmente sujeito às enfermidades do organismo e às mutações celulares defeituosas; à ação de vírus e bactérias; à dor e ao prazer; à sonolência, ao sono e à insônia; e ao declínio e dissolução causados pela fuga irreparável dos anos. No devido tempo, se nenhum acidente, desastre natural ou doença incurável encurtar seus dias, ele não se furtará a descobrir-se às voltas com “o solene sentimento da morte que floresce no caule da existência mais gloriosa”.
Inteiramente outra é a potência do anel na província do nómos. Se a physis não poupa e impõe limites, a invisibilidade detona um big bang de possibilidades ao introduzir uma radical desigualdade no universo das relações humanas.
Imune, se e quando lhe apraz, a toda forma de ameaça ou represália pelos seus atos, o dono do anel não tem por que deixar de agir, se assim desejar, por constrangimento externo ou temor de sanção penal. A posse do anel lhe faculta neutralizar todo o aparato de recompensas e punições artificialmente criado pela moral, instituições e leis humanas visando restringir o campo de escolhas e, entre outras coisas, proteger-nos da violência e injustiça alheias. Sem risco de flagrante, reprovação ou penalização, o balanço de custo-benefício das oportunidades de ação na vida prática e nas relações pessoais e afetivas se altera radicalmente.
A posse do anel instaura uma profunda disparidade de poder na interação humana. Ela reduz todos os que lidam com o proprietário do anel à condição de meios potenciais para os fins e as pretensões de um só. Como um tirano ou demiurgo, mas ainda mais inimputável e inatingível que eles, o dono do anel está apto a manipular as pessoas sem que elas sequer se deem conta do que efetivamente lhes sucede. Ele as torna incapazes de toda resistência de um modo tal que, mesmo frente às maiores provocações, abusos e violações de direitos, elas se veem impotentes para expressar o seu ódio, cobrar justiça ou fazer sentir os efeitos do seu ressentimento.
Embora sujeito às consequências naturais dos seus atos — pois, como adverte o bispo anglicano Joseph Butler, “os efeitos de uma carreira de prazeres dissolutos são com frequência mortais” —, o dono do anel está absolutamente isento, se assim desejar, de arcar com a responsabilidade pelas consequências humanas de suas ações e violações do marco moral e legal do nómos. Responde apenas a si.
Situações extremas são reveladoras. O anel multiplica os meios e oportunidades, mas não elege os fins. A liberdade para ser livre não predefine o que faremos dela. Imagine então, caro leitor, que por estranhos e inesperados caminhos o anel de Giges veio parar no seu (ou meu) dedo. E agora?
Pause e reflita por um momento nisto: o que você faria de posse do anel? Inimputável porém finito, respondendo apenas aos seus desejos e consciência, como você lidaria com o vertiginoso big bang de novas possibilidades? Que concepção da melhor vida povoaria os seus sonhos e guiaria os seus atos? O que a posse e o uso do anel revelariam a todos — e a você mesmo — sobre cada um de nós?
Eduardo Giannetti
Economista