Postado em ago. de 2017
Sociedade | Cultura | Mulheres Inspiradoras | Ativismo e Causas Humanitárias
Cultura e feminismo na atualidade: Camille Paglia responde à Pergunta Braskem
Crítica cultural norte-americana falou sobre feminismo, homossexualidade e cultura pop em conferência no Fronteiras Braskem do Pensamento.
Sem meias-palavras ou incertezas, Camille Paglia falou ao público do Teatro Castro Alves, em conferência no Fronteiras do Pensamento em Salvador, na noite desta terça-feira. O estilo direto da crítica cultural é característica marcante de uma narrativa que cruza amplo conhecimento de diversas áreas - da tradição clássica à cultura pop, das artes visuais ao feminismo, da religião à psicanálise - além das experiências pessoais de Paglia.
Longe de ser consenso, as ideias da pensadora norte-americana estão contidas em obras como Sexo, arte e cultura americana, Vampes & vadias, e o recente Free women, free men – Sex, gender, feminism, ainda não traduzido para o português. O feminismo na atualidade, considerando suas particularidades na era das redes sociais, é um assunto recorrente nos escritos da autora. Sempre circulando entre muitos assuntos, com associações intelectuais de grande erudição, mas ao mesmo tempo acessíveis ao grande público, Paglia teve nas questões de gênero um dos pontos centrais abordados em sua conferência.
A fala da crítica cultural norte-americana no Fronteiras em Salvador foi estruturada a partir de questões feitas pela escritora e atriz Bruna Lombardi. Além das perguntas elaboradas pela própria mediadora, foram feitas questões pelo público do teatro, e também a Pergunta Braskem, selecionada a partir das questões enviadas pela audiência dos canais digitais do Fronteiras do Pensamento. Confira abaixo a resposta.
As sociedades matriarcais foram muito raras na história da humanidade. O patriarcado sempre deu as cartas neste jogo. E, até hoje, em tempos onde o intelecto é o que prevalece, sofremos com a sombra da força física. A força é dos homens? A força é das mulheres? Como fazer entender que todos devem conviver juntos, independente de seus gêneros, aptidões ou níveis intelectuais?
Inicialmente eu tenho que dizer que a minha definição de feminismo é o feminismo de equidade, eu estou focalizada em oportunidades iguais para as mulheres. Eu acredito que na verdade deveria ser essa a iniciativa: de remover obstáculos para que as mulheres possam avançar na parte política e também profissional. Mas o que eu constantemente digo nos meus escritos é que não podemos jamais resolver problemas que existem entre homens e mulheres na área privada, onde nós temos a questão da atração sexual, do romance, do irracional envolvido. Eu acredito que isso tem sido um erro do feminismo atual, imaginar que estratégias de emancipação para as mulheres na área pública podem ser transferidas para a área privada, e podem ser forçadas, impostas através de regulamentações.
A questão que você colocou em relação à violência contra as mulheres, eu já escrevi sobre isso no meu primeiro livro Personas Sexuais. Eu já disse que as mulheres têm um grande poder, enorme. De maneira metafísica, filosófica, um poder imenso na vida natural, um poder imenso no lado emocional, e que os homens entendem isso, e muitas vezes se sentem sufocados pelo poder da mulher. Eu acredito que existem poucos estudos sobre o que era chamado antes de psicopatologia do comportamento criminal. Na Índia, onde há episódios de estupro em massa, nós temos a evidência do medo irracional que os homens sentem em relação à mulher e do poder da mulher sobre eles. E da maneira como eles utilizam a única coisa que eles têm, a força, para então restaurar o seu sentimento de identidade. As mulheres têm que entender isso, as mulheres não entendem o poder que elas têm sobre os homens. Eu acredito que as mulheres jovens hoje - que sabem que elas podem fazer qualquer coisa, ter qualquer tipo de trabalho, ser chefes de um estado, de um país - na verdade pararam de entender esse nível irracional e a ligação que todo homem tem em relação à sua mãe, mesmo quando eles não conhecem a sua própria mãe. Todos os homens no planeta terra foram moldados no corpo de uma mulher. Eu acredito que existe uma forma de consciência nas fases mais tardias da gravidez, uma forma de memória sensorial dessa totalidade do corpo da mulher, e a liberação que o nascimento traz para o menino.
Eu vejo crimes acontecendo em todos os lugares, constantemente, nós vemos isso nos EUA igualmente, temos mulheres que são raptadas, mortas, estupradas, e não há nenhuma tentativa de entender isso. Crime após crime após crime, existe uma recusa de lidar com isso no feminismo, a única maneira que eles podem entender isso é simplista: os homens são brutais em relação às mulheres. Sem nenhum tipo de estudo em relação a esse cenário total. Esse sentimento que o homem tem algumas vezes de se sentir pequeno em relação à mulher. Um homem que levanta a mão a uma mulher está mostrando que ele é um infantil, que se sente impotente e pode apenas utilizar o abuso. E para que possamos lidar com isso, o feminismo deve começar a entender e estudar a psicologia.
Hoje, há um abandono da psicologia. Freud é a melhor maneira de entender os problemas das famílias burguesas modernas, e a ideia de que Freud era sexista é ridícula, completamente ridícula, esse homem era um gênio. Ele tinha uma habilidade de interpretar sonhos, da maneira como o corpo poderia fazer uma sabotagem, de como o inconsciente poderia brincar com o ego arrogante, e falando do superego como sendo a voz internalizada de seus pais, então existem todo tipo de ambiguidades e complexidades no relacionamento de uma criança com seus pais. Em muitas maneiras Freud pra mim abre uma porta para o entendimento dos fenômenos psicológicos, e muito disso está indo embora. O que eu estou tentando dizer aqui é que a brutalidade de um homem em relação à mulher deveria ser entendida como sendo uma ofensa em relação à honra. Uma ofensa em relação à ética deve ser vista num cenário amplo não apenas como crime sexual, mas como uma coisa que nós não podemos tolerar na sociedade. Não podemos na verdade aceitar um homem agredindo outro homem. O que eu digo é que neste novo período, onde as pessoas mais sofisticadas, mais educadas não acreditam mais na tradição, na religião, na moralidade tradicional, nós deveríamos ensinar o raciocínio ético a níveis elementares na escola, para que tenhamos a consciência de comportamentos éticos de um cidadão para outro cidadão, e não constantemente fazermos esse drama, essa telenovela sobre a forma como os homens abusam as mulheres, como os homens sendo as entidades más. Nas teorias feministas isso é um veneno que tem feito com que seja difícil para as próprias mulheres chegarem à felicidade.
Nesse cenário de homens se sentindo como inferiores em relação ao poder das mulheres, e reagindo a isso de uma forma agressiva, as mulheres conscientes de seu poder estão usando na plenitude o poder que elas têm em mãos? Como podemos realmente empoderar essas novas mulheres, numa sociedade pós-industrial, que tem um emprego, que tem filhos, que se dividem entre muitas tarefas, muitas vezes sendo elas que sustentam a família; como devolver essa auto-estima, esse poder a elas, e como criar ética neste novo feminismo?
Sim, eu acredito que existem muitos problemas na sociedade contemporânea. No catolicismo moderno, nós criamos essa liberação para a mulher, quando na primeira vez na história, há apenas 150 anos, as mulheres puderam obter essa independência econômica, e não estavam mais ligadas às obrigações de um pai, um marido ou um irmão. Existe um sistema novo de empregos, mas existem outras doenças psicológicas nesse mundo, pois as pessoas vão para um escritório, homens e mulheres que trabalhando lado a lado, como nunca trabalharam juntos, durante toda a história da humanidade. Voltando cem mil anos atrás, nunca houve essa proximidade física, executando os mesmos trabalhos, as mesmas tarefas, como vemos hoje. Acredito que por um lado, as mulheres têm muitas opções, já que elas são livres, podem pagar suas contas, mas ainda estamos tentando descobrir como os sexos podem conviver e trabalhar juntos nesse novo ambiente.
Constantemente estou tentando atrair atenção para o fato de que na era agrária, que precedeu a atual era tecnológica, havia uma divisão do trabalho: o mundo dos homens e o mundo das mulheres. Os sexos não tinham muito contato. As mulheres então de muitas gerações tinham muito mais poder em relação às suas habilidades. Por exemplo, na cozinha, cerâmica, costura, bordado, existia uma felicidade que as mulheres tinham no mundo delas. Eu me lembro muito bem porque a minha família veio da Itália. Quatro dos meus avós e a minha mãe nasceram na Itália. Essa cidade inteira de italianos veio para os Estados Unidos trabalhar nas fábricas de sapatos no norte de Nova York. E eu me lembro dessas gerações múltiplas, a alegria, todos cozinhando juntos, conversando, essa energia. E os homens estavam lá na fábrica, chegavam em casa, sentavam, bebiam café, conversavam, havia muito pouco contato entre os sexos. Muito da nossa infelicidade vem do fato de que os sexos estão tendo muito mais contato durante o dia do que jamais tiveram.
Onde quer que eu vá, eu encontro as mulheres das classes mais altas em áreas profissionais onde elas estão infelizes e não sabem porque, e eu digo que é porque elas perderam alguma coisa muito importante nessa transição desde a área agrária: a solidariedade entre mulheres. Eu acredito que muitas mulheres profissionais colocam muita pressão sobre os maridos. Querem que eles sejam companheiros, que conversem da mesma maneira como elas conversam com suas amigas mulheres. Mas homens não conversam com mulheres e não estão interessados nas mesmas coisas, apenas os homens gays. Então os homens também estão sofrendo, eles também perderam a sua identidade natural como homens na era agrária. O feminismo é muito duro com os homens, não entendem o que eles perderam. E é por isso que eu sinto que é errado criticar os homens que estão utilizando a pornografia na internet. Deixa eles olharem, recuperarem o que eles são. Eu sinto que as mulheres ficarão mais felizes se pressionarem os homens menos. Nós já vimos o feminismo dizer “os homens devem mudar para se tornarem como mulheres”. Tudo aquilo que é distintamente masculino agora está sendo definido como patológico, como impedimento para a civilização. Foram os homens que criaram essas grandes estruturas da civilização, foram os homens que permitiram que eu fosse livre como mulher e que me tornaram uma aluna, pensadora, escritora. Eu sou muito grata aos homens, eu já aprendi como pensar pelo ponto de vista do homem. E a maneira como o feminismo sempre está falando contra os homens, insultando e reduzindo os homens, isso é a fonte de muita infelicidade das jovens mulheres, é uma doença. Esse pensamento anti-masculino que vemos entre as feministas é um impedimento para a saúde física e psicológica das mulheres, isso deve parar.
Camille Paglia
Ensaísta e crítica cultural