Denis Mukwege no Fronteiras SP: "A vida só pode ser vivida quando a gente vive pelos outros"

Postado em ago. de 2019

Sociedade | Medicina | Ativismo e Causas Humanitárias

Denis Mukwege no Fronteiras SP: "A vida só pode ser vivida quando a gente vive pelos outros"

Nobel da Paz foi o convidado desta quarta no Fronteiras São Paulo. Mukewege fez um apelo aos homens pela igualdade de gêneros e pela justiça entre todos.


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O fim do silêncio de vítimas de estupro representa um avanço no combate à violência contra a mulher, mas é preciso ir além, sobretudo porque cada vez mais crianças são visadas por criminosos.

O apelo é do ginecologista Denis Mukwege, vencedor do Nobel da Paz em 2018. O médico participou do Fronteiras do Pensamento 2019, nesta quarta (21), em São Paulo. No palco do projeto, trouxe uma lição sobre a temática do Fronteiras 2019, os Sentidos da Vida.

O Nobel da Paz iniciou sua fala lembrando do pai, sua primeira inspiração na luta que trava até hoje:

“O coração de meu pai, sua compaixão e seu amor por seus fiéis, e especialmente pelos doentes, tem sido uma fonte de inspiração para mim. A partir do sacerdócio de meu pai, que não via outra forma de vida para ser útil e fornecer solução ao sofrimento dos outros, eu rapidamente compreendi que o significado da minha vida era dedicá-la a ajudar os outros.”

Mukwege denunciou o silêncio da comunidade internacional em relação aos horrores que ocorrem em seu país e lançou um apelo para que os homens se unam à luta pela igualdade de gênero:

“Paz, justiça e igualdade de gênero continuam sendo as palavras de ordem para um Congo e um mundo sem violência, onde as mulheres podem viver livres do medo de serem perseguidas."


Após sua fala pela igualdade, o Nobel da Paz respondeu as questões do público presente e a pergunta enviada por vocês, nossos seguidores nas mídias sociais, oferecidas pela Braskem. Confira a resposta de Denis Mukwege à questão enviada por e-mail e as principais respostas do convidado.

Pergunta Braskem: A violência contra a mulher é um problema mundial. Na sua opinião, para minimizar isso seria eficaz uma ação global dos governos (com leis internacionais específicas, por exemplo), ou ações locais e pontuais, já que cada lugar tem um tipo de violência diferente, causas diferentes, questões diferentes?

Cada região tem sua especificidade. Mesmo a República Democrática do Congo você vai ver que há grupos armados que não começam os estupros da mesma forma, são estupros que são planejados, organizados.

Nós temos alguns países, como o Iraque, em que as mulheres são escravas sexuais vendidas de um homem para o outro apenas para essa humilhação, por não considerarem elas como humanas.

Quando você vai no Sudão do Sul é muito mais uma depuração étnica em que as mulheres são engravidadas apenas para fazer uma depuração da etnia. No Congo é usado como uma arma em um conflito econômico por controle dessas minas. Na Colômbia são outras razões. Quando você fala com as vítimas sírias, nas prisões de Assad, são ainda outras razões pensadas para desencorajar os maridos que estão no front da guerra.

O uso do estupro se tornou global, em conflitos o estupro é usado por razões diferentes, mas isso converge no uso como uma arma contra o inimigo, para dissuadir o inimigo, ou para objetivos militares. E nós não podemos resolver esse problema de maneira local, eu acho que a expressão do sofrimento é universal. Quando você fala com as mulheres, sejam elas da América Latina, da Europa, do Kosovo, da Bósnia, da Ásia, do Sudeste: a expressão da dor é universal, o sofrimento é o mesmo.

Na nossa sociedade, infelizmente, seguimos um modelo patriarcal, no qual a mulher não é considerada como igual ao homem. Eu penso que aí está a origem do problema. Hoje, é muito importante que a gente possa lançar o combate no plano global sobre a questão da igualdade de gêneros, e que isso pode ser resolvido por leis, com a sensibilização, com a educação.

Nós participamos todos dessa masculinidade tóxica na qual em alguns países as gravidezes de sexo feminino ainda são abortadas. Você imagina, em uma cultura assim, em que se mostra que para viver tem que ser garoto, menino, e quando é uma menina se faz um aborto, quando o menino vem ao mundo nessas condições, depois de 5 abortos da sua mãe, que é a 6ª gravidez que deu o menino. Esse menino nunca vai ter o sentimento que ele é uma pessoa igual a uma menina, da mesma sociedade.

É nossa responsabilidade poder lutar contra essa desigualdade criada. Não é uma desigualdade biológica, mas uma desigualdade criada, que nós criamos para poder colocar as mulheres no sistema patriarcal.

A luta tem que ser global, tem que ser universal. Os homens têm de se colocar de pé e considerar as mulheres como nossos alter egos e poder defender as mulheres; as mulheres lutaram durante cem anos para terem o direito de voto, para ter o direito da igualdade. As mulheres lutaram para obter isso e nós, homens, temos que apoiá-las para que realmente possamos atingir essa igualdade de gênero, que é muito importante, que permite reduzir as violências que a mulher sofre na nossa sociedade. 

 

 
 
 
 
 
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Durante todos esses anos no hospital, onde o senhor vê de perto situações horríveis que se repetem todos os dias, como se fosse uma coisa interminável, o que o senhor faz para se manter com esse espírito todos os dias e continuar trabalhando?

É verdade que hoje meu trabalho mudou muito e é muito difícil enfrentar. Muitas vezes, eu me encontrei em uma situação em que eu tinha perguntas existenciais, questões existenciais, e eu me perguntava para que servia continuar vivendo quando você vê uma criança estuprada por um adulto, completamente arrebentada, destruída.

É verdade que é revoltante e faz a gente se questionar muito em relação a tudo que tem a ver com a existência, mas eu tenho que dizer que hoje eu descobri uma coisa: eu tenho uma mãe, eu tenho duas irmãs mais velhas, eu sou o terceiro filho da família, sou o primeiro menino, tenho duas irmãs mais velhas e eu vivi o tempo todo com essas mulheres, mas eu não sabia a força que elas tinham até eu me encontrar nessa situação de conflito que a batalha se trava sobre os corpos das mulheres. Lá, eu vejo a capacidade das mulheres de se levantar, a capacidade de resiliência que elas têm quando elas passam por um sofrimento extremo.

Mas, igualmente, as mulheres não lutam por elas somente, elas também lutam pelos outros e, a cada vez, quando eu estava em um estado de depressão, que eu sentia que eu não podia mais continuar, eu sempre encontrei uma mulher que me levantou e eu me sentia muito pequeno em relação a essa mulher que sofre enormemente, mas que tem ainda alguma coisa a dar para os outros, mesmo sofrendo.

Quando eu fui atacado na minha casa, foram as mulheres que se organizaram para vender frutas e legumes, e com essas vendas elas depositavam dinheiro no hospital e me escreveram: nós vamos continuar a depositar até comprar uma passagem de avião para o senhor e para a sua família. Quando o senhor chegar aqui, todo dia nós teremos 25 mulheres que vão fazer a ronda da sua casa e, se alguém vier atacá-lo, terá que matar primeiro 25 mulheres. Isso eu acho uma coisa formidável, uma coragem enorme que nos faz viver.  

De acordo com os documentários, o senhor chegava a fazer 18 cirurgias por dia. Como é a estrutura do Hospital de Panzi para atender tanta gente com tantos problemas tão graves? É um hospital que tem bons materiais, uma enfermagem de excelência, ou as condições são um pouco mais precárias?

As condições são difíceis. Eu não opero em condições que vocês operam aqui em São Paulo, isso é verdade, mas nós tentamos fazer o possível com os meios que nós temos. Eu comecei sozinho, mas hoje tenho uma equipe de cirurgiões formados que também operam com os meios disponíveis, e assim conseguimos aliviar um grande número de doentes que chegam em nosso hospital.  

 


Como é a sua interação com esses grupos radicais que cometem os crimes de estupro? Já houve conversas ou confrontos com líderes dessas facções?

São grupos que, normalmente, tentam controlar as zonas de mineração que estão longe do hospital em que eu trabalho, mas quando eu cuidei pela primeira vez de um bebê de 18 meses, eu sensibilizei um grupo de homens no hospital e nós partimos, fomos ao bairro onde vivia esse bebê que foi estuprado para poder enfrentar essas pessoas. Infelizmente, são homens armados, e frequentemente eles não se manifestam. Depois da nossa passagem eles seguiram cometendo crimes e nós temos apenas a nossa voz para poder levar a mensagem.

Todas as ameaças que a gente sofre, não somente eu, mas o meu pessoal, são ameaças que provêm desses grupos, porque eles acham que nós falamos demais em relação a essa questão, então, em represália, nos obrigam a ter uma vida completamente restrita.  

Uma coisa muito bonita do depoimento que o senhor contou para nós aqui, foi muito o fato de que toda a sua trajetória pessoal tem a ver com a busca de um sentido, a busca de um propósito. É uma preocupação muito grande, principalmente dos mais jovens, no Brasil, encontrar um sentido para a vida. Que mensagem o senhor daria para essas pessoas que estão em busca de um propósito?

Eu tenho que dizer, inicialmente, que quando nós vivemos uma vida sem dar a essa vida um sentido, é uma vida que se torna muito difícil de viver, muito pesada. O que nos faz levantar todas as manhãs é a gente ter um objetivo, ter um sentido que a gente deu à vida. A cada vez que a gente levanta de manhã, a gente sente que tem alguma coisa que quer fazer, algum objetivo para atingir, algo a transformar.

Eu digo no meu entorno que a gente pode dar sentidos diferentes à vida, causas diferentes, mas eu sempre tenho esse sentimento, que se eu tivesse que viver só por mim, para mim, eu faria muito pouco, porque eu não tenho necessidade de tudo que eu fiz se fosse somente para mim.

Então, uma vida só tem sentido, só tem uma motivação para ser vivida quando a gente vive pelos outros, ou para os outros, quando a gente vive por uma causa. Isso te permite, a cada vez, empurrar os limites para mais longe. Se fosse só para nós mesmos, acho que nós faríamos muito pouco. Eu digo aos jovens: você não pode fazer coisas na vida se não tiver um sentido que te empurre a poder seguir sempre ir adiante.

Quando a gente projeta a vida para os outros, é um limite difícil de atingir, mas que te empurra todos os dias para te dizer: o que eu posso fazer a mais? Cada vez que você chegar no seu trabalho, faça a pergunta: o que eu vou fazer hoje de bem para uma pessoa? Uma pessoa apenas. O que eu posso fazer de bom para uma pessoa? Isso transforma completamente a sua vida. Às vezes, é apenas um sorriso. Eu penso que a vida só pode ser vivida quando a gente vive pelos outros.

 

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Denis Mukwege

Denis Mukwege

Médico congolês

Prêmio Nobel da Paz, é especialista no atendimento a mulheres vítimas de violência sexual.
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