Postado em ago. de 2022
Sociedade | Internet e Redes Sociais | Futuro e Tendências Globais
"É conteúdo que você quer, e de um tipo bem local"
Confira os destaques desta conversa sobre internet, globalização, cultura, comunicação e música com o conferencista da Temporada 2022.
Estar em trânsito é uma constante na vida e na pesquisa de Frédéric Martel. Foi dessa forma, entre uma plataforma e outra de trem, que o codiretor do Centro de Zurique para Economias Criativas e autor das obras de referência Smart e Mainstream conversou com o professor Gustavo Borba, decano da Escola da Indústria Criativa da Unisinos. Confira os destaques do papo sobre internet, globalização, cultura, comunicação e música, que foi publicada na Revista Fronteiras.
Em sua obra Smart, de 2015, você afirmou que um fenômeno mainstream, muito popular em uma rede global e conectada, ainda não produzia uma conversa global significativa, pois a internet não teria limites, mas conta com múltiplas fronteiras. Com as novas tecnologias e as crises ideológicas que vivemos, você acha que alguma coisa mudou na sua conclusão?
Talvez precisemos atualizar um pouco o que eu disse. Meu ponto de vista tanto em Mainstream quanto em Smart era o seguinte: existe uma tecnologia global, na qual todo mundo usa Facebook – exceto na China e talvez na Rússia e no Irã –, todo mundo está conectado à internet e compartilha algum conteúdo, da Beyoncé ao Ricky Martin. Então, não nego a importância desse tipo de controle da globalização. Ao mesmo tempo, em todos os lugares nos quais eu estive fisicamente, identifiquei que havia conteúdo regional de um grande grupo – como a TV Globo ou a TV Record no Brasil –, e essas corporações de telecomunicações são nacionais: você tem muita produção regional, como música e livros locais. Então, é mais ou menos assim: nós temos duas culturas.
Existe um tipo mainstream global – que é, a propósito, diferente em cada lugar, mas também funciona como um conteúdo global – e outro nacional, regional e local. Então, a ideia de a globalização ser culturalmente um tipo de uniformização não é inteiramente verdadeira. É claro, eu não subestimo o poder das grandes corporações, dos grandes estúdios, como a Disney, a Universal, a Paramount. Mas existe uma tentativa de prover a tecnologia, o software, e não necessariamente o conteúdo.
E como você vê as redes sociais nesse contexto?
Basicamente, Facebook, Twitter e Google não são provedores de nenhum conteúdo. E os meus estudos mostram que é o conteúdo que você quer, e de um tipo bem local. Se você está no Facebook, por que você não fala com pessoas que estão na Coreia do Sul, quando você está no Brasil ou na França? Você pode compartilhar o que você quiser com qualquer pessoa de qualquer lugar. Mas você não faz isso porque não fala a mesma língua, não compartilha os mesmos interesses, e também porque está em Paris ou no Rio de Janeiro e quer se conectar com seus amigos.
Você levantou a hipótese de que estamos diante de uma mudança na civilização, provocada pela transformação da cultura e da informação na era da reprodução digital. E ouvimos hoje a promessa de metaversos e a tendência de uma produção de cultura mais lenta. O que você comenta sobre esses dois extremos?
É como você está dizendo: existem dois extremos. Não sou tecnofóbico ou tecnoingênuo. Penso que a verdade se encontra entre os dois. Eu diria que a transição digital, adicionada à transição ecológica, são as duas principais evoluções do nosso século. O século do verde digital. Eu gosto de desacelerar – por exemplo, neste verão vou dar um tempo das minhas contas no Facebook, Twitter, Instagram e LinkedIn. Nós adentramos o século digital, e não penso que possamos ou devemos voltar atrás. Os que criticam os GAFAs (acrônimo de “Google Amazon Facebook Apple”) serão os primeiros a ficarem chateados se os mecanismos de busca ou Google Maps pararem de existir.
Você diz que as indústrias de conteúdo parecem preceder movimentos profundos que logo acabam envolvendo a economia como um todo. O que você acredita que elas estariam “antecipando”com seus movimentos nesta terceira década do século 21?
As pessoas da nossa geração não poderiam adivinhar, sonhar ou temer uma invenção como o smartphone. Então, é claro que existe o metaverso, a inteligência artificial, a nuvem… Essa nuvem está conectada ao big data, que mudou o jogo, mas nós também temos muito mais material do que tínhamos sobre a internet. Em termos de regulação, a Europa é líder do setor. A propósito, Dilma Rousseff há muito tempo dizia que precisávamos regular a internet e ela aventou a necessidade de uma internet brasileira. Na época, todos pensaram que ela era louca, mas, atualmente, vê-se que ela estava certa por conta do processo de estarmos geolocalizados na internet. Então, você continua globalizado, conectado. A ideia das pessoas vivendo em qualquer lugar, isso não existe.
Você comentou que, de todos os países emergentes, o Brasil foi um dos que considerou mais empolgantes em termos de promessa de uma economia criativa em desenvolvimento. Você ainda está apostando no país hoje?
Quando eu estiver em São Paulo e Porto Alegre, em agosto, trarei uma atualização sobre este tema, mas eu penso que esse tipo de territorialização de conteúdo, especialmente na internet, existe ainda mais do que antes. E nós ainda vemos um tipo de reterritorialização da internet. É claro que na Rússia isso está sendo fechado, eu diria a “borda da internet”, como na China e no Irã, mas mesmo nos países que não possuem um regime ditatorial – e o Brasil é um bom exemplo disso. As pessoas no Brasil podem falar inglês ou espanhol, mas falam principalmente o português brasileiro.
A parte majoritária da população não está buscando conteúdos que sejam em inglês, espanhol ou francês, porque não são bilíngues. Eu fui mais de 10 vezes ao Brasil, é um país que amo, e é claro que eu estava observando isso antes do (governo) Bolsonaro. Aliás, o que quer que você pense sobre Bolsonaro também é uma extensão de um tipo de ponto de vista nacionalista e cultural na internet. Não sou um “souverainiste” (apoiador da doutrina de preservação da soberania nacional), como dizem na França, mas penso que nós somos – e essa é uma palavra muito importante para mim – geolocalizados na internet. Somos geo, que significa global.
Você já respondeu várias vezes que não podemos mais falar de cultura como um conceito elitista e patrimonialista, e que não podemos mais ter apenas uma definição única de cultura. Agora, com o 5G extremamente rápido, a internet das coisas e uma crise sem precedentes na própria compreensão do que é humano, como você imagina que explicaremos o que é cultura na próxima década?
Ontem, a produção artística era rara, o número de artistas era limitado, e os gatekeepers vigiavam o produto. Era difícil penetrar o mundo da arte, que era filtrado e dissociado do gosto do público. Muitas vezes, os críticos de arte tradicionais jogavam juntos no jogo da “distinção” e “reprodução” social. Essa hierarquia, às vezes artificial, foi sendo atenuada na Era Digital. Eu estou entre aqueles que aceitam esse enfraquecimento. Os gatekeepers foram sendo desvalorizados.
Hoje, com a ascensão dos influenciadores, eles não são mais os espertos. Não que os influenciadores tenham a mesma expertise ou a mesma legitimação, mas são mais numerosos e legitimados da sua própria forma. Nós suspeitamos por muito tempo que a hierarquia cultural era artificial. Por mérito próprio, influenciadores destroem isso, a hierarquia cultural estática, para fazer com que seja algo mais dinâmico. No Spotify, podemos acessar 70 milhões de músicas, mais de 2 milhões de podcasts e 4 bilhões de playlists. Na Netflix, milhões de filmes e episódios de séries estão espalhados por mais de 76 mil gêneros. No Amazon Prime, podemos escolher entre 40 mil filmes toda noite, enquanto mais de 600 mil livros estão disponíveis no Kindle, Scribd ou Google Play Books. Finalmente, mais de mil vídeos são publicados no YouTube a cada minuto. Como conseguir navegar nessa abundância? Precisamos de algoritmos, mas também de curadoria humana. Então, sou bastante otimista: isso será o futuro da cultura.
A música é uma grande parte da sua vida, então, qual você acha que é o papel dela na educação?
Responderei com Nietzsche: “Sem música, a vida seria um erro”. Algumas pessoas não ligam para a música, que é importante para todos, especialmente para a nova geração. Eles se identificam com um grupo pela música, é diferente de como acontece comigo. Então eu diria que, no começo, a internet poderia ter sido algo destrutivo para a indústria da música – e de certa forma foi. Eles lutaram como cara mais novo que baixava as músicas ilegalmente, mas a solução acabou sendo dar conteúdo legalizado na internet para as pessoas. As corporações queriam que comprássemos CDs, quando ninguém mais compra CDs. Então, a resposta foimuito simples: criar Spotify, Deezer,Apple Music. Agora mesmo estou escutando uma playlist muito boa de música brasileira moderna... Não posso viver sem música.
A entrevista na íntegra está disponível no portal Mescla – http://mescla.cc
Frédéric Martel
Escritor francês