Postado em dez. de 2015
Literatura | Cultura
Entrevista Valter Hugo Mãe: Contos de cães e maus lobos
Escritor português fala sobre seu novo livro de contos, prefaciado por Mia Couto, explica seu processo de escrita e confessa que seus primeiros rascunhos nascem na tela do celular.
"O livro tem de proporcionar, em vários momentos ou no seu todo, um processo de superação. Tem de trazer algo ao mundo do pensamento ou das sensações que até ali pertenciam à escuridão."
A mais recente obra do escritor português Valter Hugo Mãe foi lançada em Portugal em novembro, pela Porto Editora. Intitulado Contos de cães e maus lobos, o livro inclui prefácio de Mia Couto e ilustrações de vários artistas, como Graça Morais, José Rodrigues, Paulo Damião, Nino Cais e outros. Em entrevista à revista da Fnac, Valter Hugo Mãe desvenda o título da obra, explica seu processo de escrita e confessa que seus primeiros rascunhos nascem na tela do celular. Confira abaixo:
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Que título daria a um livro sobre a sua vida?
A Loucura Total [risos]. Não, qualquer coisa que tivesse a ver com o imaginário. Tenho uma crônica chamada Autobiografia Imaginária, talvez esse mesmo. Eu tenho a sensação de que a vida é uma coleção de coisas nas quais não acreditamos. Essa dimensão do incrível, a perplexidade com que olhamos para aquilo que afinal somos, interessa-me muito. Acho que é, em última análise, aquilo que nos define. A minha vida daria sempre um título que envolvesse essa dimensão imaginária da factualidade.
Quais são as suas principais influências e de que forma se manifestam no seu trabalho?
As mais rotundas vieram, desde muito cedo, das imagens e da pintura. Acho que as primeiras coisas que me fascinaram têm a ver com Goya, Velázquez, Francis Bacon ou Paula Rego. E depois, paulatinamente, a música também. De início uma música pop da qual hoje tenho um bocado vergonha, mas a relação que estabeleci com as Variações Goldberg de Bach, com Glenn Gould, com as Suítes para Violoncelo de Bach, foram sempre motores muito fundamentais na minha inspiração. E, depois, a literatura entra quando eu próprio já escrevo sem me conter e sem me policiar demasiado, porque a necessidade já era tão concreta que eu precisava escrever. E, aí, começo a ler outras coisas, quase como uma necessidade de comparação ou de termo de vergonha para ver quanto eu era mauzinho e quanto tudo me deslumbrava. Aí, entra a poesia: Fernando Pessoa, Herberto Helder, mais tarde Adília Lopes. São essas as minhas referências.
O que é um bom livro para você?
É quase impossível termos uma definição absoluta do que é um bom livro. Os livros serão bons dependendo da qualidade do leitor. Mas eu afunilei um critério que a mim me interessa encontrar num livro: a capacidade de um autor expressar algo que até ali estaria numa espécie de escuridão. A capacidade de colocar em discurso algo que podemos reconhecer, com que nos podemos identificar e que parece de alguma forma solucionar um problema nosso, mas que até ali ninguém tinha expressado daquela forma. O livro tem de proporcionar, em vários momentos ou no seu todo, um processo de superação. Tem de trazer algo ao mundo do pensamento ou das sensações que até ali pertenciam à escuridão.
Qual foi o último livro que leu e o que achou dele?
É um livro brilhante de Juan Arnau, um livro publicado em Espanha e que eu encontrei na Colômbia, chamado Manual de Filosofía Portátil. Chamou-me atenção, porque parecia uma coisa metida a Enrique Vila-Matas, uma ligeireza para a filosofia, mas na verdade é um conceito que o autor traz para uma espécie de visão do intricado do pensamento. É a maneira como o pensamento parece surgir originalmente num determinado indivíduo com um determinado autor mas o quanto ele deve a outros. Por isso é, no fundo, a problematização da originalidade na filosofia. Gostei muito.
Como é a sua rotina habitual de escrita?
É muito destrambelhada, porque não sou obediente nem a mim próprio. Normalmente, o que acontece é que tento seguir as pulsões. É claro que não acredito naquela ideia romântica pura da inspiração – a inspiração é, sobretudo, uma predisposição para trabalharmos – mas há alturas em que subitamente, e por algum tipo de disposição, o trabalho acontece generosamente. Quase que o texto nos encontra mais do que nós o procuramos. Procuro potenciar esses momentos. Isso faz-se ouvindo a música certa, criando um certo conforto, uma certa fuga. Há uma necessidade muito grande de fuga para encontrar uma disciplina de solidão ou às vezes até de uma certa espiritualidade a quem é de Deus. E é isso: fomentar, criar, alimentar esse estado de espírito e depois obstinadamente escrever. É o que me acontece quase sempre: ter tempos de alguma calma e depois passar um período profundamente aflito, porque é um período da aplicação técnica da vontade de ser escritor.
O primeiro rascunho faz-se à mão ou no computador?
Devo admitir que as primeiras notas acontecem no bloco de notas do telefone, fazendo de conta que estou enviando mensagens a alguém de quem gosto. Às vezes, posso passar uma noite inteira entre amigos, num concerto, no cinema; retiro o brilho ao ecrã e, se de fato me estiver a surgir uma boa ideia, substituo a realidade evidente por uma imaginação de escape.
Costuma planejar todos os detalhes do que escreve ou deixa-se levar pelo momento?
Vou muito ao sabor daquilo que vou encontrando. Tenho é uma ideia muito obstinada daquilo que quero encontrar. Há uma necessidade qualquer de responder a uma determinada questão e, por isso, sei mais ou menos o objetivo ao qual quero chegar. Normalmente, não faço a mínima ideia do percurso estabelecido, e isso é fundamental. Acho que se soubesse esquematicamente todos os pontos por onde vou passar quando escrevo um livro, não o escreveria. Porque o livro não seria mistério nenhum para mim, não me oferecia descoberta ou entusiasmo nenhum. Preciso de escrever num processo de procura e aquilo que encontro normalmente é uma surpresa para mim.
Como lhe surgiu a ideia do seu novo livro?
Este novo livro chama-se Contos de Cães e Maus Lobos. É um título estranho que eu adoro e é irrevogável. É uma coleção de textos – alguns já eram conhecidos – que aparentemente são dirigidos a um público mais jovem. Admito que, por vezes, não entendo exatamente o que é uma pessoa jovem. Tenho a sensação de que, aos 44 anos, me esqueço do rigor com que se define uma pessoa mais jovem. A honestidade com que escrevo estes textos tem a ver com fazê-los como algo que eu também pudesse querer ler. Por isso fico com a sensação de que eles devem ser bons textos para toda a gente. São 11 contos, ilustrados por 11 ilustradores, e estou muito contente com o resultado.
Já tem uma ideia para o seu próximo livro?
Tenho uma ideia absolutamente clara do que quero fazer a seguir. Já estou a escrever e inclusive quase a terminar. Mas, ao fim destes anos todos, desenvolvi uma superstição e agora não falo sobre o que vou publicar. Fico com a impressão de que me comprometo. Depois mudo coisas – porque escrevo à procura – e as pessoas dizem: “Então mentiste quando disseste que a história era a Carochinha à janela". E não era mentira. É simplesmente porque eu não sei o suficiente sobre os livros antes que eles estejam efetivamente terminados. Mas espero que seja o meu melhor romance. A grande ansiedade é sempre essa: será possível escrever algo que me satisfaça como nunca me satisfiz?
Qual é a pior parte de ser escritor?
Acho que o mais difícil é que inevitavelmente lidamos com uma permanente consciência. Escrever é um exercício de pensamento, estamos constantemente dominados – pelo menos assim me sinto – pela necessidade de responder a uma ética que nos impõe certa timidez, certa clausura. Às vezes, impõe-nos saber coisas que eventualmente até nos aborrecem mas sobre as quais achamos que não podemos deixar de estar esclarecidos. Essa é a parte mais exigente. O escritor é um indivíduo com poucas desculpas. Podemos eventualmente querer desculpá-lo com aquela coisa genérica de ser artista, mas isso é coisa que não cabe muito na figura do escritor.
Que conselhos dá a eventuais aspirantes a escritor que o estejam a ler?
Nunca pensem no aparato da literatura, no espetáculo da literatura. O momento em que faz sentido investir em alguma coisa é o momento da escrita. Nunca devemos apressar a escrita de um texto. Nunca devemos achar que as pessoas não vão perceber as deficiências que nós próprios intuímos ou percebemos no texto. A aposta é toda nesse momento. Escrever com a seriedade profunda de quem alcança o melhor de si mesmo e não propriamente com aquele sonho mais imediato de ter um livro nas prateleiras. O sonho deve ser efetivamente o de ter um texto com o qual nos possamos identificar sem vergonha.
(Via Revista Estante - Fnac)
Assista aos vídeos com Valter Hugo Mãe no Fronteiras.com:
- Reflexões sobre a vida e a morte
- A minha liberdade e a liberdade do outro
Valter Hugo Mãe
Escritor