Postado em mar. de 2018
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Fernanda Torres: "Um país deprimido só pode detestar sua própria cultura. A cultura é o reflexo do próprio país"
Convidada do debate que abre o ciclo de conferências do Fronteiras do Pensamento 2018, Fernanda Torres conversa sobre seu mais recente romance e sobre a situação atual da cultura no Brasil.
"Estamos vivendo tempos obscuros, em que a arte brasileira está sendo tratada como oportunista, suja e degenerada. É num país assim que desejamos viver, que não investe em cultura, em educação? Porque uma é indissociável da outra. Queremos um país iletrado, inculto? Ficaremos melhor assim? Essa é a pergunta que devemos nos fazer."
Convidada do debate que abre o ciclo de conferências do Fronteiras do Pensamento 2018, Fernanda Torres está lançando seu terceiro livro, mas ainda hesita na hora de se dizer escritora. Atriz há mais de 35 anos e autora de Fim e sete anos, seu novo romance, A glória e seu cortejo de horrores, narra uma história que tem como pano de fundo o universo em que passou a vida toda inserida — a televisão, o teatro e o cinema brasileiros. A partir das vivências e das reflexões do narrador e protagonista, Torres convida para um pensamento sobre a relação entre a arte a história do Brasil.
“Existe uma relação direta entre o teatro e o contexto histórico. A profissão de ator é um eterno recomeçar e você fica muito exposto às mudanças climáticas do país, da economia, da política, do mundo. É seu dever se relacionar com essas mudanças, propor diálogo, produzir pensamento, saídas", reflete Fernanda. "A depressão de agora se reflete nas artes, não à toa a insatisfação se virou contra os artistas. Um país deprimido só pode detestar sua própria cultura. A cultura é o reflexo do próprio país.”
Fernanda Torres sobe ao palco do Fronteiras do Pensamento 2018, em maio, ao lado do artista plástico Vik Muniz. Garanta sua participação nas conferências (e debates) deste ano, que propõem a temática O mundo em desacordo: democracia e guerras culturais, e que acontecem em Porto Alegre e São Paulo.
Torres conversou com a Tpm sobre seu recente livro e sobre a situação atual da cultura no Brasil. Confira:
Este é seu terceiro livro. O que te encanta na literatura para continuar escrevendo?
Fernanda Torres: Atuar é uma profissão coletiva e, quando escrevo, só depende de mim, é uma liberdade muito grande poder sentar, imaginar, e se bastar. 2017 foi um ano dedicado à escrita. Fora A glória e seu cortejo de horrores, adaptei dez capítulos do Fim e sete anos para uma série na Globo. Existe uma solidão muito grande nesse ofício, mas tenho um prazer indizível de jogar a tinta no papel, depois lapidar o capítulo, editar, procurar o ritmo certo dos parágrafos, das frases e conviver com os personagens, que ficam a rondar na cabeça. Agora, depois de um ano diante do computador, bateu a saudade de atuar, o que devo voltar a fazer em fevereiro, na série Sob Pressão. Estou sentindo a falta do caráter físico e comunal da profissão de atriz. Uma profissão alimenta a outra, e te descansa da outra.
“A glória e seu cortejo de horrores” é uma frase de sua mãe, Fernanda Montenegro. Por que torná-la título do livro?
Fernanda Torres: Sempre gostei dessa frase e a ouvi dizê-la muitas e muitas vezes. É uma frase que resume a danação e a maravilha que se conhece na profissão de ator, de escritor, nas artes. O triunfo do artista é uma grande ameaça, vem acompanhado do medo de nunca mais repetir o feito, de se perder, de falhar, de não estar à altura de si mesmo. O mito de Sísifo é o que mais se assemelha ao da criação artística. Você faz um esforço hercúleo para carregar a pedra até o alto da montanha e depois assiste ela rolar ladeira abaixo. Tudo volta ao zero, ao nada, é como se você nunca aprendesse. Não há paz na glória, como não há no fracasso, e acho que a frase resume essa ideia de algo público, passageiro, intenso e angustiante.
Mario, o protagonista-narrador, é um homem de 60 anos. Como surgiu a ideia para esse personagem?
Fernanda Torres: Veio naturalmente. Escrever na pele de um homem ajuda a me afastar de mim, a não ser confessional, algo que seria muito difícil de fazer caso o personagem fosse uma atriz. Fora isso, minha escrita tem um componente tragicômico, sarcástico e me sinto mais livre para exercer esse sarcasmo sobre o pobre coitado de um homem. A supremacia do macho está em xeque. Trata-se de uma crise instigante, trágica e risível. Uma amiga disse que era como chutar cachorro morto, talvez seja. Gosto do fato dos meus homens não se adequarem ao mundo como ele é e tentarem entender em que momento perderam o bonde da história. O Mario é um ator da geração do Zanoni Ferrite, do José Wilker, do Armando Bógus, gente que eu vi em cena quando era adolescente e que foram jovens adultos nos anos setenta, durante a revolução de costumes. Hoje, a adulta sou eu e acho que gosto de me lembrar deles, daquelas pessoas que tinham a minha idade, ou menos, quando eu comecei a me entender por gente, e experimentar "ser eles" agora.
O processo para criar esse personagem foi semelhante ao de criar um que interpretaria em seus trabalhos como atriz?
Fernanda Torres: Existe muita autoria na profissão de ator, você é o autor das suas criações, você empresta a sua imaginação ao personagem, alimenta ele com as suas memórias, com o seu sentimento. Nesse sentido, sim, atuar ajuda a escrever, é como se você colocasse no papel o que imagina entre as falas, a tal da voz interior. Você dá forma concreta a ela quando escreve. Eu cresci acompanhando os ensaios e as temporadas dos meus pais fazendo [Friedrich] Dürrenmatt, Millôr [Fernandes], Nelson Rodrigues, [Eugene] O’Neill, Heiner Müller, e comecei a atuar numa época em que o teatro do improviso, pós-Asdrúbal Trouxe o Trombone [grupo teatral dos anos 80 marcado pela desconstrução da dramaturgia], estava no auge. Ter tido contato com esses autores e, depois, ter feito um teatro em que a gente paria o próprio material, me ajudou a escrever. A Casa dos Budas Ditosos foi um divisor de águas para mim, porque tive que introjetar um livro do João Ubaldo Ribeiro, o que me ensinou muito. Mas o que faz diferença mesmo é ler, ler, ler e ler, tanto para escrever, quanto para a atuar.
O que Mario Cardoso tem de Fernanda Torres, ou o que Fernanda Torres tem de Mario Cardoso?
Fernanda Torres: A tentativa de entender a potência que o teatro, o cinema e a televisão possuíam há quatro décadas, e o que aconteceu com a arte ao longo desse tempo é algo comum aos dois. Quando eu era adolescente, assistir o Asdrúbal, o Macunaíma do Antunes Filho, ir ao teatro era algo essencial, capaz de mudar a sua vida e a da sua geração. O Mario diz que não ter visto O Rei da Vela, Galileu Galilei e Roda Viva, pesava nele como uma falha. Eu me sentia assim. Me lembro de assistir Grande Sertão: Veredas na televisão, O Grito, Gabriela, Saramandaia, de ter testemunhado um período de experimentos na teledramaturgia, e sentir falta dessa liberdade e dessa audácia agora. Eu me criei no século passado, como o Mario, e estou impressionada com a revolução tecnológica que bagunçou a estrutura das artes, da política, da religião, da economia. Eu e o Mario estamos estupefactos, nos perguntando quem lê Tchekov? Quem sabe de Guimarães? Quem se interessa por Shakespeare? Essa estranheza dele é também a minha.
Qual acredita ser o papel do teatro, do cinema e da televisão no momento atual do país?
Fernanda Torres: A arte está sendo criminalizada, tanto pelo uso das leis de incentivo, quanto pelo crescimento de uma mentalidade conservadora, que acusa a arte de ser inimiga do povo. Já há algum tempo minha mãe diz que faz teatro de Catacumba, nas periferias, nas profundezas. A Globo sempre foi vista como conservadora, hoje é atacada como uma ameaça à família. As artes plásticas, que pareciam incólumes à crise que se abateu no mercado fonográfico, no cinema, no teatro e na televisão, virou o foco da artilharia desse novo Brasil. Acho que vai primeiro piorar para depois melhorar. O discurso antiarte, antitudo está muito potente, mas ele também dará subsídios para a própria arte se reinventar, se revigorar.
No romance você traz o passado do teatro, cinema e televisão nacionais. Qual acredita ser o futuro dessas artes?
Fernanda Torres: Eu assisti com grande pesar ao fechamento da MPB FM. Era a rádio que eu ouvia, porque amo música brasileira. Agora, no dial, só encontro o pior da música americana, o pior. Meus filhos conhecem menos música brasileira do que eu conhecia com a idade deles. Há dez anos, o Brasil consumia 70% de música brasileira, agora inverteu e ela atrai apenas 30% da demanda. Melhoramos com isso? Penso que não. Estamos ouvindo uma música de melhor qualidade? Não. A cultura de massa impõe regras muito imbecilizantes ao mercado. É o lado terrível da globalização, que força o mundo todo a ouvir mais do mesmo, e um mesmo medíocre, ruim. O teatro está numa crise séria, porque as leis de incentivo criaram uma cultura em que a bilheteria não era importante, o que acirrou a dependência do Estado e terminou num levante de insultos, na crença de que mamamos nas tetas. Isso é grave, porque o teatro é o berço de muitas artes, foi ele que nos deu Vianinha, Nelson, Zé Celso, Antunes, Nanini, Fernanda, Bibi, Dulcina, Regina Casé. Mas a televisão também está sendo posta a prova, com o público migrando para a internet, o que afetou o mercado publicitário, o fonográfico e a própria imprensa. No cinema não há mais os filmes médios, você tem os blockbusters e uma enormidade de produções com um número irrisório de espectadores. Estamos no meio de uma revolução. A questão é saber se nos tornaremos um país consumidor de séries estrangeiras, de música estrangeira, que rejeita a própria cultura, ou se continuaremos interessados em nós mesmos. Essa é a questão que muitos países enfrentam, é o dilema da Globalização, que concentrou riquezas e nivelou o gosto por baixo.Por outro lado, novas janelas, sedentas de conteúdo, estão surgindo. Produtoras internacionais estão de olho no enorme mercado consumidor brasileiro; o cinema e a televisão, com o fim do celulóide, se transformaram no mesmo veículo, e as produtoras independentes já começam a produzir para as grandes redes. Há um crescimento bem vindo e é importante fomentar a produção nacional, para que não nos transformemos em consumidores passivos, que revertem dividendos para o exterior, sem fomentar criação, indústria, emprego e riqueza aqui. A quem serve o desprezo pela cultura brasileira? Ele só aumenta a nossa miséria, entregando de bandeja a exploração de um mercado consumidor de duzentos milhões de habitantes, sem dar nada em troca.
O livro também fala sobre o complexo de vira-lata e logo no início, Mario questiona decisões cenográficas e de figurino que são importadas de peças estrangeiras. Como isso se relaciona com a realidade da arte no Brasil?
Fernanda Torres: As influências sempre existiram e existem, a questão é como torná-las próprias. De que interessa uma sub Broadway? Um sub cinema de ação? Se for por aí, seremos sempre piores. O problema é antropofágico, é engolir e devolver algo seu. Não acredito em arte pura, acho que as influências fazem parte da arte. O Macunaíma do Antunes conversava com o que o Bob Wilson estava fazendo em teatro naquele momento; o Zé Celso bebeu no Living Theatre e vice-versa; o Asdrúbal foi o nosso Monthy Python; a Tropicália se valeu das guitarras elétricas; o Gregório Duvivier faz um programa baseado nos âncoras americanos, mas fala conosco, sobre nós. Eu escrevi esse livro depois de ler a experiência do David Hare como ator, um livro maravilhosos em que ele, diretor e autor, arriscou-se num monólogo, como ator, e quase infartou, pelo esforço de estar em cena. Saí de Relatos Selvagens, o filme argentino, com um sentimento horrível de humilhação. Nós poderíamos ter feito aquele filme, deveríamos nos mirar em Relatos Selvagens, naquela contundência, naquela audácia. Hoje, quando penso em influência, penso no cinema argentino. Mais do que francesa, americana, chinesa, ou inglesa, eu gostaria de fazer um cinema brasileiro argentino.
O livro trata de uma discussão ainda acalorada no meio artístico: a arte vista como mercadoria. Queria que falasse um pouco sobre isso.
Fernanda Torres: Não existe apenas uma arte. Existe a economia criativa, para a qual o Brasil tem um enorme talento, pois é um país que produz cultura, que é reconhecido pela sua cultura, dono de uma música refinadíssimos, de uma literatura potente. É um país que consome suas próprias histórias, que assiste novela, que fala português e se vê em português. Nesse sentido, a arte como mercado é algo a ser explorado e protegido, pois ela gera empregos e movimenta a economia. A arte também é uma ferramenta importante para a diminuição da desigualdade social, esse sim, o grande problema do país. A arte educa e possibilita a integração social. Meu filho faz capoeira, todos os anos, no batismo dos novos alunos, uma roda gigantesca com os mestres e outras escolas de capoeira se reúne para uma celebração. Nesse ano, a turma da Rocinha, comunidade que enfrenta uma guerra, esteve presente, e era clara a importância da capoeira para a formação daqueles jovens. A capoeira reúne história, música, dança, luta, é cultura com C maiúsculo, saída dos navios negreiros, e era evidente o papel social dos mestres na formação daquela meninos. Mas você também tem a cultura dita erudita. Uma orquestra sinfônica não sobrevive sem subsídios. Talvez, o deputado que grita contra a Lei Rouanet, acredite que o Brasil não mereça ter orquestras, maestros, talvez ele ache que Cultura não é relevante. Talvez, esse mesmo deputado que vilania o subsídio à cultura, nunca tenha ouvido falar do Parque Nacional da Serra da Capivara, ou da importância de Niéde Guidon, na preservação dos sítios arqueológicos que contam a história dos povos pré históricos que habitaram o Brasil. Estamos vivendo tempos obscuros, em que a arte brasileira está sendo tratada como oportunista, suja e degenerada. É num país assim que desejamos viver, que não investe em cultura, em educação? Porque uma é indissociável da outra. Queremos um país iletrado, inculto? Ficaremos melhor assim? Essa é a pergunta que devemos nos fazer. Para muitos, e isso já é um reflexo da falência da educação no país, Katy Perry vale mais do que Chico Buarque. Mas Katy Pery, além de chatíssima, jamais nos dará Caravanas, e eu prefiro viver num país capaz de compor Caravanas.
O atual momento da negociação do Teat(r)o Oficina com Grupo Silvio Santos traz justamente essa questão de como os espaços artísticos e culturais devem se relacionar. Acredita que existem problemáticas na união desses dois espaços?
Fernanda Torres: Aquele encontro diz muito, diz tudo. O Sílvio pergunta ao Zé o porquê dele querer aquele terreno e o Zé responde que não é para ele, é para a cidade. O Zé diz que tem 80 anos, que o Sílvio tem 86, que os dois já já estarão mortos, e propõe ao Sílvio um projeto para a cidade. Mas o Sílvio, que se diz muito rico, quer o dinheiro. O mediador Doria, que mais parece uma caricatura do Oswald de Andrade, fala de assets, fundings, malls, ele mal raciocina em português. O Doria acha maravilhoso um teatro de shopping e o Zé sabe, como eu sei, como qualquer ator sabe, que um teatro de Shopping é um espaço morto, é o túmulo do samba. O Zé propõe um jardim, mas o Sílvio quer o paliteiro de prédios, o Doria quer o paliteiro. O Zé diz que São Paulo não precisa de mais um paliteiro e o Sílvio dá a entender que um parque é sinônimo de cracolândia, e ainda diz que vai fazer um campeonato no parque e dar um prêmio ao mais drogado. É tudo muito chocante. O Zé é uma anomalia nesse paraíso que sonha com Miami, com malls, que manda varrer a cracolândia do mapa. O parque do Bexiga, o projeto do Zé, não tem lugar nessa sub-Miami. E acredito que a vizinhança do teatro também sonhe com o mall. É um clash de civilizações, é a Grécia e a Barra da Tijuca, é Dioníso e o Romero Britto, é, mais uma vez, Chico Buarque e Katy Perry, não há ponto de encontro. Aquela reunião é muito reveladora, a maneira como o Sílvio ri, o prefeito que só fala inglês, o poncho indígena do Zé. Oswald Andrade faria uma peça e tanto daquilo.
Fernanda Torres
Atriz e escritora