Fernando Meirelles: “A crise do clima não é mais uma preocupação para o futuro”

Postado em ago. de 2021

Literatura | Sociedade | Ciência | Sustentabilidade

Fernando Meirelles: “A crise do clima não é mais uma preocupação para o futuro”

Em entrevista exclusiva ao Fronteiras do Pensamento, Fernando Meirelles fala sobre a crise climática, um dos debates representado na edição 2021 do Fronteiras do Pensamento – Era da Reconexão.


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Um interesse que transformou-se ao longo dos anos em empenhada militância. Para o cineasta Fernando Meirelles, a crise climática, tema urgente para o futuro da humanidade, é seu “maior pesadelo”. E deveria ser encarada com mais firmeza neste presente, em tempo de mitigar os danos, já que parece a cada dia mais improvável revertê-los. Esse tema empolga tanto (ou mais) Meirelles quanto discorrer sobre seu mundialmente reconhecido trabalho à frente de filmes como “Cidade de Deus”, “O Jardineiro Fiel” e o recente “Dois Papas”, como se vê nesta sua entrevista exclusiva ao Fronteiras do Pensamento. E ele fala com a propriedade de quem se aprofunda cada vez mais nos estudos científicos que há décadas têm lançado recorrentes alertas sobre o aquecimento global e agressões diversas ao meio ambiente. 

Este assombro é reforçado pelo mais recente relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC, na sigla em inglês), que aponta um desastre iminente em curso, não mais projetado em um futuro próximo. Meirelles comenta ainda sobre os efeitos da pandemia em sua vida pessoal e profissional e as transformações da indústria audiovisual capitaneadas pelas plataformas de streaming.

O debate sobre a crise climática estará representado na edição 2021 do Fronteiras do Pensamento – Era da Reconexão por convidados como o indiano Pavan Sukhdev, economista ambiental com trabalho reconhecido nos campos da economia verde e das finanças internacionais.

O mais recente relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU renova o alerta que tem sido emitido de tempos em tempos. Você acompanha de perto e com muito interesse este tema há muitos anos. Qual sua esperança em uma ação imediata global que produza efeitos em tempo de evitar o pior cenário já numa próxima geração?

O último relatório do IPCC não apenas renova o alerta anterior, ele leva o alerta para outro nível, o vermelho. Já é quase uma sentença. Se antes havia fortes evidências de que os humanos eram os responsáveis pela crise climática e de que o tempo para reagir era escasso, agora é uma certeza de que somos os causadores do aquecimento do planeta e que o tempo para reação já passou. Para limitarmos o aquecimento em 1,5 grau, o que seria péssimo, teríamos que cortar 7% das emissões de gases de efeito estufa, todos os anos, pelos próximos 10 anos. Será possível? Durante a pandemia, as emissões cresceram 2%, mesmo assim três vezes menos do que o previsto, o que foi boa notícia. Mas em 2021 teremos o segundo maior crescimento de emissões da história. Para reverter esta tendência seria preciso dar um duplo flip carpado na lógica do mundo. Sejamos realistas, não vai acontecer a tempo. O que temos que fazer é ainda tentar limitar o aumento de temperatura a 2 graus, administrar os prejuízos e nos adaptarmos para o que vem. Este, aliás, é o tema do próximo relatório do IPCC, que sairá em 2022: medidas a serem tomadas e adaptações. Você pergunta qual a minha avaliação do quadro. Depende. Posso dar uma resposta que traga esperança, ou posso dar a real. Vai a real: a ciência já fez a sua parte. Palavras do cientista Paulo Artaxo, do IPCC: a única forma de evitarmos um desastre ainda maior seria adotarmos medidas de restrições tão enérgicas quanto exitosas, como as tomadas em relação à pandemia. O que me intriga é entender por que conseguimos parar o mundo por causa de um vírus, apesar dos muitos que se recusam a colaborar, mas não estamos conseguindo o mesmo por uma ameaça infinitamente maior. A solução já está dada: cortar emissões de carbono, isso implica, entre outras coisas, cortar a carne e laticínios da dieta, parar de andar de avião e diminuir drasticamente o nível de consumo. Não é muito fácil convencer o mundo disso. Sair plantando árvores numa escala de bilhões também ajudaria, mas a maioria das pessoas ainda acha que a ciência vai inventar alguma máquina para chupar os gases de efeito estufa da atmosfera, ou que o Bill Gates deve estar pensando em alguma saída. Isso é pensamento mágico. Até existem tecnologias que funcionam, mas o custo e o tempo para fazê-las ter algum efeito as inviabilizam. Temos que ser adultos e encarar, perdemos. Resta salvar o que resta. E me permita uma correção no enunciado da pergunta. O pior efeito não virá para a próxima geração. Em 2100, a minha neta será 10 anos mais jovem do que a minha mãe é hoje, e a minha mãe está muito bem. As gerações que vão padecer são estas que estão por aqui. Para os atuais 21 milhões de refugiados do clima, segundo a ONU, o sofrimento de não terem mais para onde ir não poderia ser pior. Todas as projeções do tempo em que os efeitos das mudanças se manifestariam mostraram-se otimistas. A crise do clima acelerou-se e não é mais uma preocupação para o futuro.

Enquanto países desenvolvidos projetam o abandono dos combustíveis fósseis e incrementam diretrizes mais efetivas em relação ao meio ambiente, grande parte do mundo ainda parece distante de adotar modelos de produção e consumo sustentáveis. Esta desigualdade de forças e interesses prejudica em que dimensão uma ação global de enfrentamento à questão ambiental?

Além de serem inequivocamente os responsáveis pelo estado do planeta, os países desenvolvidos, pelos seus níveis de consumo, ainda são de longe os maiores emissores de CO2, se pensarmos em emissão per capita. Um norte-americano emite 30 vezes mais CO2 do que um bengalês. Por causa de enchentes e tufões, Bangladesh já está pagando uma conta muito maior. Os países desenvolvidos são bons é de narrativa. No acordo de Paris ficou estabelecido que os países que ainda não chegaram a um certo nível de desenvolvimento teriam o direito de manter suas emissões por mais um tempo, e os países ricos deveriam bancar esta transição. A cada COP (conferência anual das Nações Unidas sobre mudança do clima) os países desenvolvidos se engalfinham para não ter que pagar a conta do estrago que fizeram. Há de fato na Europa um movimento de substituição de matriz energética e é louvável, mas faltam ainda as restrições às emissões. Implementar a tão falada taxa de carbono seria um caminho muito eficiente, tudo que emite gases de efeito estufa ficaria bem mais caro, mas há resistência por parte destes mesmos países.

E como você avalia o papel do Brasil nessa questão?

Ao reduzir drasticamente o desmatamento e os incêndios na primeira década do milênio fomos aplaudidos pelo mundo. O Brasil estava muito bem na foto até as COPs de Paris e Marrakesh. Hoje viramos os párias, a piada mundial, pelo negacionismo da presidência. Para voltarmos a estar bem na foto bastaria voltar a tomar cuidado com o desmatamento, que é responsável por metade das nossas emissões, só que não. A ignorância humana é um fenômeno que me fascina. Mesmo assim, somos um país vital para o mundo, no sentido literal, temos nas mãos o destino de vida ou morte do planeta. Explico: ao lado do permafrost, na Sibéria, que apresenta o maior potencial de emissão de gases de efeito estufa, se degelar, a Amazônia tem a segunda maior reserva de carbono estocado passível de ser liberada. Quando a floresta é derrubada ou morre, este carbono vai para a atmosfera. Segundo um estudo do LaGEE (Laboratório de Gases de Efeito Estufa), do IMPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), entre 2010 e 2017, a Amazônia já emite mais carbono do que absorve. As derrubadas e os incêndios na floresta aceleram este processo. Fora isso, a floresta também está morrendo pelo calor médio já estar acima de 32 graus. Há uma enzima que possibilita a fotossíntese que para de trabalhar acima desta temperatura e a árvore morre. É como se o mundo tivesse duas bombas-relógios e ambas já ativadas, o permafrost e a Amazônia. Mesmo que consigamos diminuir nossas emissões, talvez as bactérias do permafrost que produzem metano, ou as enzimas das folhas das árvores na Amazônia venham a ser nossos algozes. Ainda é possível pressionar o CEO da Shell ou da Petrobras, mas enzimas e bactérias não são muito diplomáticas. Se ao menos parássemos com a derrubada da floresta ganharíamos tempo, mas vai tentar explicar isso lá em Brasília, as bactérias do permafrost são menos frias e mais inteligentes do que a turma lá. O Brasil sequer tem uma bancada no Congresso que pense sobre o tema. Como cidadãos, o melhor que podemos fazer para ajudar nosso futuro seria começar a votar só em candidatos que levem a questão do clima a sério.

De que forma a pandemia impactou sua vida, diante da preocupação com a saúde e a paralisação da indústria audiovisual? Que prazer (re) descobriu e que novos hábitos pretende manter quando a vida estiver novamente próxima da normalidade?

Tenho até vergonha de dizer que pessoalmente a pandemia foi boa para mim. O isolamento me deu um tempo extra, que me possibilitou um mergulho para dentro. Adquiri a prática diária de meditação, retomei o hábito de leitura mais intenso, ando testando outros estados de consciência com o uso de psicodélicos lícitos e até fisicamente eu melhorei, por ter conseguido regularidade em treinos. Espero conseguir manter estes hábitos agora que estamos voltando. Quanto ao trabalho, sou sócio de uma produtora, então a paralisia do mercado audiovisual gerou preocupações, mas conseguimos nos manter graças à área de publicidade e agora as coisas estão voltando ao normal.  A O2, a produtora, está rodando quatro séries no momento. Haja protocolo. 

A pandemia acelerou a tendência de fazer das plataformas de streaming importantes janelas para o lançamento de filmes, como foi, antes da parada mundial, com o seu “Dois Papas”. Muitos especialistas do setor prospectam que é irreversível a consolidação de um mercado exibidor multiplataforma, com cada vez mais produções indo diretamente para o streaming. O futuro seria um cinema comercial cada vez mais voltado aos filmes-eventos, com pequenos exibidores dedicados a nichos cinéfilos. Você concorda com essa projeção?  

Concordo totalmente. Você perguntou e já respondeu, mas complemento. Há dois aspectos muito positivos na entrada das plataformas neste mercado, que são o aumento do volume de produção e a diversidade. Um mercado voltado para salas restringe a produção para filmes mais mainstream, filmes pensados para agradar o maior número de pessoas possível, ou projetos autorais que acabam tendo baixa audiência. Como a base de público das plataformas é muito maior do que a das salas de cinema, o que chamávamos de filme de nicho nas salas passa a ser um mercado na plataforma. Documentários, filmes religiosos, filmes LGBTQI+, cinematografias de países fora do eixo agora são viáveis. Hoje tenho acesso a séries da Turquia ou longas do Peru, assisti a um documentário lindo sobre fungos na Netflix. Nossos filmes também estão disponíveis no mundo todo. Só posso comemorar. Creio que daqui para frente as salas passarão a ser a cereja do bolo, um prêmio para quando se faz um bom filme com chances em festivais e para as comédias e os blockbusters.

Além dos prejuízos impostos pela pandemia, o audiovisual brasileiro, como todo o setor cultural, enfrenta com o atual governo uma relação de beligerância, que reacendeu a discussão sobre a censura e limitou políticas de fomento. Qual sua avaliação sobre esse quadro ? 

O cinema que depende de verba pública está paralisado. Há um dinheiro em caixa recolhido do próprio setor, o FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), mas ele não está sendo repassado. Por sorte, a entrada das plataformas no Brasil aconteceu justamente no momento em que esta torneira do dinheiro público se fechava. A atividade não só não parou como cresceu e continua crescendo. As séries são responsáveis pelo maior volume de produção no Brasil, mas hoje há várias plataformas começando a produzir longas. Netflix, Amazon Prime, HBO/Warner, Disney/Fox, Star+, Globoplay e Turner estão tocando projetos de longa-metragem. A boa notícia é que estes filmes que estão sendo desenvolvidos estarão acessíveis e terão maiores chances de encontrarem seu público do que no velho sistema de produção, feito só para salas de cinema. Apesar da Ancine (Agência Nacional do Cinema), nunca se produziu e se assistiu a tanto conteúdo brasileiro. Aproveito para recomendar Manhãs de Setembro, da O2, lançada recentemente pela HBO MAX. Não fui eu que fiz, então posso elogiar. Uma joinha, com a Liniker.

Após a calorosa recepção que você encontrou junto ao público e à crítica com “Dois Papas”, qual será seu próximo longa de ficção?

Braulio Mantovani e eu estamos terminando um roteiro sobre a crise do clima para a Netflix. Como deu para perceber, esta questão é meu maior pesadelo. Deveria ser o pesadelo de todo mundo. Às vezes me sinto como um personagem de Melancolia, (filme) do Lars Von Trier, tipo um paciente terminal.

Como produtor, seu nome está associado ao documentário “O Sentido da Vida”, dirigido pelo português Miguel Gonçalves Mendes. É um projeto que acompanha a viagem pelo mundo do engenheiro gaúcho Giovane Brisotto, que morreu em 2018 vítima de uma doença rara. O filme está pronto? Seu lançamento em tempos como os que estamos vivendo ganha para você um significado especial?

O filme está pronto e entregue, mas agora o Miguel resolveu montar uma nova versão. Ele deu a volta ao mundo com seu personagem, que sabia que corria risco de vida. Saíram nesta jornada para entender o sentido da existência. São centenas de horas de material. Se tudo der certo, até 2022 o Miguel conclui sua versão definitiva, que já dura uns oito anos. A versão que assisti já impressiona. As questões que o filme levanta podem ter ficado mais tópicas diante da ameaça e perdas que tivemos nestes últimos dois anos. Mas ainda não o revi com este olhar.

 

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