Postado em abr. de 2021
História | Internet e Redes Sociais | Social
Influenciadores digitais: uma mera encenação social?
Júlia Corrêa reflete sobre o culto da imagem, ancorada no historiador Peter Burke, e a encenação da vida perfeita, algo que se tornou marca dos influenciadores digitais.
Por Júlia Corrêa*
Na obra Testemunha Ocular, o historiador inglês Peter Burke, que passou pelos palcos do Fronteiras do Pensamento em 2007, defende a ideia do uso das imagens como evidência histórica. Logo na introdução, ele pondera: “nos próximos anos, será interessante observar como os historiadores de uma geração exposta a computadores e televisão praticamente desde o nascimento, que sempre viveu num mundo saturado de imagens, vai enfocar a evidência visual em relação ao passado”.
Em 2001, quando o livro foi publicado, o ambiente virtual ainda não contava com ferramentas como o Instagram, que levaram a proliferação de imagens a patamares jamais imaginados. Se, nos termos de Burke, a saturação da nossa experiência de mundo por uma quantidade crescente de imagens é uma questão que se impôs na era moderna — com a invenção da imprensa e, mais tarde, com a popularização da fotografia —, origina-se também desse quadro um debate mais atual sobre o uso que estamos fazendo das imagens.
Um documentário recém-lançado pela HBO, Fake Famous, escrito e dirigido por Nick Bilton, traz reflexões instigantes nesse sentido. A produção gira em torno do universo dos influenciadores digitais e tem como argumento um experimento inusitado. Três anônimos são selecionados para conquistar fama instantânea nas redes sociais. São jovens na faixa dos vinte anos, que vislumbram na experiência a oportunidade de concretizar suas ambições. Entre eles, por exemplo, está uma aspirante à atriz, rejeitada em testes de elenco por não fazer sucesso na internet.
Assim, enquanto ajuda-os na construção de uma imagem mais atraente para os padrões das redes, a produção do filme vai revelando os meios espúrios aos quais muitos usuários recorrem na busca incessante por engajamento. Talvez não seja uma grande novidade, mas o documentário escancara como a compra de seguidores (no caso, bots) é um dos meios mais comuns para simular um maior alcance das contas e impressionar marcas que buscam impulsionar a venda de seus produtos com a divulgação feita pelos influencers.
Tudo isso, mostra o filme, compõe um ciclo de mentiras a que muitos jovens (mas não só eles) estão submetidos atualmente. Os supostos influenciadores precisam afetar uma vida perfeita — cool ou luxuosa. Criou-se, aliás, todo um mercado de recursos para essa encenação. Ambientes que simulam trilhas na natureza, academias de ginástica e até mesmo jatinhos particulares surgem, hoje, para ajudar na construção de imagens de uma rotina dos sonhos.
Peter Burke bem nos lembra que “as tentações do realismo, mais exatamente a de tomar uma imagem pela realidade, são particularmente sedutoras no que se refere a fotografias e retratos”. As pinturas do passado, segundo ele, também não estão isentas dessa observação. Afinal, em tempos remotos, já eram usuais representações artísticas que favoreciam as figuras retratadas. “Os modelos geralmente vestiam suas melhores roupas para serem pintados, de tal forma que os historiadores seriam desaconselhados a tratar retratos pintados como evidência do vestuário cotidiano”, acrescenta Burke. Ora, se artifícios como esses definem as imagens há tanto tempo, o que haveria de novo no comportamento visto hoje nas redes sociais?
O próprio historiador nos dá pistas para entendermos as diferenças. Ao falar dos sistemas de convenções que sempre acompanharam a produção de retratos, ele sentencia: “as posturas e gestos dos modelos e os acessórios e objetos representados à sua volta seguem um padrão e estão frequentemente carregados de um sentido simbólico”. Se tomarmos como exemplo os antigos retratos da aristocracia, podemos entender, segundo essa lógica, que o reparo da aparência e o acréscimo de acessórios eram uma forma, portanto, de reafirmação simbólica de uma realidade já dada. Mencionando ainda as representações dos imperadores do passado, Burke lembra como os governantes apareciam em armaduras e em vestes de coroação, no que lhes conferia maior dignidade.
Certamente, a imaginação humana permitiu que pessoas fossem retratadas de formas não totalmente equivalentes a suas existências concretas. No entanto, o que havia era mais um idealismo nas representações individuais do que aquilo que notamos hoje — isto é, a frequente falta de qualquer lastro com a realidade. Por um lado, é interessante reconhecer a democratização existente agora quanto à produção e à circulação de imagens. Por outro, é justamente a proliferação e o amplo alcance de distorções como as mostradas no documentário Fake Famous que levam a um questionamento sobre o quanto não estamos presos a uma teia de artificialidade, regida ainda por relações mercadológicas nem sempre explícitas.
Indo além do interesse de Burke pelas evidências históricas e pensando na dimensão comportamental do nosso presente mais imediato, é difícil ignorar os danos causados por um cenário como este, em que tantos filtros borram, mais do que nunca, a nossa compreensão da realidade e impactam profundamente nossos valores. Afinal, influenciadores como os mostrados na produção da HBO mexem com o imaginário de seus seguidores, muitos deles jovens, que nem cogitam a vida entediante, pois falsa, de seus ídolos.
* Júlia Corrêa é jornalista e mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo (USP)
Peter Burke
Historiador