“Construir o inimigo” - um ensaio de Umberto Eco

Postado em jul. de 2021

Literatura | Filosofia | Cultura

“Construir o inimigo” - um ensaio de Umberto Eco

​Confira o ensaio de Umberto Eco “Construir o inimigo”, que dá título à coletânea de textos do autor italiano publicada pela Editora Record​​ no Brasil.


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Confira o ensaio de Umberto Eco “Construir o inimigo”, que dá título à coletânea de textos do autor italiano publicada pela Editora Record no Brasil. 

Construir o inimigo 

Alguns anos atrás, em Nova York, topei com um taxista cujo nome era difícil de decifrar e ele me explicou que era paquistanês. Perguntou de onde eu vinha e lhe respondi que era da Itália. Perguntou quantos somos e ficou muito espantado ao saber que éramos tão poucos e que a nossa língua não era o inglês. Por fim, perguntou quem eram os nossos inimigos. Diante do meu “como?”, esclareceu pacientemente que queria saber com que povos estávamos em guerra havia séculos por reivindicações territoriais, ódios étnicos, violações contínuas de fronteiras e assim por diante. Disse que não estávamos em guerra com ninguém. Pacientemente, explicou-me que queria saber quem eram os nossos adversários históricos, aqueles que matam a gente e que a gente mata. Repeti que não tínhamos, que nossa última guerra havia acontecido mais de meio século atrás e que, além do mais, começamos com um inimigo e terminamos com um outro. Não ficou satisfeito. Como é possível que exista um povo que não tem inimigos? Saltei do táxi, deixando um dólar de gorjeta à guisa de compensação por nosso indolente pacifismo, e só depois me veio à mente o que deveria ter respondido: que não é verdade que os italianos não tenham inimigos. Não têm inimigos externos e, de todo modo, não conseguiriam chegar a um acordo para apontar quem são eles, porque estão sempre em guerra entre si: Pisa contra Lucca, guelfos contra gibelinos, nortistas contra sulistas, fascistas contra partigiani, máfia contra Estado, governo contra magistratura — pena que na época ainda não tinha ocorrido a queda dos dois governos Prodi, pois poderia ter lhe explicado melhor o que significa perder uma guerra por culpa do fogo amigo. No entanto, refletindo melhor sobre o episódio, convenci-me de que uma das desgraças do nosso país nos últimos sessenta anos é justamente o fato de não ter inimigos. A unidade da Itália fez-se graças à presença do austríaco ou, como queria Berchet, do híspido, irritante alemão; Mussolini pôde desfrutar do consenso popular incitando-nos à vingança pela vitória mutilada, pelas humilhações sofridas em Dogali e em Ádua e pelas demoplutocracias judaicas que nos infligiam tais iníquas sanções. Vejam o que aconteceu nos Estados Unidos quando o Império do Mal desapareceu e o grande inimigo soviético dissolveu-se. Corriam o risco de ver desmoronar a sua identidade até que Bin Laden, reconhecido pelos benefícios recebidos em forma de ajuda contra a União Soviética, estendeu aos Estados Unidos a sua mão misericordiosa e deu a Bush a oportunidade de criar novos inimigos, reconsolidando o sentimento de identidade nacional e, de quebra, o seu próprio poder. Ter um inimigo é importante não somente para definir a nossa identidade, mas também para encontrar o obstáculo em relação ao qual medir nosso sistema de valores e mostrar, no confronto, o nosso próprio valor. Portanto, quando o inimigo não existe, é preciso construí-lo. Vejam a generosa flexibilidade com que os skinheads de Verona escolhiam qualquer um que não pertencesse ao grupo como inimigo, tudo para garantir seu autorreconhecimento como grupo. E aqui, nesta ocasião, mais do que o fenômeno quase natural de identificação de um inimigo que nos ameaça, o que nos interessa é o processo de produção e demonização do inimigo. Nas Catilinárias (II, 1-10), Cícero não teria necessidade de delinear uma imagem do inimigo, pois tinha provas do complô de Catilina. Mas ainda assim o constrói quando, na segunda oração, pinta para os senadores o retrato dos amigos de Catilina, reverberando sobre o principal acusado o seu halo de perversidade moral: 

Indivíduos que tresnoitam nos banquetes, abraçados a mulheres impudicas, enlanguescidos de vinho, fartos de comida, engrinaldados de flores, besuntados de unguentos, debilitados pela cópula, que vomitam incitações à morte dos cidadãos honrados e ao incêndio da cidade. (...) Estão bem debaixo de vossos olhos: sem um fio de cabelo fora do lugar, imberbes ou com a barba bem talhada, com túnicas de mangas longas que chegam aos tornozelos, envoltos em véus e não nas togas. (...) Estes “infantes” tão lépidos e delicados aprenderam não só a amar e ser amados, a dançar e a cantar, mas também a brandir punhais e a ministrar venenos.

 

O moralismo de Cícero será, mais tarde, o mesmo de Agostinho, que vilipendiará os pagãos porque, ao contrário dos cristãos, frequentam circos, teatros, anfiteatros e celebram festas orgiásticas. Os inimigos são diferentes de nós e se comportam segundo costumes que não são os nossos. E um diferente por natureza é o estrangeiro. Já nos baixos-relevos romanos, os bárbaros aparecem barbudos e com nariz chato, e o próprio apelativo “bárbaro”, como se sabe, faz alusão a um defeito de linguagem, logo de pensamento. Contudo, desde o início, são construídos como inimigos nem tanto os diferentes que nos ameaçam diretamente (como seria o caso dos bárbaros), mas aqueles que alguém tem interesse em representar como ameaçador, ainda que não ameacem diretamente, de modo que não temos o seu potencial de ameaça ressaltando sua diversidade, mas antes a sua diversidade tornando-se sinal de ameaça. Vejamos o que Tácito disse dos judeus: “Profano é para eles tudo o que é sagrado para nós e tudo que para nós é impuro é para eles lícito” (e vem à mente a rejeição anglo-saxônica contra os comedores de rãs franceses ou a alemã contra os italianos que abusam do alho). Os judeus são “estranhos”, pois não comem carne de porco, não botam levedura no pão, repousam no sétimo dia, só se casam entre si, praticam a circuncisão (imaginem) não porque é uma norma higiênica ou religiosa, mas “para marcar sua diversidade”, sepultam os mortos e não veneram nossos Césares. Uma vez demonstrado como alguns costumes reais (circuncisão, repouso aos sábados) são diferentes, pode-se sublinhar esta diversidade inserindo no retrato alguns costumes lendários (consagram a efígie de um asno, desprezam os pais, filhos e irmãos, a pátria e os deuses). Plínio não encontra elementos de acusação significativos contra os cristãos, visto que tem de admitir que não se dedicam a cometer delitos, mas antes a praticar ações virtuosas. Mesmo assim, decide condená-los à morte porque não sacrificam ao imperador, e esta obstinação em recusar uma coisa tão óbvia e natural estabelece sua diversidade. Com o desenvolvimento dos contatos entre os povos, surge uma nova forma de inimigo, que não é mais apenas aquele que está fora e que exibe sua estranheza a distância, mas aquele que está dentro, entre nós — hoje diríamos o imigrante extracomunitário —, que se comporta de modo diverso ou fala mal a nossa língua e que, na sátira de Juvenal, é o grego esperto e trapaceiro, descarado, libidinoso, capaz de levar para a cama a avó de um amigo. Estrangeiro entre todos, e pela cor diversa, é o negro. No verbete “Negro” da Enciclopédia Britânica, primeira edição americana, 1798, lia-se: 

Na carnação dos negros encontramos diversas gradações, mas todos se diferenciam igualmente dos outros homens, em todas as feições de seus rostos. Faces redondas, zigomas altos, uma fronte levemente elevada, nariz curto, largo e achatado, lábios espessos, orelhas pequenas, feiura e irregularidade de forma caracterizam seu aspecto exterior. As mulheres negras têm lombos muito cadentes e glúteos muito grandes, que lhes dão a forma de uma sela. Os vícios mais conhecidos parecem ser o destino desta raça infeliz: costuma-se dizer que ócio, traição, vingança, crueldade, impudência, furto, mentira, turpilóquio, dissolução, mesquinhez e intemperança extinguiram os princípios da lei natural e calaram as censuras da consciência. São estranhos a qualquer sentimento de compaixão e constituem um terrível exemplo da corrupção do homem quando deixado à própria sorte.

O negro é feio. O inimigo deve ser feio, pois o belo é identificado com o bom (kalokagathia), e uma das características fundamentais da beleza sempre foi aquilo que a Idade Média chamara de integritas (isto é, ter tudo o que é exigido para ser um representante médio daquela espécie; portanto, para os humanos, serão feios aqueles a quem falta um membro, um olho, ou que têm uma estatura inferior à média ou uma cor “desumana”). E eis que, do gigante monóculo Polifemo ao anão Mime, temos imediatamente o modelo de identificação do inimigo. No século V d.C., Prisco de Pânio descreve Átila como baixo de estatura, com tórax largo e cabeça grande, olhos pequenos, barba rala e crespa, nariz achatado e (traço fundamental) carnação escura. Mas é curioso como o rosto de Átila é semelhante à fisionomia do diabo, tal como é visto, mais de cinco séculos depois, por Rodolfo Glabro: de modesta estatura, pescoço delgado, rosto emaciado, olhos nigérrimos, testa encrespada de rugas, nariz achatado, boca protuberante, lábios espessos, queixo estreito e afilado, barba caprina, orelhas hirsutas e em ponta, cabelos duros e arrepiados, dentadura canina, crânio alongado, peito protuberante, dorso em corcunda (Crônicas, V, 2). No encontro com uma civilização ainda desconhecida, também são desprovidos de integritas os bizantinos vistos por Liutprando de Cremona, enviado em 968 ao encontro do imperador Otto I, em Bizâncio (Relatório da missão diplomática em Constantinopla):

Estive diante de Nicéforo, um ser monstruoso, um pigmeu de cabeça enorme, que parece uma toupeira pela pequenez dos olhos, é enfeado por uma barba curta, larga, espessa e crespa, cujo pescoço tem um dedo de comprimento (...) um etíope na cor, “com quem não gostaríeis de topar no coração da noite”, de ventre obeso, seco de nádegas, coxas longas demais para sua pequena estatura, pernas curtas, pés chatos e uma roupa de camponês gasta demais, fétida e desbotada à força do uso.

Fétido. O inimigo sempre fede e um certo Berillon escrevia, no início da Primeira Guerra Mundial (1915), um volume, La polychésie de la race allemande, onde demonstrava que o alemão médio produz mais matéria fecal do que um francês, e de odor mais desagradável. Se fedia o bizantino, fedia o sarraceno no Evagatorium in Terrae sanctae, Arabiae et Egypti peregrinationem, de Felix Fabri (século XV):

Os sarracenos emitem uma horrível fedentina e por isso dedicam-se a contínuas abluções de diversos tipos; e, como nós não fedemos, não se importam que tomemos banho junto com eles. Mas não são tão indulgentes com os judeus, que fedem ainda mais. (...) Assim, os malcheirosos sarracenos ficam contentes por estar em companhia de quem, como nós, não cheira mal.

Fediam os austríacos de Giusti (recordam “Vossa Excelência que me olha malsão / Por uma ou outra simplória gracinha”?):

Entro e a vejo apinhada de soldados, daqueles soldados setentrionais, boêmios e croatas trasladados, postos ali a vigiar, não mais. (...) Fiquei atrás, que ali naquele meio; naquele magote, digo e não nego, sentiria um ponta de receio do qual só lhe salva o seu emprego. Sentia um bafo e um fartum de permeio: Excelência, pareciam de sebo, naquela bela casa do Senhor, até as velas do altar-mor.

Não pode deixar de feder o cigano, visto que se alimenta de carniça, como ensina Lombroso (O homem delinquente, 1876, 1, II) e fede a inimiga de James Bond, em Moscou contra 007, Rosa Klebb, não apenas russa e soviética, mas ainda por cima lésbica:

Tatiana abriu a porta e ainda de pé, enquanto seus olhos encaravam aquela mulher sentada atrás de uma mesa redonda sob a luz de uma lâmpada central, lembrou de repente onde tinha sentido aquele cheiro. Era o cheiro do metrô de Moscou numa noite quente, perfume barato dissimulando os eflúvios animalescos. Na Rússia, as pessoas se ensopam literalmente de perfume, tenham ou não tomado banho, mas sobretudo quando não tomaram (...). A porta do quarto de dormir abriu e “aquela Klebb” apareceu na soleira (...) usava uma camisola transparente de crepe da China laranja (...) de um corte na saia despontava um joelho enrugado, que lembrava um coco seco e amarelado, levemente adiantado na pose clássica das modelos (...). Rosa Klebb tinha tirado os óculos e seu rosto estava empastado de ruge e batom (...). Em seguida, deu um tapinha no sofá a seu lado. “Desligue a luz central, minha querida. O interruptor fica ao lado da porta. Depois sente aqui, a meu lado. Precisamos nos conhecer melhor.” 

Monstruoso e malcheiroso, pelo menos nas origens do cristianismo, é o judeu, visto que seu modelo é o Anticristo, o arqui-inimigo, o inimigo que não é só nosso, mas de Deus: 

Estes são os seus traços: a cabeça é como uma chama ardente, o olho direito injetado de sangue, o esquerdo, de um verde felino, tem duas pupilas, suas pálpebras são brancas, o lábio inferior é grande, o fêmur direito é fraco, os pés grandes, o polegar achatado e alongado. (Testamento siríaco de Nosso Senhor Jesus Cristo, I, 4, séc. V) 

O Anticristo nascerá do povo dos judeus (...) da união de um pai e uma mãe como todos os homens e não, como se diz, de uma virgem. (...) No início de sua concepção, o diabo penetrará no útero materno, por virtude do diabo ele será nutrido no ventre da mãe, e a potência do diabo estará sempre com ele. 

(Adso de Montier-en-Der, Sobre o nascimento e os tempos do anticristo, séc. X) 

Terá dois olhos de fogo, orelhas como as de um asno, o nariz e a boca de um leão, pois enviará aos homens atos de loucura dos fogos mais criminosos e as vozes mais vergonhosas da contradição, fazendo-os renegar Deus, espalhando em seus sentidos o fedor mais horripilante, dilacerando as instituições da igreja com a mais feroz das concupiscências; rindo num esgar enorme, mostrando horríveis dentes de ferro. (Hildegarda de Bingen, Liber scivias, III, 1, 14, séc. XII)

Se o Anticristo vem do povo judaico, seu modelo não poderá deixar de reverberar sobre a imagem do judeu, seja no antissemitismo popular, seja no antissemitismo teológico ou no antissemitismo burguês oito-novecentista. Comecemos com o rosto: 

Têm, em geral, o rosto lívido, o nariz adunco, os olhos encovados, o queixo proeminente e os músculos constritores da boca fortemente pronunciados. (...) Os judeus são, ademais, sujeitos a doenças que indicam corrupção do sangue, como outrora a lepra e hoje o escorbuto, que lhe é afim, escrófulas, afluxos de sangue (...), Dizem que os judeus exalam sempre um mau cheiro (...) Outros atribuem estes efeitos ao uso frequente de ervas de odor penetrante, como a cebola e o alho. (...) Outros ainda dizem que é a carne de ganso, que eles apreciam muito,

que os torna lívidos e atrabiliosos, dado que é um alimento abundante em açúcares grosseiros e viscosos. 

(Baptiste-Henri Grégoire, Essai sur la régénération physique, morale e politique des Juifs, 1788)

Mais tarde, Wagner complicará o retrato com aspectos fonéticos e mímicos: 

No aspecto externo do judeu encontra-se algo de estranho que, mais do que qualquer outra coisa, repugna a esta nacionalidade; com um homem que tem um aspecto como aquele, ninguém quer ter nada em comum (...). É impossível para nós imaginar que um personagem da antiguidade ou dos tempos modernos, herói ou amoroso, seja representado por um judeu, sem que nos sintamos involuntariamente chocados com tudo o que há de inconveniente, ou melhor, de ridículo numa representação do gênero (...). Mas a coisa que mais nos repugna é o sotaque particular que caracteriza a fala dos judeus (...). Nossos ouvidos são particularmente agredidos pelos sons agudos, sibilantes, estridentes deste idioma. Os judeus usam as palavras e a construção da frase de maneira oposta ao espírito de nossa língua nacional (...). Ouvindo-os, mesmo sem o desejar, prestamos mais atenção a seu modo de falar do que àquilo que dizem. Este ponto é da maior importância para explicar sobretudo a impressão produzida pelas obras musicais dos judeus. Ouvindo o judeu que fala, sentimo-nos involuntariamente incomodados ao deparar-nos com um discurso desprovido de qualquer expressão verdadeiramente humana (...). É natural que, no canto — a mais vivaz e autêntica manifestação do sentimento individual —, a índole judaica nos seja especialmente detestável. Poderíamos reconhecer ao judeu uma aptidão artística, mas para qualquer arte que não seja a do canto, que parece ter-lhe sido negada pela própria natureza. 

Hitler procede com mais graça, quase nos limites da inveja: 

Nos jovens, a roupa deve ser colocada a serviço da educação. (...) Se hoje em dia a perfeição corpórea não tivesse sido relegada ao segundo plano por nossa moda descuidada, centenas de milhares de moças certamente não teriam sido seduzidas por asquerosos bastardos judeus de pernas tortas. 

Do rosto aos costumes, eis o inimigo judeu que mata criancinhas e bebe seu sangue. Ele aparece bem cedo, por exemplo, nos Contos de Canterbury de Chaucer, que narram a história de um menino muito parecido com São Simão de Trento que, ao passar pelo bairro judaico entoando o Alma Redemptoris Mater, é raptado, degolado e jogado dentro de um poço. O judeu que mata criancinhas e bebe seu sangue tem uma genealogia muito complexa, pois o mesmo modelo já existia na construção do inimigo interno do cristianismo: o herege. Um único texto é suficiente: 

À noite, quando se acendem os lumes e entre nós se celebra a paixão, conduzem a uma certa casa as donzelas que iniciaram em seus ritos secretos, apagam os lampiões, pois não querem que a luz seja testemunha das ignomínias que terão lugar, e desafogam a própria dissolução sobre quem for, mesmo que seja irmã ou filha. Na verdade, ao violar as leis divinas que vetam o conúbio com quem tem o mesmo sangue, acreditam que estão fazendo uma coisa grata aos demônios. Encerrado o ritual, voltam para casa e esperam que se passem nove meses: quando chega a hora em que deviam nascer os ímpios filhos de um ímpio sêmen, congregam-se de novo no mesmo lugar. Três dias depois do parto, arrancam os míseros filhos de suas mães, fazem cortes em seus tenros membros com uma lâmina afiada, recolhem em copas o sangue que jorra, queimam os recém-nascidos enquanto ainda respiram, jogando-os numa fogueira. Em seguida, misturam as cinzas ao sangue nas copas, obtendo uma horrível mixórdia com a qual sujam alimentos e bebidas, escondidos como quem joga veneno no hidromel. Esta é a sua comunhão. 

Às vezes o inimigo é percebido como diverso e feio porque é de classe inferior. Na Ilíada, Tersites (“vesgo, manco de um pé, ombros curvos em arco,/ esquálido, cabeça pontiaguda, calva/ à mostra, odioso para Aquiles e Odisseu”, II, 212) é socialmente inferior a Agamemnon ou Aquiles e, portanto, invejoso deles. Entre Tersites e o Frantis de De Amicis a diferença é pouca, ambos feios: Ulisses golpeia o primeiro a sangue e a sociedade enviará Franti à prisão perpétua (E. De Amicis, Cuore, 25 de outubro): 

E a seu lado, a cara dura e triste de um que se chama Franti, que já foi expulso de outra seção (...). Só uma pessoa poderia rir enquanto Derossi falava dos funerais do Rei, e Franti riu. Detesto Franti. É mau. Quando um pai vem à escola para passar uma descompostura no filho, ele se diverte; quando alguém chora, ele ri. Treme diante de Garrone e bate no filho do pedreiro porque é pequeno; atormenta Crossi por causa do braço morto; debocha de Precossi, que todos respeitam; zomba até de Robetti, da segunda, que anda de muletas por ter salvado uma criança. Provoca quem é mais fraco que ele e, quando parte para a briga, fica furioso e quer mesmo machucar. Tem alguma coisa que dá medo naquela testa baixa, naqueles olhos turvos, quase escondidos sob a aba do boné de lona encerada. Não tem medo de nada, ri na cara do professor, rouba sempre que pode, nega na maior cara de pau, está sempre brigando com alguém, leva alfinetes para a escola para espetar os colegas, arranca os botões da jaqueta, da sua e da dos outros, e joga fora; tudo dele, a pasta, os cadernos, os livros, é amassado, rasgado, sujo, a régua cheia de dentes, a caneta comida, as unhas roídas, as roupas cheias de manchas e rasgões feitos nas brigas (...). Às vezes, o professor até finge que não está vendo suas estripulias, estripulias, e ele faz pior ainda. Tentou convencê-lo com boas palavras, mas ele riu, debochado. Tentou adverti-lo com palavras terríveis, ele cobriu o rosto com as mãos como se estivesse chorando, e riu de novo.

Entre os portadores de feiura devida à posição social estão obviamente o delinquente nato e a prostituta. Mas com a prostituta já entramos num outro universo, o da inimizade ou do racismo sexual. Para o macho que governa e escreve, ou que escrevendo governa, desde o início a mulher foi apresentada como inimiga. Não nos deixemos enganar pelas mulheres angelicais, ao contrário: justamente porque a literatura maior é dominada por criaturas doces e belas, o mundo da sátira — que é, aliás, o do imaginário popular — demoniza a mulher constantemente, desde a antiguidade, por toda a Idade Média e até os tempos modernos. Para a antiguidade, limito-me a Marcial (Epigramas, 94):

Viveste sob trezentos cônsules, Vetustila; restam-te três cabelos e quatro dentes, tens o peito de uma cigarra, as pernas e a cor de uma formiga. Passeias por aí uma testa que tem mais pregas que tua estola e seios semelhantes a teias de aranha (...). Tua visão é como a das corujas de manhã e fedes como um bode; teu traseiro é igual ao de uma pata ressequida (...). Nesta tua vagina só o que pode penetrar ainda é a tocha fúnebre.

E quem seria, afinal, o autor do seguinte trecho? 

A mulher é animal imperfeito, arrebatado por mil paixões desagradáveis (...). Nenhum outro animal é menos limpo que ela: nem mesmo o porco, que às vezes chafurda no lodo, pode vencê-las em feiura; e se alguém tivesse a ideia de negá-lo, bastaria olhar suas partes ou procurar os locais secretos onde elas, envergonhadas, escondem os horríveis instrumentos que usam para extrair de si os humores supérfluos. 

Se assim pensava Giovanni Boccaccio (no Corbaccio), laico e libertino, imaginem o que devia pensar e escrever um moralista medieval para reiterar o princípio paulino de que, se fosse possível fazê-lo sem queimar de ardores, melhor seria nunca conhecer os prazeres da carne.

(...)

Parece que é impossível prescindir do inimigo. A figura do inimigo não pode ser abolida dos processos de civilização. A necessidade é inata também nos homens mais afáveis e amigos da paz. Nestes casos, a imagem do inimigo é simplesmente deslocada para uma força natural ou social que nos ameace de alguma forma e que precisa ser vencida, seja ela a exploração capitalista, a poluição ambiental ou a fome no Terceiro Mundo. Mas ainda que estes sejam casos “virtuosos”, como recorda Brecht, também o ódio contra a baixeza endurece a voz. Então a ética seria impotente diante da necessidade ancestral de ter inimigos? Posso dizer que a instância ética não surge quando se finge que não existem inimigos, mas quando se tenta entendê-los, colocar-se em seu lugar. Em Ésquilo não há aversão contra os persas, cuja tragédia este vive entre eles e do ponto de vista deles. César trata os gauleses com muito respeito, no máximo diz que são um pouco chorões quando se rendem. Tácito admira os germanos, considerando que têm mesmo umabela compleição e limitando-se a lamentar sua falta de higiene e sua relutância nos trabalhos mais árduos, pois não suportam calor e sede. Tentar entender o outro significa destruir os clichês a seu respeito, sem negar ou apagar sua alteridade. Mas sejamos realistas. Estas formas de compreensão do inimigo são próprias dos poetas, dos santos e dos traidores. Nossas pulsões mais profundas são de ordem bem diferente. 

(...)

A visão mais pessimista sobre isso vem de Sartre, em Huis clos. De um lado, só podemos nos reconhecer a nós mesmos na presença de um Outro, e nisto se baseiam as regras de convivência e mansuetude. Mas é mais fácil considerar este Outro insuportável, porque simplesmente não é nós. E assim, reduzindo-o a inimigo, construímos nosso inferno na terra. Quando Sartre encerra três defuntos, que não se conheceram em vida, num quarto de hotel, um deles compreende a tremenda verdade: 

Você vai ver que idiotice. Idiota como uma flor! Não tem tortura física, não é verdade? E, no entanto, estamos no inferno, lugar de ser castigado, né? Ninguém mais vem, vem? A gente vai ficar até o fim, só nós, juntos, não é isso? (...) Falta o carrasco. (...) Fizeram um corte de pessoal. É só isso. (...) Cada um de nós é o carrasco dos outros dois.

[CONFERÊNCIA PROFERIDA NA UNIVERSIDADE DE BOLONHA, EM 15 DE MAIO DE 2008, NO ÂMBITO DOS SARAUS SOBRE OS CLÁSSICOS, E PUBLICADA EM: IVANO DIONIGI (ORG.). ELOGIO DELLA POLITICA. MILÃO: BUR, 2009.]

>>> Leia o artigo de Eduardo Wolf sobre "Umberto Eco e a legião dos imbecis na internet"

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