Postado em abr. de 2021
Literatura | Cultura
Leia um excerto de "Sete tipos de ateísmo", livro de John Gray
Leia a seguir um excerto da obra Sete tipos de ateísmo, livro mais recente do filósofo John Gray publicado no Brasil em 2021 pela editora Record:
Leia a seguir um excerto da obra Sete tipos de ateísmo, livro mais recente do filósofo John Gray publicado no Brasil em 2021 pela editora Record:
MILENARISMO E GNOSTICISMO NA TRADIÇÃO OCIDENTAL
Os movimentos revolucionários modernos são continuações do milenarismo medieval. O mito de que o mundo humano pode ser refeito em uma reviravolta cataclísmica não morreu. Mudou apenas o autor desse fim dos tempos transformador do mundo. Nos velhos tempos, era Deus. Hoje, é a “humanidade”. Em sua seminal obra Na senda do milênio, publicada em 1957, Norman Cohn resumiu as características definidoras dos movimentos milenaristas:
Os movimentos ou seitas milenaristas sempre apresentam a salvação como:
(a) coletiva, no sentido de que deve ser desfrutada pelos fiéis como uma coletividade;
(b) terrestre, no sentido de que se realizará neste planeta, e não em um paraíso do outro mundo;
(c) iminente, no sentido de que sobrevirá subitamente em breve;
(d) total, no sentido de que transformará radicalmente a vida no planeta, de tal maneira que a nova revelação não será apenas um aprimoramento do presente, mas a própria perfeição;
(e) milagrosa, no sentido de que se realizará por meio ou com a ajuda de agentes sobrenaturais.
Com exceção da última, todas essas características se reproduzem nos movimentos revolucionários modernos. Dos jacobinos franceses no fim do século XVIII aos bolchevistas e seguidores de Mao e Pol Pot no século XX, esses revolucionários acreditavam que a humanidade estava criando um novo mundo. Em tempos antigos, os gnósticos supunham que os adeptos individuais podiam se libertar da prisão da matéria ascendendo a outro reino do ser. Possuídos por uma visão ainda mais fantástica, os gnósticos modernos imaginam que um outro reino pode ser construído na Terra.
Eric Voegelin, eminente estudioso do gnosticismo no século XX, resumiu o modo gnóstico de pensar em seis ideias. Em primeiro lugar, os gnósticos estão insatisfeitos com sua situação no mundo; em segundo, explicam sua insatisfação afirmando que o mundo é intrinsecamente defeituoso; em terceiro, acreditam que é possível a salvação da atual ordem de coisas; em quarto, afirmam que essa ordem terá de ser transformada em um processo histórico; em quinto, consideram que tal transformação pode ser alcançada pelo esforço humano; e, por fim, essa mudança exige a aplicação de um tipo especial de conhecimento, que está na posse dos adeptos do gnosticismo.
As seis características identificadas por Voegelin são encontradas nas formas modernas de gnosticismo. Mas ele se equivocava ao afirmar que o gnosticismo sempre sustentou a crença de que a ordem do ser pode ser alterada em um processo histórico. Ao longo da maior parte da história, os gnósticos consideravam a salvação uma fuga da história. Mesmo quando o gnosticismo se misturou ao mito apocalíptico (como em certas seitas mais ou menos da época de Jesus), os gnósticos não acreditavam que o mundo pudesse ser aprimorado, mas apenas destruído em um conflito cataclísmico de fim dos tempos. A crença de que o mundo pode ser transformado em um processo histórico só é encontrada no gnosticismo moderno, tendo sido herdada do cristianismo.
Um resumo mais preciso do pensamento gnóstico pode ser encontrado nas obras do estudioso alemão Hans Jonas. O gnosticismo, segundo relata, postula uma radical descontinuidade entre a humanidade e Deus:
A deidade é absolutamente transmundana, e sua natureza, estranha à do universo, que ela não criou nem governa, e da qual representa a total antítese: ao reino divino da luz, autossuficiente e distante, o cosmos se opõe como o reino da sombra [...] o próprio Deus transcendente está oculto a todas as criaturas e não é suscetível de ser conhecido por meio de conceitos naturais. O conhecimento dele requer uma revelação e uma iluminação sobrenaturais, e mesmo assim dificilmente pode ser expresso senão em termos negativos.
A cosmologia gnóstica é sombria e paranoica: “O universo [...] é como uma enorme prisão que tem como calabouço mais profundo a Terra, cenário da vida do homem. Ao seu redor e acima dela, as feras cósmicas se sobrepõem como conchas circundantes concêntricas.” A alma humana é “embotada, adormecida ou intoxicada pelo veneno do mundo: em suma, ‘ignorante’”. A salvação significa deixar o mundo: “O objetivo da busca gnóstica é libertar o ‘homem interior’ das amarras do mundo para fazê-lo retornar ao seu reino nativo de luz [...]. Munida da gnose, a alma ruma para cima depois da morte [...] alcança o Deus que está além do mundo e se reintegra à substância divina.” A libertação total só advém depois da morte.
A crença de que o mundo humano poderia ser refeito em um plano melhor não é encontrada em momento algum entre os gnósticos antigos. Não fica claro por que Voegelin insistia em identificar o gnosticismo com essa ideia. Talvez quisesse acreditar que o Ocidente é inocente das monstruosas religiões políticas dos tempos modernos. Mas o gnosticismo não é propriamente alheio às tradições ocidentais. Interagindo com os mitos milenaristas cristãos, o gnosticismo criou as religiões seculares que moldaram o mundo moderno.
A MÜNSTER DE JAN BOCKELSON: UMA PRIMITIVA TEOCRACIA COMUNISTA MODERNA
Ao se referir ao bolchevismo como uma religião, e não “um movimento político comum”, Bertrand Russell tocava em uma verdade mais ampla. Por compartilharem alguns dos mitos do monoteísmo, as grandes experiências políticas modernas tiveram natureza religiosa. O que pode ser constatado pelo exame dos movimentos milenaristas do início da época moderna.
No fim de seu estudo, Cohn escreve:
É característico desse tipo de movimento o fato de seus objetivos e premissas serem ilimitados. A luta social não é vista como uma luta por objetivos específicos e limitados, mas como um acontecimento de importância ímpar, de natureza diferente de todas as outras lutas conhecidas da história, um cataclismo do qual o mundo vai surgir totalmente transformado e redimido. É essa a essência do fenômeno recorrente — ou, se quiserem, da persistente tradição — a que chamamos “milenarismo revolucionário”.
Os elos entre essa tradição milenarista e os movimentos revolucionários modernos se tornam mais claros quando examinamos os escritos do profeta anabatista Jan Bockelson, do início da era moderna. No outono de 1534, Bockelson — também conhecido como João de Leiden, cidade holandesa onde havia liderado o movimento anabatista, insurgência cristã radical que rejeitava a autoridade da Igreja — declarou-se rei da cidade alemã de Münster. Ele esteve à frente de uma teocracia comunista que durou até junho de 1535, quando, depois de um longo sítio, a cidade foi tomada por forças leais à Igreja, sendo ele torturado até a morte na praça principal.
Bockelson não se valeu da religião para enganar e explorar. Como muitos profetas seculares depois dele, de fato estava convencido das visões que pregava. E tampouco era a fé de seus seguidores inspirada apenas pelo medo. Durante algum tempo, eles eram possuídos por um autêntico frenesi apocalíptico. À chegada de Bockelson na primavera de 1533, Münster já era uma cidade-Estado comunista-teocrática. Sob a liderança de Jan Matthys, que viria a se tornar o mentor de Bockelson, os anabatistas saquearam a catedral e queimaram os livros de sua biblioteca. Declarando que os autênticos cristãos compartilhavam o dinheiro como um bem comum, Matthys ordenou que todas as moedas de ouro e prata fossem entregues às autoridades. A partir dali, o dinheiro deveria ser usado apenas para finalidades como comprar suprimentos, distribuir propaganda e contratar mercenários. Foram criados refeitórios comunitários onde todos podiam comer juntos ouvindo leituras da Bíblia. Alimentos escondidos em residências particulares eram confiscados. Mais tarde, a própria vida privada seria condenada, sendo decretado que portas e janelas ficassem abertas dia e noite. O domínio de Matthys chegou ao fim quando, julgando agir por ordem divina, ele deixou a cidade no domingo de Páscoa de 1534 com um pequeno grupo de seguidores para enfrentar o exército que cercava a cidade, sendo capturado e morto. Seu corpo esquartejado e as partes íntimas foram pregados nos portões da cidade.
Tomando o poder após a morte de Matthys, Bockelson elevou a cidade-Estado comunista a um novo patamar. Os trabalhadores se tornaram propriedade da cidade; todo artesão que não fosse alistado no exército se tornava empregado público. Após um período de puritanismo fortemente policiado, foi imposta uma forma radical de poligamia. Todas as mulheres acima de certa idade eram obrigadas a casar. Aquelas que se recusassem a aceitar novos maridos eram ameaçadas de morte e, em certos casos, de fato executadas. Impôs-se uma forma de comunismo sexual em que todos — mas especialmente as mulheres — eram considerados propriedade sexual de todos. Negar a qualquer um seus direitos conjugais se tornou um pecado capital. Como veremos no capítulo 5, um regime semelhante de propriedade sexual comum seria preconizado mais de dois séculos depois pelo marquês de Sade.
Quando Bockelson se proclamou rei, tinha em mente um papel que ia além da monarquia habitual. Ele seria o messias dos últimos dias, governando todo o mundo. O que lhe foi apresentado como revelação divina. Em maio de 1534, saiu correndo nu pelas ruas da cidade, parecendo incapaz de falar. Passados três dias, revelou as ordens de Deus: os velhos hábitos da cidade seriam substituídos por uma nova revelação. Em setembro, ele se declarou o messias previsto nas profecias do Antigo Testamento — o rei da Nova Jerusalém. Mais que uma cidade governada por um profeta iluminado, Münster seria o início de um novo mundo.
Bockelson transformou radicalmente a vida na cidade. Ruas e portões foram rebatizados; domingos e dias festivos, abolidos. Luteranos e católicos foram expulsos, deixando seu dinheiro, alimentos e roupas sem uso. Os que permaneceram seriam rebatizados em longas cerimônias na praça do mercado. Quem não comparecesse à cerimônia podia ser condenado à morte. Além de impor um novo calendário, Bockelson criou um sistema pelo qual decidia os nomes dos recém-nascidos. Em lugar dos dias festivos do passado, foram instituídos banquetes públicos. Um trono foi erguido na praça do mercado, onde o rei distribuía pãezinhos para o povo.
Apesar dos banquetes, Bockelson governava a cidade pelo terror. Reuniões não autorizadas eram punidas com pena de morte. Quem tentasse deixar a cidade ou ajudasse alguém a fazê-lo corria o risco de ser decapitado. Um dos objetivos do terror era proteger o Estado de subversão por parte de agentes da Igreja, mas logo as execuções se transformariam em uma espécie de teatro popular. O rei presidia a performance e muitas vezes executava as decapitações, após as quais os cadáveres eram esquartejados, sendo as partes exibidas em diferentes pontos da cidade. Em junho de 1535, quando Bockelson foi morto, esses espetáculos públicos haviam se tornado diários.
Após a morte de Bockelson, o anabatismo radical entrou em declínio. Um novo líder messiânico fundaria uma outra Nova Jerusalém na Vestfália. Como a de Bockelson, ela praticava o comunismo nos bens e nas mulheres (o líder tinha 21 esposas). Tendo durado mais de uma década, a comuna degenerou em um bando de assaltantes, subsistindo graças ao fruto do roubo até o novo messias ser capturado e executado, juntamente com muitos de seus discípulos. Comunidades descendentes dos anabatistas continuaram a ser fundadas, algumas — como os menonitas — sobre vivendo até hoje. Mas o desejo de tomar de assalto o céu teria fim entre os crentes cristãos até o final do século XVI. A partir de então, os mitos apocalípticos se renovariam em formas explicitamente políticas, em sua maioria militantemente seculares.
O JACOBINISMO, PRIMEIRA RELIGIÃO POLÍTICA MODERNA
Os jacobinos constituem o elo mais evidente entre os milenaristas medievais e os movimentos revolucionários do século XX. O reinado do terror na França foi mais que um “aristocídio” das classes privilegiadas. Como aconteceria mais tarde na Rússia bolchevista, o maior número de vítimas se verificou de longe entre pessoas comuns. Entre elas estavam os mortos na repressão de uma sublevação contrarrevolucionária popular na Vendeia, que irrompeu depois da execução do rei Luís XVI em janeiro de 1793 e só seria desbaratada em 1796. Cerca de um terço da população morreu na região, onde as forças revolucionárias tinham entre seus métodos repressivos a queima de colheitas, a destruição de aldeias e os afogamentos em massa. O custo humano da Revolução Francesa chega às centenas de milhares de vidas. Produzindo líderes como Maximilien Robespierre, que como membro do Comitê de Salvação Pública organizou a execução em Paris de cerca de 20 mil inimigos da revolução, tendo sido ele mesmo guilhotinado em 1794, os jacobinos tinham como máxima — formulada pelo próprio Robespierre em um discurso na Assembleia Nacional — “Piedade é traição”.
Como os anabatistas, os jacobinos se preocupavam em preservar seu novo regime das investidas das forças contrarrevolucionárias. Também como no caso deles, sua tentativa de apagar os vestígios humanos da velha ordem obedecia a uma paixão religiosa. Um liberal francês do início do século XIX capturou essa evolução ao se referir à Revolução como “uma revolução política que funcionou à maneira de uma revolução religiosa, em certo sentido assumindo seu aspecto”. A revolução, prosseguia Alexis de Tocqueville, funcionava em relação a esse mundo exatamente da mesma maneira como as revoluções religiosas funcionam em relação à ordem; considerava o cidadão de uma forma abstrata, à parte de quaisquer sociedades específicas, da mesma forma como as religiões consideram o homem em geral, independentemente de tempo e lugar. Ela não buscava apenas os direitos particulares dos cidadãos franceses, mas os direitos e deveres políticos gerais de todos os homens. Assim sendo, como parecia mais preocupada com a regeneração da espécie humana do que com a reforma da França, gerou uma paixão que nem as mais violentas revoluções políticas tinham ostentado até então. Podia, assim, assumir essa aparência de uma revolução religiosa que tanto surpreendeu os contemporâneos; ou melhor, tornou-se ela própria uma espécie de nova religião, uma religião imperfeita, é bem verdade, sem uma forma de culto, e sem uma vida futura, mas que ainda assim, como o islamismo, inundou o planeta de soldados, apóstolos e mártires.
Essa é uma visão penetrante da transformação da política em religião que se acelerou nos séculos XIX e XX. Ao contrário do que afirma Tocqueville, contudo, a Revolução efetivamente adquiriu formas de culto e uma ideia de vida futura. O jacobinismo produziu a primeira religião política moderna. As formas de culto eram seculares, e a vida futura, um imaginário paraíso terrestre.
O fato de que o jacobinismo fosse uma religião era plenamente reconhecido pelos próprios jacobinos. Logo depois da tomada da Bastilha em julho de 1789, uma série de festivais anunciava a fundação de um novo
culto cívico. Em novembro de 1793 — o ano 2 do novo calendário —, uma Festa da Razão foi realizada em todo o país. As igrejas foram transformadas em Templos da Razão, sendo promovida na Catedral de Notre-Dame uma cerimônia em que uma Deusa da Razão era entronizada em um novo altar (tendo sido demolido o altar original) envolto em ondulantes mantos de estilo romano ornamentados com faixas tricolores. Um programa de descristianização foi aplicado em toda a França. Igrejas foram fechadas, e estátuas, cruzes e inscrições removidas de túmulos. O objetivo não era a separação entre Igreja e Estado, mas a destruição do cristianismo e sua substituição por um novo culto oficial.
Os jacobinos não eram unânimes quanto à natureza do culto que haviam estabelecido. Alguns tendiam para o ateísmo: a própria ideia de Deus é que precisava ser descartada. Outros tendiam para o credo deísta, no qual Deus criou o mundo, mas não interfere nele. Entre esses estava Robespierre, que no auge do poder, em 1794, anunciou a fundação do Culto do Ser Supremo.
Uma declaração oficial de maio daquele ano estabelecia os princípios da nova religião:
O povo francês reconhece a existência do Ser Supremo e a imortalidade da alma. Reconhece que o culto digno do Ser Supremo é a prática dos deveres do homem. Situa na linha de frente desses deveres detestar a má-fé e a tirania, respeitar os fracos, defender os oprimidos, fazer aos outros todo o bem possível e não ser injusto com ninguém. Serão instituídas comemorações para lembrar ao homem a Divindade e a dignidade do seu ser. Tais festas serão batizadas com os nomes dos gloriosos eventos da nossa Revolução, as virtudes mais apreciadas e mais úteis ao homem e os grandes dons da natureza.
Essa religião cívica era uma protoversão da religião da humanidade, mais tarde formulada por Saint-Simon e Comte. Hoje, a religião da humanidade de Comte enquadra as ortodoxias do humanismo secular. Todos esses credos modernos combinam formas monoteístas de pensar com elementos derivados do gnosticismo. Um dos exemplos mais instrutivos dessa fusão é o bolchevismo.
O BOLCHEVISMO: ESPERANÇAS MILENARISTAS, VISÕES GNÓSTICAS
Pode parecer que há uma longa distância entre uma cidade-Estado teocrática do século XVI e a experiência soviética de comunismo que teve início em 1917, mas encontramos algumas afinidades interessantes entre as duas. Lenin considerava que a derrubada do czarismo não era apenas uma reviravolta específica; a Revolução Russa inauguraria um novo mundo. Como a teocracia anabatista de Münster, o regime bolchevista assinalou o nascimento da nova ordem mudando os nomes de cidades, ruas e lugares públicos e instituindo um novo calendário. Igrejas e sinagogas, mesquitas e templos foram saqueados, sendo os prédios demolidos ou destinados a outros usos. Foi imposto um novo sistema econômico — o Comunismo de Guerra —, com base na organização do trabalho e no racionamento, visando a abolir o dinheiro e as trocas no mercado. Quando estivesse estabelecida na Rússia, Lenin esperava que a nova ordem se disseminasse pelo mundo todo.
O bolchevismo se compunha de certo número de tradições, algumas nitidamente russas. Segundo o teólogo ortodoxo Nikolai Berdyaev, “em virtude de seu espírito dogmático-religioso, os russos sempre são apocalípticos ou niilistas”.7 Berdyaev fazia o bolchevismo remontar à revolução de cima para baixo imposta por Pedro, o Grande, e ao mito de que a Rússia seria uma Terceira Roma destinada a redimir o mundo. Como veremos adiante, o bolchevismo também continha uma corrente de gnosticismo influenciada pela ortodoxia russa. Mas, além disso, os bolchevistas deram continuidade a uma tradição europeia que vinha da religião cívica jacobina, valendo-se do terror metódico para purificar a sociedade do passado. O bolchevismo se inscrevia em uma linhagem que remontava ao milenarismo medieval.
Não obstante os muitos protestos em contrário, o uso metódico do terror teve início com Lenin e não Stalin, que empregou os métodos do antecessor em mais ampla escala. Em sua “Ordem de Enforcamento”, de agosto de 1918, Lenin instruía os bolchevistas a executar por enforcamento os camponeses que resistissem ao confisco de grãos, “para que a população possa ver e tremer”. Entre as ordens enviadas aos sovietes provinciais estavam diretivas de “abater a tiros e deportar” prostitutas que distraíssem soldados do Exército Vermelho de seus deveres. Em 1919, todos os escoteiros de Moscou foram abatidos a tiros, e em 1920 foram executados todos os membros do clube de tênis. Figuras de destaque cuja hostilidade ao novo regime fosse esperada eram expulsas do país. Em 1922, Lenin alugou dois navios alemães para transportar ao exterior do país centenas de filósofos, linguistas, teólogos, escritores e bailarinas, sendo outros despejados em trens. A segurança dos que se recusavam a partir não era garantida.
Lenin praticou o terror em vasta escala. Da repressão que se seguiu a uma revolta dos trabalhadores em Kronstadt e uma rebelião camponesa em Tambov, em 1920-1921, fizeram parte milhares de execuções. Nikolai Gumilev, cofundador do movimento poético acmeísta e marido da poetisa Anna Akhmátova, foi detido pela Tcheka — a polícia secreta soviética — por cumplicidade em uma suposta conspiração monarquista e abatido a tiros em uma floresta em agosto de 1921, juntamente com sessenta outros supostos conspiradores. A rebelião de Tambov foi esmagada com métodos que incluíam a destruição de aldeias inteiras, a deportação dos habitantes e a utilização de gás venenoso para expulsar das florestas os que nelas haviam se refugiado. Os camponeses capturados eram sumariamente executados por métodos que contemplavam mutilação sexual, empalação, congelamento, escalda e — como no terror francês — afogamento em massa.
O alcance e a crueldade da repressão bolchevista muitas vezes são atribuídos à Guerra Civil que ocorria à época. Os brancos cometiam assassinatos em massa, inclusive o massacre de forças do Exército Vermelho e a eliminação de cerca de 300 mil judeus ucranianos e bielorrussos. Mas o terror de Lenin servia a um objetivo que ia muito além da Guerra Civil. Não só assegurava a sobrevivência do novo regime, como também visava a expurgar a Rússia dos remanescentes humanos do passado — meta declarada em um texto fundador do Estado soviético.
Na Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, promulgada na União Soviética em janeiro de 1918, as partes da população identificadas como “antigo povo” perdiam seus direitos. Desses grupos faziam parte funcionários da polícia e das forças armadas czaristas, grupos sem classe definida que viviam de renda, o clero de todas as religiões e quem quer que dependesse economicamente de qualquer desses. Excluídos do sistema de racionamento (para muitos a principal fonte de sustento), sujeitos a ter suas propriedades confiscadas e impedidos de ocupar cargos públicos, os integrantes desses grupos eram alijados da sociedade. O que não se aplicava apenas a eles, mas também a suas famílias. Muitos desses “elementos sedentários” morreram de fome. Muitos outros foram mandados para os campos de concentração do gulag. Em 1920, a Tcheka mantinha em funcionamento mais de vinte campos, onde muitas “antigas pessoas” morreram em decorrência do excesso de trabalho, do espancamento ou do frio. Como no terror francês, a maior parte das vítimas da revolução era de pessoas comuns. A maioria dos internos dos campos não era de membros das antigas classes médias ou da classe dominante. Segundo estatísticas oficiais da época, cerca de 80% eram analfabetos ou tinham pouca escolaridade. De longe, a maior parte das vítimas do terror bolchevista era camponeses ou operários da indústria.
Para Lenin, o custo humano da Revolução era um incidente passageiro no caminho para um novo mundo. Baseava essa convicção, que parece ter sustentado até a morte, em sua versão da interpretação da história em Marx, que ele expunha em panfletos escritos apressadamente nos intervalos da luta pelo poder. Mas outras correntes de pensamento participaram do bolchevismo, entre elas algumas inconfundivelmente gnósticas.
Sabe-se que o corpo de Lenin foi embalsamado para ser exibido em um mausoléu público. Menos conhecido é o fato de o túmulo de Lenin ter sido obra de um grupo bolchevique que se denominava “Construtores de Deus”, e do qual faziam parte o escritor Máximo Gorki, o comissário do esclarecimento Anatoly Lunacharsky (discípulo não só de Marx como de Nietzsche), que controlava a educação e censurava as artes nos primeiros anos do regime soviético, e o primeiro-ministro do Comércio soviético, Leonid Krasin.
Esses construtores de Deus acreditavam que, com o constante avanço da ciência, Lenin talvez pudesse de fato ser revivido em algum momento no futuro. Eles eram influenciados pelo pensador religioso Nikolai Fedorov (1829-1903), segundo quem a ciência seria capaz de proporcionar a liberdade em relação à morte prometida pelo cristianismo ortodoxo, que encarava a imortalidade como ressurreição física em um corpo humano aperfeiçoado. A superação da mortalidade requeria que a humanidade assumisse o controle do mundo natural, em última análise abandonando o planeta rumo a outros mundos (ideia de Fedorov que tem influenciado a pesquisa espacial russa até hoje). Muito antes dos visionários do Vale do Silício, os construtores de Deus russos promoviam um projeto tecnológico de libertação da morte.
Falando sobre o funeral de um companheiro revolucionário três anos antes da morte de Lenin, a 21 de janeiro de 1924, Krasin expôs uma versão bolchevista da filosofia de Fedorov. Os futuros líderes revolucionários não haveriam de morrer para sempre:
Estou convencido de que virá um tempo em que a ciência vai se tornar todo-poderosa, capaz de recriar um organismo morto. Estou convencido de que chegará o tempo em que será possível usar os elementos da vida de uma pessoa para recriar a pessoa física. E estou convencido de que, quando chegar esse momento, quando a libertação da humanidade, utilizando todo o poder da ciência e da tecnologia, cuja força não podemos hoje imaginar, for capaz de promover a ressurreição de grandes figuras históricas — estou convencido de que, quando vier esse momento, entre as grandes figuras históricas estará o nosso companheiro.
Foi Krasin quem propôs que o líder soviético fosse imortalizado em um mausoléu público. Para isso, tentou congelar o cadáver de Lenin usando um sistema de refrigeração. O sistema não funcionou, e o corpo de Lenin começou a dar sinais de decomposição. Outro refrigerador foi então encomendado na Alemanha — para os bolcheviques, a pátria da tecnologia mais avançada —, mas tampouco foi capaz de deter o processo de putrefação. Só depois de se revelarem infrutíferas essas primeiras tentativas de suspensão criônica é que o cadáver de Lenin finalmente foi embalsamado.
A princípio feita de madeira, a tumba de Lenin foi aberta ao público em agosto de 1924. Sua estrutura cúbica foi concebida pelo arquiteto A. V. Shchusev, membro do movimento construtivista que também reformou a prisão deLubyanka. Em uma reunião da comissão criada para organizar o funeral de Lenin, Shchusev explicou de que maneira a tumba cúbica imortalizaria o líder morto: “Vladimir Illich é eterno [...]. Como poderemos honrar sua memória? Na arquitetura, o cubo é eterno [...]. Que o mausoléu que vamos erguer como um monumento a Vladimir Lenin derive de um cubo.”
A concepção cubista de Shchusev se inspirava em Kazimir Malevich, fundador do movimento artístico supremacista. Considerando as formas geométricas abstratas como sinais de uma realidade superior, Malevich via na estrutura cúbica do mausoléu de Lenin a representação de um reino além da morte. “O ponto de vista de que a morte de Lenin não é morte, de que ele está vivo e é eterno”, escreveu Malevich, “é simbolizado em um novo objeto que assume a forma do cubo”. O artista propunha então que os seguidores de Lenin instalassem um cubo em algum recanto de suas casas, escritórios, fábricas e fazendas. O partido aceitou a proposta, ordenando a fabricação e distribuição de cubos. Durante algum tempo, “recantos de Lenin” adornados com cubos podiam ser encontrados em todo o país.
A morada final do político seria um estojo de vidro sobre um mausoléu de granito vermelho concluído no outono de 1930. Quando as tropas nazistas avançavam em direção a Moscou em julho de 1941, o corpo foi retirado antes de qualquer dos habitantes da cidade. Depois da guerra, retornou ao mausoléu. Em 1973, quando o partido decidiu tornar públicos certos documentos oficiais, a carteira do partido de Lenin foi a primeira a ser divulgada. Até o colapso do Estado soviético, suas roupas eram periodicamente mudadas, vestindo-se o cadáver com novos ternos feitos por uma equipe de costureiras da KGB.
O zelo em relação ao cadáver de Lenin contrastava com a indiferença pela vida humana evidenciada por ele. Sob sua liderança, os bolcheviques praticaram um tipo de assassinato em massa nunca visto até então na Rússia. Matavam não só para derrotar seus muitos inimigos, mas para moldar uma nova humanidade. Nisso, seguiam um caminho já percorrido não só pelos jacobinos como também, antes deles, por milenaristas como Bockelson. O messias de Leiden não se importava com o número de mortos na construção da Nova Jerusalém. Além da redenção, eles estavam destinados à danação. Lenin não tinha crenças dessa natureza, mas se mostrava mais que disposto a matar sistematicamente, e em enorme escala, para criar o novo mundo descortinado no sucedâneo de religião do bolchevismo.
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John Gray
Filósofo político