Leïla Slimani responde: uma visão multicultural em um mundo de fronteiras

Postado em jun. de 2018

Literatura | Sociedade | Cultura | Mulheres Inspiradoras

Leïla Slimani responde: uma visão multicultural em um mundo de fronteiras

Franco-marroquina, Leïla Slimani encerrou sua participação no Fronteiras trazendo o olhar multicultural que sua história de vida proporcionou, um universo paralelo em um mundo repleto de barreiras.


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Vencedora do Prêmio Goncourt por Canção de ninar, a escritora Leïla Slimani foi a conferencista do Fronteiras do Pensamento São Paulo, na noite desta quarta-feira (20). No palco do Teatro Santander, a autora compartilhou relatos de sua trajetória pessoal com o público e destacou aspectos da criação de seus romances, como a construção de personagens extremamente solitários, que se sentem como “estranhos” em sua própria realidade: "Meus personagens têm o sentimento confuso de não pertencer a nenhuma comunidade, de não fazer parte de qualquer grupo que possa compreendê-los ou demonstrar solidariedade. Até mesmo seus familiares parecem estranhos para eles. A vida se desdobra diante de seus olhos sem que eles tenham a sensação de controlar qualquer coisa."

Expoente da literatura francófona, a franco-marroquina enfatizou que, em seus livros, não procura defender ideologias ou grupos minoritários, como muitos esperam da literatura de escritores oriundos de países como a África, mas busca destacar o potencial mágico que a literatura possibilita – o exercício da alteridade: “Quando escrevo um romance, eu não tenho um objetivo ou uma intenção política. Eu não acho que um romance sirva para dar uma mensagem. Acho que o romance está ali para colocar perguntas e eu não tenho as respostas. Cada leitor vai buscar as repostas que lhe convém, ou será uma obsessão refletir sobre o assunto e buscar mais respostas e perguntas. Acho que é uma forma de acordar as pessoas, de fazê-las abrirem os olhos para algo diferente”, afirmou.

PERGUNTAS E RESPOSTAS 

Após sua fala, Slimani respondeu as questões do público. Dentre elas, estava a Pergunta Braskem, enviada pelos seguidores do Fronteiras nas mídias digitais. Confira a resposta da convidada a esta e a outras questões, apresentadas no palco do projeto.

Mesmo seus livros de ficção foram fortemente direcionados ou influenciados por casos reais (um escândalo sexual e um homicídio de crianças). A literatura, de alguma forma, serve como este grande espelho da realidade? É possível discutirmos problemas sociais, econômicos e políticos por meio da ficção? Este é um dos seus papéis como escritora?
Leïla Slimani
: Eu não sei se pode ser um espelho da realidade.... Eu acho que a literatura é uma realidade ou uma espécie de realidade paralela que buscamos recriar. Há várias dificuldades ao escrevermos: a complexidade, o formato, a linguagem, mas o mais difícil é criar essa impressão do real, é dar a sensação de que existe uma vida nesse livro.

Ao escrever, eu quero que o leitor, depois de algumas páginas, não tenha mais a sensação de ler um livro, mas de estar em contato com algo que é verdadeiro ou que poderia ser verdadeiro. Isso é difícil, mas, ao mesmo tempo, é o que faz com que os temas que abordamos possam tocar o leitor.

Quando escrevo um romance, eu não tenho um objetivo ou uma intenção política. Eu não acho que um romance sirva para dar uma mensagem. Acho que o romance está ali para colocar perguntas e eu não tenho as respostas. Cada leitor vai buscar as repostas que lhe convém, ou será uma obsessão refletir sobre o assunto e buscar mais respostas e perguntas. Acho que é uma forma de acordar as pessoas, de fazê-las abrirem os olhos para algo diferente. Ao começar um romance, eu nunca digo ao leitor: “querido leitor, agora eu vou dizer a você como você deve ler o mundo”. Eu não sei de nada. Tenho tantos problemas e questões quanto os meus leitores.

Leïla Slimani encerrou sua participação no Fronteiras trazendo o olhar multicultural que sua história de vida proporcionou, um universo paralelo em um mundo repleto de barreiras. Confira as respostas da conferencista sobre temas como liberdade, direitos humanos, religião e identidade.

Uma ética da literatura

É claro que eu acredito em uma ética da literatura. A literatura é um espaço de liberdade absoluta. Na literatura, podemos fazer tudo, falar de tudo, abordar qualquer coisa. Em um grande livro, podemos falar dos ancestrais, podemos falar do masculino, podemos falar de um personagem monstruoso. Dostoiévsky escreveu centenas de páginas sobre um assassinato e transformou isso em uma das maiores obras da literatura mundial, em um dos livros mais belos.

Não existe moral na literatura, existe uma liberdade absoluta. Como Georges Bataille dizia, é justamente por conta dessa liberdade absoluta que existe uma espécie de exigência também absoluta. Ou seja, a literatura pode tudo aceitar, mas não pode aceitar uma obra medíocre. A obra precisa ser maravilhosa, bem-feita. Como Proust diz: “Em uma bela obra, podemos fazer tudo”. Então, existe sim uma ética, mas também uma exigência, uma obrigação que vem com ela. Precisamos estar à altura da liberdade que a literatura nos oferece.

Liberdade de identidade 

De início, acho que a literatura pós-colonial na África e no Magreb foi uma literatura muito identitária. Em países como o Marrocos ou na África subsaariana, o romance era um formato que nem existia. Ele veio com a colonização francesa ou inglesa e é o mesmo caso na Índia, este formato nem existia.

Os primeiros autores pós-coloniais escreveram em relação à situação política e contribuíram para construir as nossas identidades depois da colônia, então todos os que vieram depois se sentiram obrigados a levar adiante essa identidade. Mas, nos últimos 15 anos, acho que passou a existir uma nova corrente e um desejo de parte desses escritores de abordar outras questões e poder falar livremente, independentemente de questões identitárias, de poder falar de amor, de psicologia, de sexualidade, ou talvez, apenas contar histórias.

Essa liberdade de identidade da qual falamos na literatura, diz muito sobre o desejo de liberdade que existe na sociedade. Buscamos maior liberdade de identidade individual e queremos nos desvencilhar desse peso do grupo que nos é imposto. Acho que a literatura revela isso.  

Há toda uma nova geração de autores no Magreb que não têm que prestar contas. Eles escolheram uma língua e não precisam se justificar por essa escolha para aqueles que dizem que eles são traidores ou para os que dizem que eles são vítimas do colonialismo. Com relação aos temas também, muitos autores falam da sexualidade, da prostituição ou das violências sociais, que eram temáticas muito difíceis de serem abordadas há alguns anos. Então, existe essa nova geração muito dinâmica, muito forte, e Kamel Daoud, que é um dos autores mais fortes hoje em dia, é um autor de combate que aborda a literatura de uma forma muito livre e que escolheu o francês em um país como a Argélia. A relação com o idioma francês é muito complexa e muito agressiva em seu país e, ao fazer essa escolha, ele luta também contra os extremistas, contra os fundamentalistas, contra esse islamismo radical que quer nos impor uma certa identidade.

Identidade muçulmana x múltiplas camadas identitárias

As pessoas que acham que existe uma cultura muçulmana ou uma identidade muçulmana, são os islamistas fundamentalistas que nos dizem: vocês são muçulmanos. Eu não creio nisso, não acredito que isso exista. Eu me sinto mais próxima de uma habitante de Madri do que de um muçulmano. Nós temos a mesma religião, mas não há uma identidade ou proximidade.

É preciso ter muita cautela ao dizer que pertencemos a determinadas civilizações, porque nós temos a religião muçulmana como ponto comum, mas habitamos lugares inteiramente diferentes, temos outros planos, outras camadas. Podemos ser berberes, podemos morar na região do Mediterrâneo, você pode ter uma ascendência com o império romano ou ligações com o mundo andaluz. Todas essas camadas, tradições e histórias precisam ser valorizadas. Não podemos de forma alguma cair na armadilha daqueles que dizem: esqueça tudo isso, porque a única identidade que você tem é a muçulmana, e amanhã você pode ir para a guerra contra um afegão ou contra alguém de outra religião porque você é muçulmana. Eu não acredito nisso. Não é porque eu tenho a mesma religião que outra pessoa, que eu vou ter o sentimento de ir para a guerra por esta essa identidade.

Religiões e os direitos das mulheres

Podemos falar também sobre o machismo que existe no Afeganistão, onde as mulheres não podem trabalhar ou não têm acesso a nada. Essa é uma outra questão, porque é o espaço público. E isso não é comparável com a situação da Turquia, que é um dos três países laicos do mundo, ou com a situação do Marrocos, onde as mulheres trabalham e têm a liberdade de ir e vir.

Falando disso, acho que não é um problema ligado à religião ou à cultura: o patriarcado é o ponto mais comum no mundo, e a misoginia também - a encontramos em qualquer parte do planeta. Todas as religiões são misóginas. A Irlanda é católica e, na discussão que houve há pouco tempo sobre o aborto, se vocês escutarem os discursos dos irlandeses sobre as mulheres, vão ver que são absurdos. Eu não acho que exista nenhuma religião hoje em dia que defenda os direitos humanos das mulheres. 

Direitos humanos acima das questões culturais

Acho que o homem pode ir além de situações singulares ou individuais, pensando a universalidade na moral e na sua relação com o próximo. Nós talvez não tenhamos a mesma cultura ou a mesma religião, mas podemos pensar que temos acesso à segurança, que temos direito à dignidade e que todas as crianças do mundo deveriam ter direito à educação e à saúde. Não me parece que esses são direitos ligados a questões culturais, mas sim ao simples fato de que fazemos parte da humanidade e precisamos assegurar a dignidade a todos. A dignidade é uma noção metafísica, não é cultural. Eu não acredito de forma alguma que poder olhar um homem ou mulher nos olhos e ver que ele merece o nosso respeito seja uma questão cultural.

A beleza do ser humano é justamente ter a capacidade de desenvolver conceitos universais que vão além do relativismo cultural. Existe a questão dos direitos humanos e ela deve se aplicar a todos os seres, independentemente de cor de pele, de religião, de origem. Aos que dizem: “Bom, isso não é da minha cultura” sobre cometer crimes, violações, aborto clandestino - isso não é uma cultura, não pertence ao plano cultural. Toda essa discussão pertence à dominância, ao terrorismo, ao patriarcado, coisas que não definem nenhuma cultura.

A questão da imigração

A arte está sempre presente e deve nos permitir confrontar a complexidade do real, mas a grande dificuldade é que há alguns anos ou meses, estamos falando com muita emoção sobre a questão da imigração. As pessoas compartilham fotos horríveis nas redes sociais, choram, ficam chocadas e depois esquecem. A gente fala sobre essa criança que se afogou na Turquia com o rosto na areia e todas as mamães do mundo vão chorar e depois vão esquecer. Acho que estamos totalmente equivocados de falar em emoções ao lidar com esse assunto, principalmente ao falar nas mídias sociais, porque choramos, então já provamos que somos seres humanos, que temos compaixão e isso é suficiente.

Eu acredito que os países europeus, assim como os Estados Unidos, estão provando que o nosso mundo está fracassando completamente moralmente. Quaisquer sejam as circunstâncias, se podemos dar socorro a alguém que está em perigo, se temos a possibilidade de tomar partido do lado da vida, precisamos fazê-lo, mesmo que isso vá contra os nossos interesses pessoais. Hoje em dia, tenho a impressão de que a Europa e os Estados Unidos esqueceram esses princípios, esqueceram que um estado não pode sobreviver ao esquecer ou desvalorizar a moral sobre a qual foi construída.

Não podemos ter um presidente que faz todo um discurso sobre a fraternidade e igualdade, se esses valores não querem dizer mais nada. Eu sou escritora e eu valorizo demais as palavras para mentir. Eu não posso usar todas essas palavras e termos belíssimos enquanto tantas pessoas morrem. Não posso utilizar essas palavras de maneira vã e superficial. O Mediterrâneo está cheio de cadáveres e, durante o verão, as pessoas vão para Côte d’Azur e para a Grécia nadar com seus filhos e parceiros muito próximos de milhares e milhares de pessoas que morrem nos mesmo mares.

Copa do Mundo

A alegria de ganhar a copa do mundo foi tão forte que, de uma hora para outra, houve esse sentimento de que todos poderiam coexistir e que, talvez, esse fato de ser diferente e multicultural constituía a nossa força e isso é extraordinário. Mas os árabes, os negros ou os imigrantes de forma geral, quando eles estão vencendo, quando estão ganhando medalhas olímpicas ou salvando pessoas, eles têm muito mais chances de serem aceitos na sociedade. Mas, evidentemente, quando você é criminoso ou tem algum problema, vão insistir na sua origem estrangeira como se você não fizesse parte da comunidade.

>> Acesse o libreto especial de Leïla Slimani, autora do best-seller Canção de Ninar
O libreto inclui biografia, links indicados e informações de destaque sobre a conferencista.

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Leïla Slimani

Leïla Slimani

Escritora e jornalista

Escritora e jornalista franco-marroquina, vencedora do Prêmio Goncourt.
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