Postado em ago. de 2019
Literatura | Cultura
Leonardo Padura: "Se o homem não tem memória de si mesmo, ele perde parte da sua essência"
Escritor abriu a edição 2019 do Fronteiras do Pensamento e falou sobre a sensação de pertencimento.
Autor do livro O Homem que Amava os Cachorros e da quadrilogia Quatro Estações em Havana - que virou série na Netflix -, Leonardo Padura foi o responsável por abrir as programações da nova série de conferências do Fronteiras do Pensamento Salvador. Padura subiu ao palco do Teatro Castro Alves para ministrar sua conferência nesta terça-feira (06).
O premiado escritor cubano apresentou o texto A cidade e o escritor, discorrendo 13 pontos centrais de seu país - sempre lembrando os motivos pelos quais continua lá. Afinal, o tema desta edição do evento é ‘Sentidos da Vida’ e, para ele, há conexões entre a construção literária e o sentido de pertencimento.
“O país é muito mais que sua geografia - ele nos afeta, nos define. Há 63 anos e pouquinho, moro na mesma casa, em Mantilla, um bairro da periferia e onde viveu meu pai, meu avô, meu bisavô. Isso é uma espécie rara. Isso contribuiu para forjar meu caráter. Sempre me senti, mais que cubano e habanero, um mantillero. Ali, chamo de pátria, é onde pertenço e influencia no que escrevo”, falou.
Para ele, um autor é um armazém de memórias. “Vivo as histórias, os dramas e tento escrevê-los. Eu posso odiar o que mais amo, sentir esses sentimentos incríveis, amores e dores, e escrever. Continuo sendo e pertencendo a este lugar”, disse.
Após sua fala, Padura respondeu perguntas do público e a Pergunta Braskem, enviada por nossos seguidores nas mídias digitais, patrocinadas pela Braskem.
Confira esta e outras respostas do escritor cubano.
Pergunta Braskem: Os eventos históricos são chaves muito importantes para o seu trabalho literário. Qual é a sua opinião sobre o revisionismo - histórico e cultural - que tem sido praticado mundo afora? É importante manter a memória de fatos passados?
Leonardo Padura: Há muitas tendências sobre os estudos da História, da Sociologia, da Ciência Investigativa que muitas vezes são contrapostas umas com as outras. Eu não sou um cientista, eu sou um escritor e vou responder como tal.
Se o homem não tem memória de si mesmo, ele perde uma parte da sua essência. Nós precisamos levar em consideração que nós somos resultado de alguma coisa: nós somos resultado de gerações, de acontecimentos, de processos históricos que vieram antes de nós.
Entre ontem e hoje eu tive que falar bastante sobre até que ponto Havana e Salvador são cidades parecidas. E aí vem a questão da memória, uma memória que tem a ver com uma história tão traumática como foi a escravidão de milhões e milhões de negros africanos que foram trazidos para a América e que fazem parte essencial da fisionomia de uma cidade como Salvador, ou de um país inteiro, como Cuba. Não somente de Salvador, mas em diversas outras cidades do Brasil onde a presença negra é muito importante.
Sempre digo que é melhor a memória do que o esquecimento. Sou um defensor das memórias coletivas e também das memórias individuais, porque é a partir dessas memórias que nós podemos, em algum momento específico, fazer uma reflexão que nos leve a conseguir perdoar aqueles que nos ofenderam ao longo do tempo e da história.
Muitos de seus personagens são de Havana, como você mesmo disse. Em “O romance da minha vida” você fala de um cubano que deixou Cuba no passado e agora está voltando. No romance em que você está trabalhando atualmente, você lança seu olhar sobre dos cubanos que estão exilados. Eu gostaria que você falasse sobre essas mudanças de perspectiva e se isso reflete algum processo interno que você vive.
Leonardo Padura: Em uma parte da minha conferência falei que o exílio foi uma das características que definiu a história de Cuba. Através dos nossos 200 anos de história nacional, nós sofremos o drama do exílio e sempre foi um desprendimento, um “se desgarrar”.
Nesse romance que será publicado neste ano pela Boitempo Editorial eu tomo como modelo o primeiro exilado cubano, aquele que criou a nostalgia de Cuba, José Maria de Heredia. Ele foi um poeta independente, romântico como Byron, um homem de ação em alguns momentos, um pensador, um homem com uma vida exagerada que morreu muito jovem. Através de Heredia, o primeiro exilado, faço uma ponte com um personagem da minha geração que teve que sair de Cuba e que agora retorna.
Nesta novela que estou escrevendo atualmente, falo de vários cubanos da minha geração que a partir dos anos 1990 começaram a abandonar o país por diferentes razões. Mas em todos os casos em que falo da questão do exílio, sempre vejo isso como um desgarro, um desprendimento, e um fato pelo qual a pessoa que assume esse movimento dificilmente é curada disso.
Há pessoas que moram fora de Cuba e que têm atitudes de negação em relação ao passado. Eles tentam esquecer esse passado. Outras manifestam isso com ódio, outras com amor, e há os que vivem seu exílio da melhor forma possível, sem sequer pensar muito em Cuba.
Um escritor cubano escreveu um texto muito comovente que dizia o seguinte: eu criei um propósito para ver se eu conseguiria passar um dia inteiro sem pensar em Cuba. E o fato de criar este desafio me fez pensar em Cuba o tempo todo.
Eu acho que isso faz sentido, porque nós temos esse sentido de pertencer muito forte. Não é algo exclusivo de nós cubanos que pensamos que vamos para a praia mais linda do mundo, com as mulheres mais lindas do mundo (claro que estou brincando com os estereótipos que nós temos).
Não acho que somos os donos universais da nostalgia, mas tenho convicção que isso afeta muito a gente e essa nostalgia é muito literária. É devido a isso que eu sempre volto ao drama do exílio nos meus livros.
Como surgem seus livros? De onde vem as ideias? Como você descobre essas histórias e como o jornalismo influenciou neste processo?
Leonardo Padura: Como surgem essas ideias eu não sei. Não me perguntem.
Para mim o grande mistério dos romances é: de todas as histórias que a gente ouve, vivencia, lê ou que alguém nos conta, por que a gente diz: é daqui que eu vou tirar uma ideia?
Nesse romance que nós mencionamos, “O romance da minha vida”, curiosamente foi lendo outro escritor cubano que estava citando uma carta de Heredia que dizia: “quando vai acabar a novela da minha vida para que comece a vida real? ”
Quando li que Heredia pensava que sua vida era uma novela e ninguém escreveu a novela da vida dele, daí surgiu a ideia de escrever o romance que até hoje é um dos que mais me agrada, por que é um desses livros que a gente está mais perto de dizer o que a gente queria dizer.
Não estou falando de censura. Estou falando do exercício literário em si. A essência da escrita está em aproximá-la ao máximo do que a gente tem na mente. Acho que esse é o sucesso da literatura.
O fato de eu ter sido jornalista, por outro lado, permitiu ter um conhecimento de Cuba muito diferente daquele que está nos livros de História. Eu percorria o país procurando personagens, acontecimentos e lugares que quase todo mundo sabia da existência, mas ninguém sabia muito bem o que tinha acontecido com eles.
Eu escrevia aquelas histórias, muitas vezes usando elementos da ficção, o que me ajudou muito no meu desenvolvimento como escritor e me permitiu um conhecimento mais profundo do meu país.
Eu me mantive ativo, fazia colunas, escrevia para a Folha de S.Paulo, escrevia crônicas, artigos, pequenas reportagens sobre a vida cubana contemporânea. Tudo isso me manteve e ainda me mantém conectado com a realidade.
Em Cuba é muito difícil você se desligar da realidade. A realidade te persegue. Se você fechar a porta, ela entra pela janela. É verdade, por que em algum momento você precisa de alguma coisa e conseguir essa coisa pode se converter em uma verdadeira tragédia doméstica, familiar, do bairro inteiro. Você está sempre vivendo em função de uma relação com a cidade, com as pessoas, com a realidade.
O sistema educacional de Cuba oferece opções e incentiva a formação de novos escritores e há uma nova geração de letras em Cuba que traz essa relação forte de pertencimento. Qual é o seu ponto de vista sobre as novas gerações de cubanos? Como a literatura chega até eles e quais são os seus desejos para os novos escritores?
Leonardo Padura: Nós temos uma academia em Cuba (que nesse momento está fechada por questões técnicas do prédio) que funciona como uma oficina de criação literária. Muitos jovens e pessoas interessadas em aprender a escrever vão até lá. Este lugar recebeu apoio oficial do governo e também apoio extraoficial de diferentes instituições e embaixadas.
O problema é que eu não acredito nas escolas de escritores. Para mim o escritor tem que ser uma pessoa que tenha cultura geral mais ampla possível e que tenha estudado uma carreira de humanas ou até da ciência, uma pessoa que tenha um nível cultural.
Um escritor primitivo praticamente já não existe hoje em dia e o maior exercício de aprendizado sobre como escrever é feito através da leitura.
Eu aprendi muito mais a escrever lendo com os autores que escreviam bem, do que lendo um manual que dizia: “o argumento é este ou aquele”. Eu acredito que isso não soluciona os problemas. Precisa existir aquela capacidade naquela pessoa e o aprendizado com aquele modelo que a gente tem que imitar.
Ernest Hemingway dizia que para matar os mortos é precisa bater os mortos - no sentido de concorrer com os que vieram antes da gente. Esse é o sentido da frase do Hemingway.
As novas gerações de escritores também expressam esse pertencimento?
Leonardo Padura: Sim. Principalmente em relação à leitura. No que diz respeito à leitura, eu me preocupo muito e me sinto bastante pessimista.
Cuba era um país em que os livros estavam em todos os lugares e com preços acessíveis. Lembro que nos aniversários tínhamos poucas coisas para dar de presente, então todos presenteavam com livros.
Os livros circulavam por Cuba no passado. Hoje, poucos são impressos e a oferta de leitura é muito menor.
Há um fenômeno universal no qual as gerações mais jovens - com algumas exceções, que eu acredito que correspondem a 1% ou menos que isso - preferem outras atividades culturais à leitura. Este é um fenômeno que não afeta somente Cuba ou o Brasil, é um fenômeno de proporções universais.
A nível de Estado, de Ministério de Cultural e de associações culturais ou de circuitos como este do Fronteiras do Pensamento, eu acredito que devemos aproximar as pessoas desta possibilidade, desta concretização de um conhecimento que é dado única e exclusivamente através da leitura.
O fato de nós escrevermos e lermos nos fez melhores, nos fez superiores. O fato de que existem gerações que leem cada vez menos quando as possibilidades são maiores, realmente pode ser uma tragédia de proporções universais.
(Com informações de Correio)
Leonardo Padura
Escritor e jornalista