Postado em out. de 2018
Educação | Sociedade | Ciência
Marcelo Gleiser responde: o futuro dos nossos filhos e a ciência no Brasil
Homens x máquinas? Educação tecnológica ou reaproximação da natureza? Qual o futuro da ciência no Brasil? Marcelo Gleiser responde na sua participação no Fronteiras Braskem 2018.
O físico brasileiro Marcelo Gleiser encerrou a temporada 2018 do Fronteiras Braskem do Pensamento Salvador nesta segunda-feira. Gleiser tocou em diversos pontos, como a inovação tecnológica, os desafios da era digital e a interação dos humanos com as máquinas.
O ciclo de conferencias deste ano também contou com as presenças do escritor angolano José Eduardo Agualusa, do filósofo francês Gilles Lipovetsky e do escritor e historiador Leandro Karnal.
Para Marcelo Gleiser, estamos vivendo na chamada Revolução Digital - a partir de agora, pela primeira vez na história, todos somos sujeitos ativos.
“Essa conversa de que seremos capazes de desenhar novos tipos de seres humanos já não é ficção científica. É uma questão de quando vai acontecer, quem vai fazer primeiro e quais serão os regulamentos.”
O professor e escritor brasileiro encerrou o debate em Salvador convidando o público a refletir sobre o papel dos indivíduos na transformação do futuro das próximas gerações.
Cabe a cada um de nós pensar em como nos relacionamos com esse mundo: “Não teria tragédia maior do que esquecermos que somos seres capazes de amar”, defendeu o teórico.
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Após sua fala, Marcelo Gleiser respondeu perguntas do público. Dentre elas, estava a Pergunta Braskem, enviada por vocês, seguidores do Fronteiras do Pensamento nas mídias sociais. Confira abaixo esta e outras respostas.
O que podemos fazer enquanto pais ou professores para estimular uma visão mais sistêmica de mundo nas crianças e em nós mesmos? O que fazemos de errado que acaba reduzindo a curiosidade natural nos jovens?
Marcelo Gleiser: Eu também sou pai, então lido com esse problema o tempo todo.
Uma das coisas que eu tento fazer é expor os meus filhos e os meus alunos à natureza o máximo possível.
Exponha as crianças aos problemas do mundo, não esconda o mundo das crianças.
Dizer “olha só o que está acontecendo”, o que está acontecendo em Salvador, na África, o que está acontecendo com os furacões, o que é o aquecimento global, falar dos problemas fundamentais da nossa existência agora.
Faça isso em família, durante o jantar. Uma vez por semana, domingo, escolha um tema e, durante o jantar ou depois do jantar, vamos discutir esse tema ou assista um documentário.
Fora isso, leva as crianças para olhar para o mundo, para a natureza. Reintegrar-se com o mundo natural é extremamente importante.
Um dos males da modernidade é esse afastamento sistêmico da natureza.
O nosso lado animal é muito importante, não podemos nos esquecer dele. O lado humano precisa dessa natureza para entender melhor quem ele é, qual a nossa relação com o planeta.
Para mim, é fundamental mostrar para as crianças que elas são as donos do futuro e que, portanto, elas têm uma responsabilidade. Não precisa chocar, não precisa exagerar, mas abrir os olhos das crianças para o papel que elas têm e irão ter como cidadãos.
A marca que o ser humano está deixando vem mudando a dinâmica de como o planeta vem funcionando. Essa é a tese, pelo menos, de uma boa parte da comunidade científica. As mudanças são tão drásticas que as próprias calotas polares estão derretendo. Até quando o gráfico será crescente e quão perigoso será para nós e para o nosso futuro essa degeneração? Qual seu otimismo para o futuro em relação a esse tema?
Marcelo Gleiser: Eu não estou nem um pouco otimista com relação a esse tema, infelizmente. É um desastre total e completo e as pessoas não estão se dando conta disso.
Depende muito de onde você mora, se você é mais ou menos afetado com relação a isso. Mas, vocês devem ter ouvido sobre os dois tufões que destruíram cidades inteiras no Japão agora, depois na Indonésia, e os dois furacões que chegaram no sul dos EUA, no sudeste, na Flórida e nas Carolinas.
As previsões dos modelos científicos são perfeitas (perfeitas não porque a ciência é perfeita, mas porque o grau de confiança das previsões é altíssimo) e exatas e dizem o seguinte: com o aquecimento global, as tempestades vão se intensificar cada vez mais, os furacões não serão necessariamente mais numerosos, mas serão muito mais destrutivos, e é exatamente isso que está acontecendo; o degelo das calotas polares é irreversível e obviamente já está acontecendo.
Estamos vivendo em um mundo que está se transformando de uma maneira rápida e muito mais rápida do que a gente previa. O painel internacional da mudança de clima, o IPCC, acaba de publicar um relatório, há uns 5 dias atrás.
O relatório dizia que eles estão esperando mudanças seríssimas no clima global. Não é em 2100, é em 2030, daqui a pouco. E isso vai afetar diretamente as gerações futuras.
O que é estranho com relação a essa história, é que pessoas bem informadas, que entendem o que está acontecendo, leem isso, veem isso e não fazem nada.
Não são só os governos. Cada um de nós pode fazer alguma coisa, pode mudar um pouquinho a vida para fazer uma pequena diferença.
Vocês viram o vídeo da Braskem no início do evento. Eles falavam sobre como a empresa está pensando no futuro, falando de plásticos renováveis, plásticos diferentes, porque eles sabem que, se eles não pensarem com essa ética corporativa futura, o que é fundamental, eles irão perder os clientes, porque cada vez mais esse tipo de inovação vai ser importante.
Cada um de nós têm um papel a cumprir. A gente fica pensando “ah, eu sou pequeno, não vou fazer diferença”. Todo mundo faz diferença. O banho mais longo faz diferença. A luz acesa faz diferença. O plástico no chão faz diferença.
Essas pequenas coisas todas fazem diferença. O que a gente pode fazer é agir e educar as gerações mais jovens a fazerem a mesma coisa, porque eles é que irão herdar essa bagunça que estamos deixando.
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Vamos imaginar que, eventualmente, a hipótese de que as transformações climáticas que estamos vivendo não sejam causadas, sejam reais, mas não efetivamente causadas majoritariamente pela presença humana. Se isso for o caso, isso não torna a previsão ainda mais grave para a gente em termos de previsão para o futuro e de como se organizar como espécie para sobreviver?
Marcelo Gleiser: Sim, se esse fosse o caso, certo, mas não é o caso.
A verdade é a seguinte: isso que você mencionou é mais um produto da mídia e da politização de um assunto científico do que qualquer outra coisa.
99% dos cientistas do mundo não têm a menor dúvida de duas coisas: primeiro, de que a temperatura global está subindo; segundo, de que ela está subindo por causa do aumento, principalmente de gás carbônico na atmosfera a partir de meados do século 19.
No primeiro gráfico que mostrei, vemos exatamente a curva. Esse é o preço que a gente paga pela industrialização do planeta, pela melhoria da qualidade de vida.
Isso tudo está junto, é uma conversa complicada, mas que o efeito é um efeito antropogênico, criado pelo homem. Eu acho que só não acredita quem não quer acreditar, por motivos que não são científicos.
O que você acha que tem de diferente nas transformações genéticas, da engenharia e da parte de inteligência artificial que faz você acreditar que eventualmente a gente está vivendo agora não uma mudança da vida humana, mas da natureza humana, nós vamos passar a ser outra coisa, um outro ser, quase um ser híbrido. Que tipo de diferença tem entre as mudança do passado e esta que está acontecendo agora?
Marcelo Gleiser: A mudança essencial é que, com essas novas tecnologias genéticas e digitais, não vamos apenas preservar a nossa essência corpórea, viver mais tempo, mas teremos a capacidade de nos reinventarmos enquanto criaturas.
Isso nunca aconteceu na história da humanidade. Nunca tivemos a capacidade de nos reinventarmos. Seguíamos a evolução por seleção natural e mutações de forma meio passiva, assim as coisas iam acontecendo.
Mas agora não, tomamos as rédeas da revolução em nossas mãos. Isso é profundamente diferente do que acontecia com a gente no passado.
Essa conversa que eu tive com vocês, de que seremos capazes de desenhar novos tipos de seres “humanos” (porque não serão mais humanos), isso já não é ficção científica. É uma questão de quando vai acontecer, quem vai fazer primeiro e quais serão os regulamentos.
Seria a diferença entre, por exemplo, você alterar uma expectativa natural, como vacinar e, portanto, evitar que um grande número de crianças viesse a morrer, versus poder desenhar previamente, manipular, previamente o destino daqueles seres que ainda vão nascer, seria mais ou menos esse tipo de contraste?
Marcelo Gleiser: Você pode criar imunidades sem precisar de vacinas, por exemplo. Obviamente que existe um problema aqui, que é impossível prever as mutações genéticas.
A gente vê isso o tempo todo, a gente toma antibiótico para uma certa doença e, de repente, o antibiótico não funciona mais, porque as bactérias que geram a doença passaram por uma mutação e passam a ser resistentes ao antibiótico.
Aliás, esse é um dos grandes problemas que temos que enfrentar. Vocês sabiam que mais ou menos 75% a 80% dos antibióticos usados no mundo são usados para gado e galinhas? O uso dos antibióticos no gado e nas galinhas está criando superbactérias, resistentes a antibióticos. Volta e meia, tem uma epidemia em que morrem algo como mil pessoas, porque você tem o espalhamento dessa superbactéria até ela ser controlada.
Isso mostra, primeiro, que a teoria da evolução funciona através da seleção natural. Segundo, que é meio difícil de prever o que vai acontecer no futuro com relação a isso. Mas, em princípio, você pode desenhar criaturas que são resistentes a certos tipos de bactérias, que é o que a gente já faz direto na agricultura. Agora, a questão é fazer com seres humanos também.
Como a tecnologia, a inteligência artificial e as máquinas conseguiriam resolver problemas práticos na questão do trabalho? Como elas poderiam empatar na solução de problemas sentimentais, da subjetividade, (expandindo para o universo moral também) dos nossos conflitos humanos, conflitos éticos? Há pensadores já discutindo esses temas? Como você vê essa questão?
Marcelo Gleiser: Essa é uma ótima pergunta. Talvez essa seja nossa via de escape, preservar a humanidade por esse lado, porque a gente não têm a menor ideia de qual vai ser a natureza ou a moralidade dessas máquinas, se elas aparecerem.
Você tem toda uma discussão de que uma máquina realmente inteligente é impossível. Tem todo esse lado da discussão que não toquei aqui hoje, que, aliás, está no meu livro A Ilha do conhecimento.
Existe, sim, esse ponto de vista. Eu meio que sou parte desse ponto de vista de que uma máquina realmente inteligente, que tenha autoconsciência, que saiba que está “viva”, eu não sei se isso é uma coisa possível; mas é uma coisa que pode ser imitada.
Esse é o problema: a realidade virtual é isso, você pode não ter aquela consciência que não sabemos de onde vem, mas podemos simular uma consciência em uma máquina.
A questão é: até que ponto essa máquina, com essas redes neuronais, vai ser capaz de pegar essa informação, transformar essa informação e começar a gerar um código moral?
Como eu vou me relacionar com as outras máquinas e com os outros seres humanos? Até que ponto nós, seres humanos, vamos poder criar salvaguardas nos programas dessas máquinas para nos protegermos de uma eventual catástrofe?
Como essas máquinas irão ajudar a condição humana? Talvez a melhor colaboração que elas possam dar, é que elas estão nos forçando a pensar quem nós somos, a entender qual é a essência do ser humano que faz com que a gente seja diferente de um programa de computador sofisticado.
Parece uma coisa óbvia para todo mundo, mas se vocês assistiram ao Matrix, programas que são profundamente sofisticados podem imitar o comportamento do ser humano e é quase impossível você distinguir entre máquina e pessoa; por isso que os robozinhos lá no Japão, com os velhinhos e as velhinhas, dão certo, porque eles são muito parecidos com a gente.
Do ponto de vista um pouco mais institucional, o que podemos fazer para incentivar a ciência no Brasil? Quais são as grandes barreiras que você poderia identificar - mesmo lecionando nos EUA há tanto tempo - para o cientista no Brasil, seus colegas, seus pares nas universidades, nos laboratórios, e para os jovens que eventualmente gostariam de estar na universidade ou ingressar na universidade na área da ciência? Quais são as dificuldades? O que poderia mudar para termos mais gente indo para a área da ciência?
Marcelo Gleiser: Essa pergunta tem muitas dimensões. Tem a parte da estrutura das universidades no Brasil, como elas funcionam. Elas têm uma estrutura extremamente rígida, hierárquica e burocrática que complica o fluxo das ideias e, principalmente, a velocidade de transformação que as coisas podem acontecer. Fica tudo meio emperrado e esse é um problema.
O outro problema é a falta de interação entre universidades, entre os cientistas das universidades e as empresas.
Existem algumas que já estão fazendo parcerias com indústrias e isso é absolutamente essencial, é uma coisa que está acontecendo no mundo inteiro, nos EUA, na Inglaterra, no Japão.
As indústrias e as universidades são parceiras, isso acelera o desenvolvimento da pesquisa aplicada das indústrias, mas também da pesquisa mais básica nas universidades, porque os cientistas ganham equipamentos com que podem fazer descobertas que, se dependerem só do fomento do governo, vão ficar esperando.
O governo ajuda muito, óbvio, mas você não pode só depender da ajuda do governo para isso.
Para mim, a coisa mais fundamental com relação a isso é a questão educacional, são as crianças: como a gente educa as crianças?
Como falamos sobre ciência nas escolas de modo cativante, de modo que as inspire a querer saber mais?
Isso está faltando em muitos lugares, no Brasil e em outros lugares do mundo também. Mas, aqui no Brasil, um dos problemas maiores é a formação dos professores nas escolas públicas.
Cá entre nós, os professores das escolas públicas para mim são heróis e heroínas, porque você ser uma pessoa que vai para a universidade, que ganha um diploma para então lecionar em uma escola pública, que não tem recursos, ou que tem muito poucos recursos, e ganhar mil reais por mês ou coisa do gênero, é um sacrifício, não é um dom. Você está sacrificando outro futuro. Você poderia estar fazendo outra coisa, mas você está querendo ensinar.
Então, tem esse problema, os professores são muito mal remunerados e, por causa disso, eles têm muito menos vontade de se empenhar de verdade naquele trabalho, porque eles não têm recursos, eles ganham um salário baixo, e têm também um preparo muito fraco; em muitos casos, o professor que vai dar aula de matemática é o professor que é formado em literatura ou em geografia e vice-versa.
O que acontece, muitas vezes, é que o professor vai para a sala de aula porque precisa dar essa aula, mas chega lá sem gostar muito da matéria, sem estar muito preparado com relação a isso e como é que esse professor vai inspirar as crianças a gostar de ciência?!
Você tem a questão do preparo dos professores, dos recursos nas escolas, e de como a ciência é ensinada.
A ciência pode ser ensinada de maneira muito chata (decorar fórmula, ficar no quadro negro, fazer poucas experiências), ou ela pode ser ensinada de forma lúdica, participativa, experiencial, em que a criança se mete a ser cientista.
A sala de aula vira um laboratório e você pega o sapo, vê como o girino vira sapo, você pega o feijão e vê como ele vai crescendo, você pega o ovo e o ovo vira pinto e você vai para o rio e, se não for muito poluído, você vê as formas de vida que existem naquele rio, as mutações estranhas que foram criadas naquele rio por causa da poluição.
Assim, você transforma a criança em um cientista na escola.
A coisa da ciência passa a ser uma coisa mágica, não é mais aquela coisa chata, mas sim um compromisso com a natureza, a maneira como a gente entende a natureza, como a gente se relaciona com o mundo, como a gente cresce junto com o mundo.
Aí, você conta a história dos cientistas. Não o que eles fizeram, mas quem eram, que tipo de vida o Galileu tinha, ou Darwin tinha, que tipos de problemas elas enfrentaram, os dilemas existenciais, as complicações emocionais da ciência deles.
Você humaniza a ciência em sala de aula de uma forma que a criança muda completamente a atitude dela com relação à ciência; o cara que gosta de ciência não é mais o nerd, mas é o cara cool, porque ciência é cool. Ciência é o que está controlando o mundo.
Se você virar as costas para a ciência, você está virando as costas para o futuro, e isso, para mim, é trágico.
É o que está acontecendo no Brasil nesse momento em que o orçamento da ciência está sendo cortado violentamente, meio que fadando o Brasil a continuar sendo para sempre aquela potência de exploração de minério e agropecuária.
Não tem nada de errado nisso, isso é muito importante, mas não pode ser só isso, porque o mundo está caminhando em outra direção, na direção da criação de estruturas digitais completamente diferentes dessa coisa da exploração da terra que é a marca do Brasil.
Então, se o Brasil quer ser competitivo com a China, com a Índia, fora todos os outros países da Europa e do Sudeste Asiático, o Brasil precisa mudar a maneira como entende a educação científica e a formação dos jovens.
Clique aqui para fazer o download gratuito do PDF do libreto especial sobre Marcelo Gleiser, físico teórico, premiado escritor e professor na Dartmouth College, nos Estados Unidos.
O libreto inclui breve biografia, links indicados e informações de destaque sobre o conferencista.
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