Marcio Astrini: “Quando a gente fala em mudança climática, fala em desigualdade social”

Postado em dez. de 2021

Sustentabilidade | Governança

Marcio Astrini: “Quando a gente fala em mudança climática, fala em desigualdade social”

Secretário-Geral do Observatório do Clima, coalização brasileira que reúne diferentes organizações da sociedade civil focadas na proteção ambiental, concedeu entrevista exclusiva.


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Encerrada no dia 12 de novembro em Glasgow, na Escócia, a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-26) frustrou quem esperava ações mais efetivas para enfrentar desafios que se mostram cada vez mais urgentes. O progressivo aquecimento do planeta, segundo os últimos relatórios científicos, aponta para um futuro catastrófico para a vida na Terra, decorrente de desajustes climáticos cada vez mais extremos, desestabilizadores e, em alguns casos, irreversíveis.

O avanço em relação ao uso de combustíveis fósseis, por exemplo, foi tímido. Em vez da progressiva “eliminação” dessa fonte energética, o texto final da COP-26 adotou uma protocolar “redução gradual”, medida que pode não ser suficiente para limitar o aquecimento global a 1,5 grau, em vez dos catastróficos 3 a 4 graus previstos pelos cientistas. Também ficou para a próxima conferência, em 2022, no Egito, uma nova discussão entre países pobres e ricos sobre compensações financeiras para prevenir e indenizar perdas e danos decorrentes de eventos climáticos extremos.

À frente do Observatório do Clima, coalização brasileira que reúne diferentes organizações da sociedade civil focadas na proteção ambiental, Marcio Astrini acompanhou as discussões na COP-26 e concorda que o saldo do encontro teve um gosto de frustração. Em entrevista exclusiva ao Fronteiras do Pensamento, Astrini, secretário-geral do Observatório do Clima desde março de 2020, comenta alguns aspectos que envolvem a discussão sobre o clima, sobretudo a pressão exercida por países com grande peso político e econômico e que ainda dependem muito dos poluidores combustíveis fósseis na sua matriz energética. Comenta ainda o controverso papel do Brasil neste tabuleiro diplomático.

Criado em 2002, o Observatório do Clima conjuga em seu colegiado diferentes frentes de atuação, da geração de dados científicos sobre a emissão de gases à consultoria a empresas e governos sobre questões ambientais. Entre outras iniciativas tem ainda uma frente dedicada a apoiar grupos socialmente mais vulneráveis e um braço voltado a combater a desinformação e as fake news relacionadas ao tema. Suas fontes de financiamento são as próprias organizações participantes, fundações e institutos nacionais e internacionais. E mantém sua independência, segundo Astrini, não aceitando dinheiro de governos.

O meio ambiente é uma pauta incontornável na condução das políticas públicas, na formatação de negócios e nas relações internacionais. E está presente no Fronteiras do Pensamento – Era da Reconexão com Pavan Sukhdev, referência mundial em economia verde. Sua conferência encerra a temporada 2021 do projeto, no dia 8 de dezembro.

 

A avaliação geral sobre a COP-26 revela uma frustração com os resultados práticos da conferência, considerando que muitas questões relevantes, diante das urgências climáticas reconhecidas, foram, digamos, empurradas com a barriga para o próximo encontro, em 2022, no Egito. O senhor concorda com este diagnóstico?

Existe sim esta sensação de frustração porque hoje a gente não mede mais as negociações dos países de acordo com os textos que estavam em cima da mesa algum tempo atrás. O que eles precisam entregar no final dessas conferências é algo que converse com o que está acontecendo no mundo real, não algo que converse com textos antigos. Quando a gente compara o resultado com a urgência que os cientistas nos dão, que os acontecimentos de clima que já ocorrem nos dão, a gente vê que o que foi produzido está muito aquém. É como se você estivesse dentro de uma casa pegando fogo e as pessoas lá dentro ficassem dizendo: "Reconhecemos que a casa está pegando fogo, reconhecemos que é uma situação de vida ou morte para todos e iremos tomar uma decisão sobre o que fazer, mas amanhã ou na semana que vem". O texto produzido na COP-26 tem coisas novas, tem inclusões de situações que nunca eram comentadas, mas que só são satisfatórias se comparadas ao que não existia antes. Comparadas ao mundo real, é muito fraco.

Olhando para o copo meio cheio, o que se poderia destacar como avanços alcançados na COP-26?

Tem alguns avanços que aconteceram fora da conferência. O primeiro foi o volume de participação das populações indígenas ao redor do mundo, principalmente brasileiras. O segundo foi o tamanho da mobilização popular pelo clima, principalmente da juventude, as passeatas e as intervenções ocorreram em maior quantidade e maior volume. A cobertura de imprensa também foi muito grande. Com relação ao texto, tem a menção aos combustíveis fósseis, especificamente ao carvão, apontados como uma ameaça ao clima, e que em algum momento precisará ser interrompido o uso desses combustíveis. É algo que não tinha, então é positivo. Mas é muito pouco, depois de 26 conferências, colocar no papel o reconhecimento do óbvio. Nestes últimos 30 anos em que as conferências aconteceram, 73% das emissões de gases foram causadas por combustíveis fósseis e só agora a gente vai dizer que eles precisam ser descontinuados. O texto avança de forma muito lenta e a gente não tem mais o luxo do tempo.

 

O fato de países com grande peso econômico como China e Índia mostrarem resistência a iniciativas para eliminar o uso de carvão, por ainda dependerem muito dele em suas matrizes energéticas, é um problema?

Um problema enorme. São economias e populações grandes. São nesses países, nos principais emissores, que as mudanças têm de acontecer, Estados Unidos, China, Índia, Brasil, Rússia, Indonésia. A China e os Estados Unidos, além de fazerem as mudanças necessárias, precisam ter a iniciativa, o protagonismo nessas negociações e ações. O acordo de Paris só existe porque houve uma negociação entre China e Estados Unidos. Pelo poder econômico e influência que exercem, eles têm uma capacidade enorme de liderança sobre outros países. Quando esse chamado G2 se mobiliza, a gente tem resultados bons, rápidos e concretos. Quando não assumem a responsabilidade e não tem uma coerência, uma organização conjunta, fica mais difícil.

O Brasil foi representado na COP-26 por visões opostas na questão ambiental. De um lado, a comitiva oficial vendendo a ideia de que tudo vai bem. Do outro, diferentes organizações alertando que as coisas não estão nada boas. É uma situação que provoca estranheza?

Temos duas situações.Temos o Brasil real, que é o dos indígenas, dos governadores, dos parlamentares, dos ambientalistas, dos cientistas, dos quilombolas, dos empresários que estavam lá. E temos o Brasil criado a partir da fantasia do governo federal. Ninguém nega a importância histórica e atual do Brasil na questão ambiental e nem as riquezas preservadas que o país tem, isso é motivo de orgulho. O que é motivo de crítica internacional é o comportamento do presidente da República. Bolsonaro é o maior risco para essas riquezas que temos. Nós tínhamos dois estandes do Brasil lá (em Glasgow), nenhum outro país tinha. Um estande onde só o governo ou pessoas que concordavam com ele poderiam falar. E tinha outro estande, o da sociedade civil, onde tinham governadores, parlamentares, pretos, brancos, indígenas, gente de outros países, com eventos nacionais e internacionais, ministros de outras nações, banqueiros, trabalhadores rurais. Todo mundo deu sua opinião, que podia ser convergente ou divergente, era um espaço de debate. Esses dois mundos mostram a distância entre o governo e a sociedade civil.

Qual a dimensão dos prejuízos políticos e econômicos que a postura negacionista em relação ao meio ambiente pode gerar?

 

A União Europeia publicou agora o primeiro texto das regras de proibição de importação de produtos vinculados ao desmatamento. A Europa e os Estados Unidos têm legislações esperando votação no Congresso. Durante a conferência, a China fez uma declaração dizendo que adotará regras para evitar a entrada de produtos de mercados envolvidos em desmatamento. O que estes países estão dizendo é que a era do desmatamento está chegando ao fim. Temos uma política ambiental divorciada dos rumos da economia global. Isso bate no agronegócio exportador, bate na geração de emprego e renda. Impacta todo mundo.

A discussão sobre o meio ambiente no Brasil costuma destacar a Amazônia, mas diante da dimensão da crise climática quais outras regiões do país também estão sob risco e precisam de atenção?

Vou citar três. Primeiro, são as zonas costeiras, onde vive cerca de 20% da população. Existem estudos preliminares que demonstram que haveria uma perda acentuada de infraestrutura urbana e de serviços essenciais caso o aquecimento atingisse um aumento de três a quatro graus e provocasse uma elevação do nível dos oceanos. Afetaria os serviços de portos, aeroportos, hospitais, vias de transporte, escolas, exportação de produtos e mobilidade urbana nestas áreas de risco. Somos um país com baixa capacidade de investimento diante das necessidades da população. Se a gente perder o pouco que tem, vai deixar a população ainda mais desassistida. E nas zonas costeiras também ficam ameaçados os manguezais e os barcos pesqueiros que são fontes de renda e alimentação para uma quantidade enorme de brasileiros.

A gente tem outro cenário no semiárido, principalmente do Nordeste. Tem a perspectiva de que, com o aumento da temperatura, se enfrente períodos de secas mais severas e prolongadas em intervalos de tempo muito menores. Hoje, a gente tem duas incidências de secas extremas a cada 10 anos. No cenário de aumento de três a quatro graus da temperatura, seriam uma a cada dois anos. Isso levaria à perda de áreas agricultáveis, o que traria uma situação de colapso para algumas comunidades. Perdendo a capacidade produtiva nesses locais, famílias, comunidades e municípios perdem a capacidade de se sustentar e criam-se fluxos migratórios. Esses fluxos vão pressionar ainda mais os serviços públicos das grandes capitais, que já têm menor capacidade de atendimento da população. Todas essas circunstâncias levam ao empobrecimento geral, a uma maior desigualdade.

O terceiro é o aumento de doenças tropicais, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Incidências de diarreia, leishmaniose, chicungunha, dengue e outras doenças relacionadas ao calor extremo ou ao prolongamento de períodos de calor. Existem estudos que apontam que crianças abaixo de cinco anos e idosos ficam numa faixa de risco ao enfrentar períodos com temperaturas médias acima de 30 graus

Mudança climática não é um tema de cientistas, ambientalistas e diplomatas. Quando a gente fala em mudança climática, fala em desigualdade social. Mudança climática é, basicamente, a depender do cenário, quem vai ter capacidade de sobreviver, a que custo, e quem vai conseguir se adaptar. E quem vai conseguir sobreviver e se adaptar são as populações mais ricas, com mais recursos, que têm boa moradia, bom acesso à saúde, boa alimentação e saneamento básico. Vivemos num país com extrema desigualdade social. As pessoas que vivem na parte de baixo da tabela não vão ter dinheiro e nem a assistência do Estado para se adaptar. A conta mais salgada vai ficar no colo delas.

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