Postado em abr. de 2021
Literatura | Cultura
Mario Vargas Llosa, pensador da cultura - Parte 2
Eduardo Wolf fala sobre a banalização da cultura e o desaparecimento de uma forma de existir e de vivenciá-la, tema abordado pelo Nobel de literatura Mario Vargas Llosa.
Por Eduardo Wolf
“A cultura se banalizou, se trivializou muito, em grande parte por consequência de uma intenção muito generosa, que era a de democratizar a cultura, de colocar a cultura ao alcance de todo mundo, e para isso foi-se baixando os níveis culturais até praticamente desaparecerem”.
A declaração de Mario Vargas Llosa em depoimento ao Fronteiras do Pensamento sintetiza bem sua convicção de que algo saiu errado com o processo de amplo e irrestrito acesso de todos à cultura. Não, o que o prêmio Nobel de Literatura peruano afirmou – e segue afirmando – não é que garantir o acesso à cultura a mais pessoas é ruim, ou necessariamente degenera em banalização e trivialização. Como fica claro para aqueles que acompanham seus escritos sobre a cultura, a literatura e as artes, o ponto é mais complexo. Em primeiro lugar porque, como procurei mostrar na primeira parte deste ensaio, a reflexão que Llosa faz sobre o conceito de cultura – e seu atual estado, o entendimento que dela temos hoje – insere-se em uma tradição de crítica cultural específica: aquela que remete a T. S. Eliot e seu Notas para a definição de cultura (1948) e a George Steiner e seu No castelo do Barba Azul: notas para uma redefinição de cultura (1971), entre outros. Certo, a matriz das reflexões de Llosa já traz a marca de um pessimismo cultural próprio, mas injeta uma alta dose de reflexão sofisticada sobre a hipótese de um mundo – o nosso – que vive a “pós-cultura”.
>> Leia o artigo inicial desta série: Mario Vargas Losa, pensador da cultura - Parte 1
Em segundo lugar, como o próprio Llosa insiste em esclarecer, há certas situações concretas, certos dados objetivos que não se pode negar e que atestam o triunfo de uma versão banal e trivial da cultura, entendida agora sob a forma do entretenimento frívolo, da mercadoria para consumo e exibição, da satisfação imediata de desejos pouco educados. Esse diagnóstico, ancorado solidamente na realidade de nossa sociedade massificada e fundada no consumismo desenfreado e regulador de tudo, não é exclusividade de uma ou outra posição política – dos herdeiros da tradição da Escola de Frankfurt aos críticos reputados “elitistas”, o reconhecimento desse processo de mercantilização, com a consequente frivolidade que vem de par, é inegável.
Há, contudo, uma curiosidade a respeito da posição de Vargas Llosa que vale a pena notar. Poucos anos antes de sua conferência em 2010 nos palcos do Fronteiras do Pensamento, sua posição parecia ser bastante diferente. Havia até mesmo certo otimismo – um traço de sua personalidade a que Llosa frequentemente fazia e faz referência.
Basta voltar cinco anos no tempo, a 2005. Vargas Llosa escreveu o prólogo para um pequeno volume, a publicação da conferência justamente de George Steiner intitulada A Ideia de Europa. Llosa apresenta Steiner como uma das últimas figuras a encarnar a velha Europa dos intelectuais, da arte, da alta cultura. O peruano faz menção ao pessimismo de Steiner, é claro, quando, nesta brilhante conferência sobre a identidade, a essência do que é a Europa, Steiner afirma, em última instância, que a Europa – e a visão de cultura que a Europa representa – acabou. Já então, há mais de quinze anos, George Steiner reconhecia que o “pesadelo da História europeia” continuava intacto: os ódios étnicos, o chauvinismo, o ressurgimento do antissemitismo. Os atuais acontecimentos no Velho Mundo comprovam a correção do diagnóstico de Steiner. O velho crítico franco-americano atacava ainda vigorosamente a uniformização da cultura e das ideias, ocasionada diretamente pela globalização dos mercados que, de quebra, universalizou tudo pela régua da mercadoria, afirmando categoricamente que em nosso tempo, “não é a censura que mata a [cultura]: é o despotismo do mercado e os incentivos do estrelato comercializado”.
>> Leia com exclusividade um excerto do primeiro romance de Llosa, "A Cidade e os Cachorros".
Quando lemos isso, é impossível não pensar que o diagnóstico é muito semelhante ao do próprio Vargas Llosa em 2010 no Fronteiras, reprisado em seu livro A civilização do espetáculo (2012). Contudo, qual não é a nossa surpresa ao constatarmos que o Llosa de apenas cinco anos antes julgava esse pessimismo de George Steiner “injustificado”, e via a situação global da cultura com melhores olhos.
Sempre me questionei o que teria levado Llosa a mudar de posição sobre algo tão importante para ele em tão pouco tempo. É certo que nesses últimos quinze anos, muita coisa mudou para pior, dando razão aos mais pessimistas, como George Steiner. Penso, contudo, que o elemento mais importante aos olhos de Llosa é constatar objetivamente o desaparecimento de uma certa forma de vida – um certo modo de existir no mundo que sempre esteve profundamente ligado ao entendimento mais tradicional, complexo e sofisticado de cultura. Essa forma de vida e essa compreensão da cultura sempre dependeram fundamentalmente do livro, da cultura livresca, das “artes da palavra”. É esse mundo – o mundo dominado pelo Texto, pela Escrita – que desaparece a olhos vistos, e que deu origem a mais de uma importante reflexão do mesmo George Steiner. É o desaparecimento dessa forma de existir e de vivenciar a cultura que, penso eu, Llosa lamenta.
Contra isso, ele lança seu vigoroso protesto de humanista esclarecido: fiquemos com a Literatura. Não por acaso, as palavras com que encerrou seu discurso de agradecimento pelo Prêmio Nobel daquele mesmo ano de 2010 nos exortavam a isso.
Da caverna aos arranha-céus, do garrote as armas de destruição em massa, da vida tautológica da tribo à era da globalização, as ficções da literatura multiplicaram as experiências humanas, impedindo que nós, homens e mulheres, sucumbamos à letargia, ao egoísmo, à resignação. Nada semeou tanto a inquietação, perturbou tanto a imaginação e os desejos, quando a vida de mentiras que acrescentamos à vida que temos, graças à literatura, para protagonizar as grandes aventuras, as grandes paixões, que a vida verdadeira nunca nos dará. As mentiras da literatura tornam-se verdades através de nossos leitores transformados, contaminados de anseios e, por culpa da ficção, em permanente questionamento de uma realidade medíocre. Feitiçaria que, ao nos iludir que temos o que não temos, que somos o que não somos, fazendo-nos ascender a esta impossível existência onde, como deuses pagãos, nos sentimos terrenos e eternos ao mesmo tempo, a literatura introduz em nossos espíritos o inconformismo e a rebeldia, que estão por trás da de todas as façanhas que contribuíram para diminuir a violência nas relações humanas. (...) Por isto temos que continuar sonhando, lendo e escrevendo, a maneira mais eficaz que encontramos de aliviar nossa condição mortal, de derrotar a corrosão do tempo e de converter o impossível em possibilidade [1]
[1] Tradução de Larry Fernandes para a editora Simonsen, 2015.
Mario Vargas Llosa
Escritor