Postado em set. de 2012
Cultura | Governança
Mohamed ElBaradei: "O Egito virou uma bagunça total"
Diplomata egípcio, Mohamed ElBaradei é uma das principais figuras para a derrubada de Hosni Mubarak
Diplomata e professor egípcio, Mohamed ElBaradei é considerado uma das principais figuras para a derrubada do regime de Hosni Mubarak. Forte crítico do conselho militar que governa o Egito desde o início de 2011, também é ex-chefe de supervisão nuclear das Nações Unidas. Por “seus esforços para prevenir que a energia nuclear seja utilizada para fins militares e para assegurar que a sua utilização para fins pacíficos seja o mais segura possível", recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2005. ElBaradei recebeu a revista Época para uma entrevista exclusiva em La Romieu, cidade no sul da França, onde costuma passar um mês de férias com sua esposa, seus dois filhos e sua mãe.
Mohamed ElBaradei diz estar acostumado a desagradar muita gente. Quando estava à frente da AIEA, chocou-se com os Estados Unidos por questionar o argumento usado para justificar a invasão do Iraque em 2003: a existência de armas de destruição em massa, nunca comprovada. Também vai contra as potências ocidentais e Israel, ao reafirmar que ainda não há evidência de que o Irã esteja desenvolvendo uma bomba nuclear. “Os iranianos não são estúpidos. Mesmo se tivessem uma arma, sabem que seriam pulverizados se a usassem."
Quando deixou a Aiea e voltou ao Cairo, no início de 2010, apresentou-se como uma alternativa ao ditador Hosni Mubarak. Foi criticado pelos islâmicos mais conservadores por ter vivido muito tempo no Ocidente. O regime caiu com a Primavera Árabe no ano passado, ElBaradei acabou deixado de lado pela Irmandade Muçulmana, o principal movimento político do país, e desistiu da candidatura à Presidência. Ele diz que o Egito vive uma “bagunça total" pela falta de uma Constituição que estabeleça uma divisão clara entre Legislativo e Executivo, o que dá “poderes imperiais" ao presidente Mohamed Morsi, ligado à Irmandade. Em abril, ele fundou o Partido da Constituição, mas nega ter ambições presidenciais. Seu objetivo, afirma, é devolver a revolução ao movimento jovem que a protagonizou com os protestos na Praça Tahrir.
Época: O senhor foi um entusiasta da revolução no Egito e agora tem criticado o governo pós-Mubarak. O que o incomoda?
Mohamed ElBaradei: Francamente, estou muito insatisfeito com a transição de poder no Egito. O levante contra Hosni Mubarak foi feito de uma forma maravilhosa. Milhões de pessoas foram às ruas pacificamente pedir justiça social e liberdade. Tudo perfeito. Mas houve um problema: as pessoas que protagonizaram a revolta não tinham um plano para administrar a revolução. Foi um erro fatal. O Exército veio, e os manifestantes acreditaram que os militares estariam do lado deles e conduziriam a revolta de um jeito que refletisse as aspirações do povo.
Na revolta, todo mundo se via como herói e não se conseguiu chegar a um acordo sobre quem falaria em nome dela. Então veio o Exército e disse que cuidaria do prosseguimento da revolução. Para eles, era preciso se livrar de Mubarak e só fazer umas mudanças cosméticas. Para as pessoas, era uma revolução de justiça social, necessidades básicas, liberdade de expressão. A sequência da transição foi a pior possível, a mais ilógica e confusa.
Época: Por quê?
ElBaradei: Fizemos eleições parlamentares antes de escrever uma Constituição. Criamos um Parlamento que não tinha um mandato claro. O Exército ainda estava a cargo do Poder
Executivo e adotou uma Constituição interina, em vez de dizer que era preciso chegar a um consenso constitucional e definir os valores básicos. Precisávamos construir a infraestrutura do país onde vivemos. Isso é uma Constituição. É saber o que entendemos por direitos básicos, justiça social, as relações entre os Três Poderes. Nada disso foi feito.
Para um país que viveu sob um regime autoritário e nunca soube o que era democracia por 60 anos, não se pode correr para fazer eleições. Isso favoreceu os islâmicos da Irmandade Muçulmana, que trabalharam na base social ao longo de 80 anos. Eles e os salafistas, a ala islâmica mais radical, levaram 70% das cadeiras. Isso não representa, obviamente, o poder na vida real do país. Mas, como eles eram os mais organizados naquele primeiro momento e as pessoas queriam qualquer coisa que não fosse o regime antigo, aproveitaram-se disso. Eles vieram para dizer: nós temos a solução, que é implementar a sharia (lei islâmica).
Temos um Parlamento que não é representativo do país. Das mais de 500 cadeiras, só temos 11 mulheres e 8 cristãos. Os cristãos representam de 10% a 15% do Egito. Não podem ter de 1% a 2% das cadeiras. O Parlamento foi eleito de acordo com uma legislação declarada inconstitucional pela Corte Constitucional. Daí, foi abolido. Pouco tempo depois, elegemos um presidente que, sem Constituição, não tinha uma atribuição clara de funções. O Exército emitiu outra declaração interina, dizendo que seria responsável pelo Poder Legislativo. Caímos numa bagunça total.
Agora, o presidente aboliu a declaração interina do Exército e apresentou outra, em que ele se arrogou poderes legislativos e imperiais. Nem nos regimes mais ditatoriais temos um homem que tem o direito tanto de legislar quanto de aplicar as leis. E o Egito se tornou uma bagunça primeiro por causa do Exército, que queria manter sua imunidade, benefícios e os cerca de 25% da economia que eles controlam. Do outro lado, a Irmandade queria encontrar a melhor forma de capitalizar a revolução. Era a oportunidade da vida deles, de sair à luz depois de 80 anos. Antes, eles às vezes faziam pactos com os militares e às vezes lutavam contra eles. O que vemos agora é uma espécie de modus vivendi. Eles deram aos militares uma saída segura, mantendo a imunidade deles até agora, por enquanto.
Quem ficou perdido no caminho foi o povo. Eles sentem que nada aconteceu em termos de benefícios da revolução. Mais de 40% dos egípcios vive com menos de US$ 2 por dia, um terço é analfabeto e há um fosso obsceno entre ricos e pobres. O que se viu nos últimos dias foi, sim, um ataque do presidente à liberdade de imprensa. Há um medo de que o Egito tenha apenas substituído um regime autoritário por outro. Ainda temos a questão de liberdade religiosa, o quanto as minorias têm o direito de culto em público. O comitê que está preparando a Constituição não é devidamente representativo.
A segurança continua em péssimo estado, porque boa parte do aparato policial, da época de Mubarak, foi tirado das ruas e não houve reposição. Sem segurança, a economia não funciona. Perdemos 60% das nossas reservas externas. Tínhamos US$ 36 bilhões e agora só temos US$ 15 bilhões. Foi preciso injetar dinheiro para manter o valor da moeda. Centenas de fábricas não estão funcionando. Se as pessoas veem que as coisas não melhoraram e que elas continuam sem o básico, meu medo é haver uma nova revolta, mas dos pobres. Uma revolta pelas necessidades básicas. Não tem havido um quadro lógico e consistente para a transição. Não precisamos reinventar a roda.
Muitos países latino-americanos e do Leste Europeu passaram pelo mesmo processo e podemos aprender com eles como refazer a Constituição e dar tempo para as eleições. Não fizemos nada disso. A maioria das pessoas, talvez com exceção aos grupos islâmicos, está decepcionada.
Época: O senhor diz que as eleições foram apressadas. Mas o povo na Praça Tahrir teria paciência para esperar por mais tempo?
ElBaradei: A revolução teve seu próprio tempo, mas os manifestantes, que deveriam ter convertido seu esforço em movimento político, se perderam. Toda a articulação foi feita
às costas deles. Quando viram, havia um presidente vindo da Irmandade, e o Exército se ajeitara num acordo com a Irmandade. A revolução devorou seus filhos. Mas não sou
pessimista. Toda revolução temaltos e baixos. Estou tentando mostrar ao movimento jovem que eles têm de se unir e trabalhar por meio de partidos políticos. Se tivermos uma Constituição apropriada, em eleições parlamentares daqui a um ano haverá uma boa chance de esses jovens terem até a maioria das cadeiras. A Irmandade e os salafistas estão perdendo credibilidade. Prometeram muito para as pessoas, e não vão cumprir. E mudaram de opinião muitas vezes. No começo, disseram que não lançariam candidato à Presidência. Depois, garantiram que compartilhariam o poder e não teriam a maioria do Parlamento. As pessoas estão começando a ver que ser um bom muçulmano é uma coisa e ser um bom político é outra.
Época: Depois de criar seu partido, o senhor quer ser o representante do movimento jovem?
ElBaradei: Sim. A ideia de estabelecer esse partido foi unir todas as forças liberais do país e também capacitar os jovens. Precisamos de uma mudança de geração na política egípcia.
A maioria dos políticos está com mais de 60 anos, com cabelos pintados. É preciso passar o bastão. Quando vierem as eleições parlamentares, queremos vir como uma frente unificada, sem excluir os islâmicos, mas oferecendo uma alternativa crível, voltada não para ideologia ou slogans, mas para satisfazer as necessidades básicas. A revolução tem de
voltar para quem está com ela desde o início: as pessoas de 30, 40 anos.
Época: Havia um bom diálogo entre o senhor e a Irmandade Muçulmana no fim do regime de Mubarak, mas veio a revolução e eles o colocaram de lado. O que houve?
ElBaradei: Trabalhamos muito próximos antes da revolução porque tínhamos um objetivo comum: tirar Mubarak. Quando ele caiu, a Irmandade parou o diálogo por iniciativa própria. Devem ter percebido que temos diferentes perspectivas. Não sei como me descrever, mas tenho uma ideologia diferente, se você quiser assim. Enfatizo mais as liberdades e as necessidades básicas, ao passo que eles ressaltam a formação islâmica. Não é muito claro para mim o que é isso na prática, mas vemos o mundo de modo diverso. Ainda temos um respeito mútuo, mas não nos envolvemos mais em negociações sérias.
Época: O senhor foi pego de surpresa pela decisão do presidente Morsi de aposentar o marechal Hussein Tantawi, ex-chefe do Conselho Supremo das Forças Armadas?
ElBaradei: Eu vinha falando com Morsi com frequência. Falei com ele um dia antes de ele ter sido anunciado o vencedor das eleições. E no dia seguinte falei com Tantawi. Disse a eles que estava muito preocupado com o risco de polarização do país. Todo mundo perderia se houvesse um racha. Mas fiquei surpreso, sim. O Exército nunca quis ficar no poder, e isso é uma boa notícia. A maioria dos comandantes militares é septuagenária, octogenária. Tantawi nunca teve ambições de ficar no poder. Não sei quais foram os termos, mas me parece claro que houve um acordo com os militares. Morsi e seu governo estão tentando chegar a alguma reconciliação nacional. Alguns do Conselho de Ministros são ligados ao antigo regime. A ideia é esfriar as coisas. Não se esqueça de que Ahmed Shafiq, ex-primeiro-ministro de Mubarak, teve 48% dos votos nas eleições presidenciais. E acho que os números divulgados eram corretos. A maioria de quem votou nele votou por medo da Irmandade. Assim como muita gente votou em Morsi porque não queria alguém ligado a Mubarak. O país continua muito dividido, com muita desconfiança mútua.
Época: O Ocidente teme que a Irmandade transforme o Egito num regime baseado na sharia. Há alguns dias, clérigos emitiram uma fatwa (sentença de morte na lei islâmica) contra um grupo anti-Irmandade. A preocupação não é procedente?
ElBaradei: Em todo país há extremistas, pela religião, língua ou cor da pele. O extremismo é uma expressão de ira de quem se sente injustiçado.No Egito, ele gira em torno da religião. Há uma ideia de que a injustiça pode ser reparada se voltarmos a nossas raízes islâmicas, e de que o infiel pode ser alvo de ataques. Recebi uma fatwa durante a época de Mubarak sob o argumento de que, segundo o islã, não poderia ir contra o governante. É claro que há motivo para preocupação.Mas qualquer religião é um conjunto de valores. Tome o exemplo do judaísmo. A forma como é praticado em Jerusalém difere muito da de Tel Aviv, uma cidade mais liberal. Num local onde há justiça e equidade, os valores são vistos de um jeito mais tolerante. As pessoas temema Irmandade e os salafistas porque não sabem o que esperar deles. E isso causa calafrios a defensores das liberdades individuais e minorias.Mas a Irmandade, em geral, é moderada, assim como o presidente Morsi. Pode-se discordar da forma como eles interpretam a aplicação da sharia.O Ocidente se assusta quando eles falam em aplicar o hudud (conjunto de punições da lei islâmica). Precisamos nos limitar aos princípios básicos do islã, como justiça, bondade, equidade. São os mesmos das outras grandes religiões, e ninguém vai discordar deles. Se você caminha para a sharia, abre uma caixa de Pandora. Não se sabe para que lado as coisas vão. A discussão abstrata causa medo nas pessoas. Por isso, digo: vamos pôr na Constituição, deixar claro o que significa um“projeto islâmico", como a Irmandade diz.
Época: Quando o senhor voltou ao Cairo, mais de 1.500 pessoas lotaram o aeroporto, com cartazes “ElBaradei para presidente". Não é frustrante ver que isso está tão longe de se realizar?
ElBaradei: Eu nunca quis ser presidente.
Época Nunca?
ElBaradei: Nunca. Não era realmente meu objetivo. Minha meta era mudar o país, sair de um regime autoritário para um sistema moderado e aberto ao mundo. Um país que exporte ciência, tecnologia e artes, não homens-bomba. Temos muito potencial, somos uma locomotiva para o resto do mundo árabe. Continuo muito feliz pelo que fiz nos últimos 20 anos, lidando com questões de segurança global. Mas me doía ver que o país ia para uma direção, e o mundo para outra. Olhe para Brasil, Índia, África do Sul. Lugares com realidades
mais ou menos parecidas com a nossa e que evoluíram de um modo democrático. Minha frustração não é por não ter sido presidente. É por ver que a revolução saiu dos trilhos. Ela deveria ter sido conduzida de um modo melhor.
Época: Mas, se o senhor chegasse à Presidência, seria mais fácil fazer isso, não?
ElBaradei: Seria. Mas não podemos pensar que as coisas mudam por causa de uma pessoa. Isso é um raciocínio que vem do sistema autoritário do Egito. Quero acreditar no oposto disso. Somos capazes de fazer isso em conjunto. Os egípcios têm de entender que todos têm responsabilidade. Uma pessoa tem de liderar, sim, mas é preciso ter uma tropa atrás para as coisas avançarem. Eu me vejo muito mais efetivo trabalhando fora do sistema. Ficou claro para mim que não quero ocupar cargos. Houve muita especulação em relação ao meu nome como possível primeiro-ministro de Morsi. Não fui convidado, mas teria recusado se houvesse o convite. Estou focado nas ideias, não em ser parte da burocracia.
Época: E se o movimento jovem lhe pedisse para concorrer?
ElBaradei: Deixei claro a eles que não concorreria. E também não quis ser presidente do meu partido. Decidi concorrer à Presidência depois da revolução porque os manifestantes me pediram e, naquele momento, não tive como dizer não.Agora eles entendem que não era o que eu queria. Quero ser o padrinho da mudança no Egito rumo ao progresso.
Época: O senhor é visto por boa parte da sociedade egípcia como um forasteiro, que voltou ao país “contaminado" pelos valores ocidentais...
ElBaradei: Quem diz isso são as pessoas que estão muito confortáveis como velho
jeito de fazer as coisas. Não é difícil entender a pobreza, a falta de bom ensino, de saúde. Tive a vantagem de viver em países onde há democracia, liberdade, justiça social. Já estou acostumado a ouvir: “Ele não sabe qual é nosso problema. Ele não bebe nossa água poluída, não vai a nossas escolas precárias". Isso vem de pessoas que lutam contra a mudança. Sofri ameaça de agressão depois da revolução em plena rua. Minha filha, Laila, foi alvo de uma campanha difamatória (uma página no Facebook foi criada em setembro de 2010 comfotos dela em trajes de banho e numa festa onde havia bebida alcoólica – o álcool
é banido pelo islã). Já ouvi de tudo: que sou ateu, agente dos Estados Unidos, agente do Irã... Isso é um sinal de desespero.
Época: O senhor mantém a posição de que ainda não há evidência da disposição do Irã de ter armas nucleares?
ElBaradei: Até hoje, ninguém sugeriu, inclusive eu, que o Irã tenha usado algum material nuclear para desenvolver armas.A acusação é que o Irã tem conduzido estudos experimentais – e faço questão de enfatizar a palavra “estudos", por não ser o mesmo que material nuclear – para ver como podem ajustar seus mísseis para detonar armas. Não estou excluindo a hipótese de que isso pode ter acontecido no passado, mas o fato de você ter feito alguns estudos não é exclusividade do Irã. Outros países o fizeram, mesmo depois de ter assinado o TNP (Tratado de Não Proliferação Nuclear). Os americanos dizem que os estudos se encerraram em 2003, os israelenses dizem que não.Há uma preocupação de que o Irã precisa esclarecer melhor essa questão. Tudo o que a AIEA tem são papéis supostamente vindos de um computador retirado do Irã. Como nós, na agência, podemos
comprovar que são autênticos? Sabemos, pelo que ocorreu no Iraque, que podemos adulterar muitas das “evidências". Mesmo que os papéis sejam autênticos, as agências de inteligência dos Estados Unidos sempre se recusaram a mostrá-los ao Irã, alegando que precisavam proteger suas fontes. Sendo advogado de formação, como poderia acusar o Irã de ter feito esses estudos se não podia compartilhar com eles a peça de acusação? Os iranianos disseram que os documentos eram falsos. Então chegamos a um impasse. Na AIEA não temos conhecimentos de perícia criminal. Analisamos material nuclear, não a autenticidade de um documento.
Época: O Irã não ganha tempo ao insistir que seu programa tem fins pacíficos?
ElBaradei: Há preocupações. Mas não devemos superestimar a questão iraniana, como se Teerã fosse desenvolver uma arma nuclear amanhã. Isso é uma estratégia de dissuasão. E, mesmo se o Irã tivesse capacidade de produzir uma arma nuclear, lembre que temos hoje 19 mil ogivas nucleares no mundo. Os iranianos não são estúpidos. Sabem que seriam pulverizados se a usassem. O único jeito de resolver isso, como digo há dez anos, é o diálogo pela construção de confiança. O Oriente Médio é muito instável. Você não pode apenas pensar quão terrível seria se o Irã tivesse uma arma nuclear, mas sim por que o Irã teria interesse nisso. Os iranianos se sentem inseguros, olham ao redor e veem como os grandes se protegem: França, Reino Unido, Estados Unidos, China, Índia, Israel. Todos com armas nucleares. Qualquer regime, seja uma democracia ou uma teocracia, se preocupa com sua sobrevivência e vê as armas nucleares como uma saída. Que americanos e iranianos se sentem na mesma mesa e exponham suas queixas. Os EUA precisam dizer que estão preocupados com o apoio do Irã a grupos extremistas, e o Irã tem de dizer que teme as ações americanas para derrubar o regime. Em 2009, Irã e EUA estiveram bem próximos de um acordo. A negociação fracassou por problemas domésticos em ambos os países. . No ano seguinte, Brasil e Turquia fizeram uma proposta e Obama estava envolvido nas questões da reforma da saúde e outras questões da economia. É preciso entender que sanções não funcionam. Diálogo e construção de confiança sim. Por exemplo, o Brasil. Vocês têm capacidade de enriquecimento de urânio. Mesmo sem ter assinado o Protocolo Adicional do TNP, ninguém levanta dúvidas se o Brasil pode ter um programa para construir armas nucleares. Não há mais competição com a Argentina em relação a isso. Não há motivo para se preocupar...
Época: Mas há motivos para se preocupar com o Irã.
ElBaradei: Sim, mas porque o Irã se sente inseguro. Há a Rússia, o Paquistão, Israel. E os iranianos ficam ouvindo a conversa de que os americanos querem mudar o regime e dão dinheiro para isso. Eles se lembram que a CIA ajudou a mudar o regime em 1953, com a queda do primeiro governo democraticamente eleito, do primeiro-ministro Mohammad Mossadegh. Eles sabem que os EUA ajudaram Saddam Hussein de todo o jeito possível a atacar o Irã na guerra Irã-Iraque (1980-1988). Coloque-se no lugar dos iranianos. Óbvio que eles se sentem inseguros. Infelizmente, há países que merecem confiança e outros que não merecem. O mundo não é sustentável desse jeito.
Época: Brasil e Turquia ainda não têm as credenciais para entrar no clube de negociadores nucleares?
ElBaradei: Isso é parte do problema. Não temos ainda um efetivo mecanismo global para resolver essas questões. A ONU é muito impotente, basta ver a questão da Síria agora. Todo mundo se sente envergonhado porque milhares de civis continuam morrendo, o Conselho de Segurança continua se encontando e nada ocorre. O G-8 é mais um clube social do que qualquer outra coisa, e o G-20 não consegue concordar com nada. Não é possível que todos os problemas do mundo tenham de cair nas costas de um só país, os EUA. Nosso mundo é um bem comum que precisa ser gerido por todos. Não consigo entender como o Conselho de Segurança ainda não acomodou o Brasil, a África do Sul, a Índia, com assento permamente. As pessoa têm de sentir que também são jogadores, em vez de esperar sentados o que os outros vão lhes dizer para fazer. Podemos continuar com a política do veto no Conselho de Segurança? Não. Não temos um sistema global funcional. Como manter uma situação em que três bilhões de pessoas vivem com menos de US$ 2 por dia, normalmente acompanhado de falta de boa governança. As pessoas se sentem marginalizadas, entram em guera civil, depois vão buscar as armas nucelares. Temos que olhar as causas estruturais, não os sintomas. Somos como bombeiros que ficam apagando fogo aqui e ali, mas o sistema elétrico não está funcionando direito, porque há incêndios toda hora. O negócio é ter uma construção moderna em que a instalção elétrica seja boa e contra incêndios.
Época: O seu nome foi cogitado como um dos possíveis substitutos de Kofi Annan para a função de enviado especial da ONU à Síria. O senhor aceitaria?
ElBaradei: Felizmente, Lakhdar Brahimi (veterano diplomata argelino na ONU) foi escolhido. Eu teria aceitado se tivesse a autoridade necessária para tal. Não se pode aceitar essa responsabilidade sem a devida autoridade, senão você se torna um bode expiatório. Kofi Annan é um bom amigo e entendo por que decidiu sair. Se tivesse ficado, todo mundo teria dito que ele é responsável pela morte dos civis, o que é uma bobagem. Ele não tinha poder de fazer nada ali ante um Conselho de Segurança dividido. Brahimi corre o risco de passar pela mesma situação.
Época: O Comitê do Nobel da Paz foi criticado em 2009 quando concedeu o prêmio ao presidente Barack Obama por não ter havido nenhum avanço concreto rumo à paz em seu governo. No seu caso, o senhor acha que fez o que estava a seu alcance pela paz?
ElBaradei: As pessoas às vezes não compreendem a natureza do Nobel da Paz. Em alguns casos, os vencedores o recebem por causa de alguma conquista efetiva pela paz. Em outros, o prêmio é dado por quem busca a paz, mesmo sem ter algo concreto. Acho que foi o nosso caso. Tentei a paz tanto nas negociações com o Iraque quanto com o Irã. Não consegui no Iraque, mas provavelmente estamos conseguindo adiar ou evitar uma guerra no Irã. Isso poderia ter acontecido se nós não continuássemos dizendo ao mundo que o Irã não era uma ameaça iminente ao mundo. É importante o fato de Barack Obama continuar advogando pela causa de um mundo livre de armas nucleares.
Época: Isso não é ingênuo?
ElBaradei: Não. Pessoas como Henry Kissinger e George Shultz (ex-secretários de Estado dos EUA), Sam Nunn (ex-senador americano) e William Perry (ex-secretário de Defesa dos EUA) estão advogando há alguns anos pelo desarmamento nuclear. E esses quatro eram pilares do governo na estratégia da Guerra Fria. Eles chegaram a um ponto da vida madura em que perceberam que a segurança do mundo não pode ser baseada em armas nucleares. Ou, nas palavras deles em um conhecido artigo que escreveram, é "decrescentemente efetivo e crescentemente perigoso" confiar nas armas nucleares. Eles acreditam que, se hoje nós temos nove países com armas nucleares, logo teremos 20 e logo alguma arma vai cair nas mãos de extremistas. Se isso acontecer, todo o conceito de dissuasão será irrelevante. Para a Al-Qaeda ou outro grupo semelhante, eles não se importam se forem atacados caso tenham uma arma nuclear. O que essas quatro personalidades americanas notaram é que, diante da tecnologia atual e do número de extremistas à espreita, a defesa baseada em armas nucleares é um caminho para a autodestruição. Ninguém é ingênuo de que um mundo livre de armas nucleares é possível amanhã. Mas o mais importante é ter um sistema alternativo de segurança. Se um dia tivermos um mundo com nenhuma arman nuclear, em algum momento alguém vai trapacear. Temos de ter um sistema capaz de detectar, derrotar ou dissuadir esses trapaceiros. Volto ao raciocínio de que precisamos ter um Conselho de Segurança diferente, uma ONU diferente. É preciso um sistema baseado em equidade, justiça e segurança inclusiva. É um caminho longo, mas é o único caminho que podemos seguir. E deve ter sido por isso que o comitê deu o Nobel da Paz a mim e à AIEA.
Época: O senhor já pensou na hora de se aposentar?
ElBaradei: Minha família já pensou bastante (risos). Pergunte à minha mulher (ElBaradei olha para Aida, que está sentada na poltrona ao lado, e os dois sorriem) e aos meus filhos, que me dizem que é hora de gastar o tempo com as minha netas (uma de 4 anos e outra de 1 um ano e meio). Dizem que é tempo de eu ficar ouvindo música clássica e jazz, um de meus hobbies, ou jogar golfe. Mas não posso fazer isso. Claro que eu diminuí meu ritmo mas não tenho previsão de parar. Não sei o que significa estar aposentado. Até onde eu tiver capacidade de compartilhar minhas experiências, prefiro fazer isso a ficar cuidando do jardim.
Mohamed ElBaradei
Diplomata