Postado em out. de 2017
Ciência | Psicologia e Saúde Mental | Neurociência
'Neurociência confirmou muitas teses da psicanálise', diz psiquiatra
Psicanálise e neurociência podem e devem dialogar. Pensar que uma pode superar a outra é reducionismo biológico, defende diretora-científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise.
Segundo Ivan Izquierdo, neurocientista mais citado da América Latina, a psicanálise foi superada pelos estudos de neurociência. "É coisa de quando não tínhamos condições de fazer testes, ver o que acontecia no cérebro. Hoje a pessoa vai me falar em inconsciente? Onde fica?", disse em entrevista.
A fala foi rebatida por dezenas de psicanalistas e também é contestada por Vera Fonseca, diretora-científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise, regional São Paulo. Em entrevista, ela afirma que neurocientistas "interessados em abrir janelas" têm criado um diálogo criativo com a psicanálise, o que fez com que várias teses da última fossem confirmadas. Leia abaixo.
O professor Ivan Izquierdo disse que a neurociência havia superado a prática psicanalítica e que hoje técnicas como a terapia cognitiva seriam hoje mais interessantes e frutíferas para os pacientes. O que a senhora pensa disso?
Vera Fonseca: Ivan Izquierdo parece ter o conceito da psicanálise prevalente há uns 60 anos. O que se observa é que vários neurocientistas, aqueles interessados em "abrir janelas", têm se empenhado em criar um diálogo criativo com a psicanálise. O que saiu disso foi um panorama muito interessante, no qual várias teses da psicanálise foram confirmadas.
Quando ele diz que a psicanálise foi superada, é uma bobagem. Os avanços da neurociência podem superar os dados científicos com os quais Freud trabalhava à sua época, mas não a psicanálise como um todo por uma razão simples: a psicanálise trabalha só em parte com o auxílio das neurociências. Se as duas práticas fossem coextensivas, teríamos de lidar com a hipótese de que, se chegássemos à resposta máxima da ciência biológica, teríamos a resposta final sobre o indivíduo e seu sofrimento. Essa é uma hipótese redutora.
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A senhora poderia dar algum exemplo dessa convergência entre psicanálise e neurociência?
Vera Fonseca: Claro, posso citar vários. Primeiro, os neurocientistas têm enfatizado a função dos sonhos na transformação das memórias de curto prazo para as de longo prazo, o que converge com o que tem sido discutido nos últimos tempos pela psicanálise, ou seja, a função dos sonhos na simbolização e assimilação das novas experiências vividas pelo indivíduo. Há ainda a questão das disposições inatas do recém-nascido para a relação com o cuidador, já consideradas por Melanie Klein [psicanalista austríaca] e amplamente comprovadas pelas pesquisas em desenvolvimento humano.
Vários pesquisadores enfatizam a importância de se combinar as abordagens da psicanálise e da neurociência para alargar o horizonte da compreensão da natureza humana, uma observando os fenômenos mentais da perspectiva subjetiva, de dentro para fora; a outra no sentido contrário, através de uma objetivação dos fenômenos observados. As duas disciplinas se enriquecem com essa relação, quando se respeita a metodologia e a epistemologia próprias de cada uma.
Isso fica mais claro ainda no domínio da noção de inconsciente, para tocar no ponto levantado por Izquierdo. O trabalho de Heather Berlin, que é neurocientista cognitivista, por exemplo, diz que é inevitável que as duas áreas compartilhem de estudos uma da outra.
Não vou dizer que Izquierdo seja o único a pensar desse modo, mas a opinião dele não é nenhum consenso entre pesquisadores da área, de modo algum.
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Mas ele não disse que os estudos de psicanálise não tinham colaborado com a neurociência. O comentário dele foi mais no sentido de que a prática psicanalítica, a clínica, estaria datada, teria sido superado por práticas e estudos mais modernos.
Vera Fonseca: Não tem como separar a clínica da psicanálise. A psicanálise é a clínica. Você não pode dizer que respeita um sem respeitar o outro.
É no consultório que o psicanalista colhe informações sobre como as pessoas funcionam. Dessas informações, tentamos extrair uma teoria geral da mente, que depois retorna ao consultório.
Não funciona como um cientista que pode estudar determinada doença do corpo sem ter contato algum com pacientes, com o dia a dia de um hospital. A psicanálise derruba esse muro entre pesquisa e prática, uma não se sustenta sem a outra.
Se estivesse vivo, a senhora não acha que o próprio Freud trabalharia com neurociência?
Vera Fonseca: É provável que sim, ele estava sempre avançando na prática dele, assim como os psicanalistas de hoje não usam as mesmas práticas que Freud, ou mesmo que psicanalistas de cinquenta anos atrás. Quem vê de fora pode achar que a coisa é estática porque continua sendo um consultório, uma poltrona, um divã, mas é uma prática em constante evolução.
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E o que ele disse sobre o inconsciente, que não podia acreditar em algo que não pudesse ver e verificar?
Vera Fonseca: Ah, isso foi completamente ciência do fim do século 19, não foi? Hoje em dia não se trabalha apenas com evidência. Um conceito não é invalidado apenas porque não posso abrir um crânio e apontar onde fica o inconsciente, isso é muito redutor.
O próprio Lacan disse que psicanálise não era ciência, era uma prática. Já Georges Canguilhem disse que a medicina não era ciência, e sim uma arte ou uma técnica, e Carlo Ginzburg tem um texto que usa Freud e diz que na história, a medicina e os detetives partilham um método pouco ou nada científico, o método indiciário. A senhora defende que psicanálise seja ciência? Ou que a medicina seja? Precisa ser ciência para ter validade?
Vera Fonseca: Nem todo psicanalista segue o pensamento de Lacan, e mesmo entre lacanianos não há um consenso sobre o que significa essa postulação dele de que psicanálise não seria ciência. Para mim é ciência, sim. É uma ciência com seus próprios meios de validação.
(Via Folha)
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Ivan Izquierdo
Neurocientista