Postado em jun. de 2020
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Por que eles não escutam?
Razão ou intuição, o que conduz nossa visão política? Neste artigo, o escritor e jornalista William Saletan analisa “A mente moralista”, livro de Jonathan Haidt.
Você é esperto. É liberal. É bem informado. Você acha que os conservadores são cabeça-dura. Você não consegue entender por que a classe trabalhadora dos Estados Unidos vota nos Republicanos. Você chega à conclusão de que eles estão sendo enganados. Você está errado.
Não se trata de uma acusação vinda de alguém da direita. É um aviso amigável de Jonathan Haidt, psicólogo social da Universidade da Virgínia que, até 2009, considerava-se um liberal afinado com o partido democrata. Em “A mente moralista”, Haidt busca enriquecer o liberalismo – e o discurso político em geral – com uma consciência mais aprofundada da natureza humana. Como outros psicólogos que se debruçaram sobre os meandros da orientação política, como George Lakoff e Drew Westen, Haidt argumenta que as pessoas são fundamentalmente intuitivas, e não racionais. Se você quiser persuadir alguém, deve apelar aos seus sentimentos. Mas Haidt não busca apenas a vitória. Ele busca sabedoria. É isso que faz a leitura de “A mente moralista” valer a pena. A política não se resume a manipular pessoas que discordam de você. Ela também envolve aprender com elas.
>> Jonathan Haidt é presença confirmada no Fronteiras do Pensamento 2020.
Haidt parece se deleitar com travessuras. Bebendo das fontes da etnografia, teoria evolucionista e da psicologia experimental, ele se propõe a detonar a fé moderna na razão. Na nova versão contada por Haidt, todos os tolos, coadjuvantes e vilões da história intelectual são reinterpretados como heróis. David Hume, filósofo escocês famoso por ter dito que a razão era mera “escrava das razões”, estava coberto de razão. E. O. Wilson, ecologista tachado de fascista por destacar as origens biológicas do comportamento humano, foi redimido pelo estudo das emoções morais. Até mesmo Glauco, o cínico da “República” de Platão que disse a Sócrates que as pessoas só se comportariam de forma ética se achassem que estavam sendo observadas, foi “o cara que entendeu tudo”.
Quanto à questão que muitas pessoas fazem no campo da política (“por que o outro lado não escuta a voz da razão?”), Haidt responde: não fomos feitos para escutar a razão. Se perguntarmos às pessoas coisas de cunho moral, cronometrarmos suas respostas e mapearmos sua atividade cerebral, veremos por suas respostas e seus padrões de ativação cerebral que elas chegam depressa a uma conclusão, para só então produzir razões que a justifiquem. Os exemplos mais engraçados e dolorosos são as transcrições que Haidt faz de entrevistas referentes a cenários bizarros. É errado fazer sexo com uma galinha morta? E com a sua irmã? Tem problema cagar num urinol? Se o seu cachorro morrer, por que não comê-lo? Sob interrogatório, a maioria dos voluntários em experimentos psicológicos concorda que tudo isso é errado. Mas nenhum sabe explicar por quê.
O problema não é apenas que as pessoas não buscam a razão. Elas até fazem isso. Mas os argumentos delas buscam corroborar suas próprias conclusões, e não as suas. A razão não atua como um juiz ou professor que sopesa evidências de forma imparcial ou nos conduz à sabedoria. Ela funciona mais como um advogado ou assessor de imprensa, justificando nossos atos e julgamentos para os outros. Haidt mostra, por exemplo, como os entrevistados dão incansáveis voltas com os argumentos em prol do tabu do incesto, por mais que o interrogador seja capaz de obliterar seus argumentos.
Para explicar essa persistência, Haidt evoca uma hipótese evolucionária: nós competimos por status social, e a principal vantagem neste embate é a capacidade de influenciar os outros. De acordo com essa visão, a razão evoluiu para nos ajudar a fiar uma história, e não a aprender. Assim Haidt conclui que, se você deseja fazer as pessoas mudarem de ideia, é melhor não apelar à razão. Trate direto com chefe: nesse caso, as intuições morais subjacentes cujas conclusões a razão defende.
A forma como Haidt encara a razão é um pouco simplista demais (afinal, seu livro inteiro é um emprego da razão com o intuito de ampliar o aprendizado) e seus conselhos soam cínicos. Mas peço que você deixe essas objeções de lado por um momento e siga o fio proposto por ele. Se acompanharmos Haidt através do longo túnel do cinismo, descobriremos que na verdade ele está em busca de conhecimento. Ele deseja abrir sua mente para as intuições morais das outras pessoas.
No Ocidente, acreditamos que a moralidade está relacionada ao dano, aos direitos, à justiça e ao consentimento. O cara é dono da galinha? O cachorro já está morto? A irmã é maior de idade? Mas se você for além de seu bairro e seu país, descobrirá que essa é uma perspectiva bastante anômala. Haidt leu etnografias, viajou pelo mundo e pesquisou dezenas de milhares de pessoas online. Ele e seus colegas compilaram um catálogo de seis ideias que costumam estar na base dos sistemas morais: cuidado, justiça, liberdade, lealdade, autoridade e santidade. Além desses princípios, ele descobriu alguns temas ligados a eles que carregam um peso moral: divindade, comunidade, hierarquia, tradição, pecado e degradação.
As visões de mundo discutidas por Haidt podem divergir das suas. Elas não começam pelo indivíduo, mas pelo grupo e pela ordem cósmica. Elas exaltam famílias, exércitos e comunidades. Elas presumem que as pessoas devem ser tratadas de forma distinta conforme seu papel e status social – idosos devem ser respeitados, subordinados devem ser protegidos. Elas suprimem formas de auto expressão que possam enfraquecer o tecido social. Elas presumem interdependência, e não autonomia. Elas priorizam a ordem, e não a igualdade.
Esses sistemas morais não são ignorantes ou retrógrados. Haidt argumenta que eles são comuns na história e ao redor do mundo porque se adequam à natureza humana. Ele os compara às diferentes culinárias. Adquirimos a moralidade da mesma forma que adquirimos preferência alimentares: começamos por aquilo que nos dão. Se o gosto for bom, aceitamos a comida. Se não for, nós a rejeitamos. As pessoas aceitam Deus, a autoridade e o karma porque essas ideias se adequam às suas papilas gustativas morais. Haidt elenca pesquisas que demonstram que as pessoas punem trapaceiros, aceitam muitas hierarquias e não apoiam a distribuição igualitária de benefícios quando as contribuições são desiguais.
Não é preciso deixar os Estados Unidos para encontrar essas ideias. É possível verificá-las no Partido Republicano. Os social-conservadores veem o estado de bem-estar social e o feminismo como ameaças à responsabilidade e à estabilidade das famílias. O Tea Party odeia a redistribuição porque ela interfere na prática de deixar as pessoas colherem o que lhes é cabido. Fé, patriotismo, bravura, castidade, lei e ordem – essas temáticas republicanas abrangem todas as seis fundações morais, enquanto os democratas, segundo a análise de Haidt, concentram-se quase que inteiramente no cuidado e na luta contra a opressão. Essa é a surpreendente mensagem de Haidt para a esquerda: quando se trata de moralidade, os conservadores têm a mente mais aberta que os liberais. Eles servem uma dieta mais variada.
É aí que Haidt diverge dos outros psicólogos que analisaram os fracassos eleitorais da esquerda. O argumento comum desses conhecedores da psique diz que os políticos conservadores manipulam as raízes neurais dos eleitores (aproveitando-se de nossa ânsia por autoridade, por exemplo) para enganar as pessoas e fazê-las votar contra os seus próprios interesses. Mas Haidt trata esse êxito eleitoral como um teste de aptidão evolutiva. Ele estima que se os eleitores gostam das mensagens republicanas, há algo nas mensagens republicanas que merece estima. Ele admoesta psicólogos que tentam “explicar as causas” do conservadorismo, tratando-o como se fosse uma patologia. O conservadorismo prospera porque apela à forma como as pessoas pensam, e é isso que o valida. Trabalhadores que votam no partido republicano não são tolos. Nas palavras de Haidt, eles estão “votando em prol de seus interesses morais”.
Um desses interesses é o capital moral – normas, práticas e instituições (como a religião e os valores familiares) que facilitam a cooperação ao limitarem o individualismo. Com esse fim, Haidt aplaude a esquerda por regular a cobiça corporativa. Mas ele teme que, em outros sentidos, os liberais dissolvam o capital moral de forma demasiado imprudente. Os programas de bem-estar que substituem o apoio matrimonial e parental por auxílios públicos sabota a ecologia da família. As políticas educacionais que deixam os estudantes processarem professores corrói a autoridade dentro da sala de aula. A educação multicultural enfraquece o amálgama cultural assimilativo. Haidt concorda que às vezes é preciso reexaminar e modificar velhos procedimentos. Só o que ele pede é que os liberais ajam com cuidado e protejam os pilares sociais mantidos de pé pela tradição.
Outro aspecto da natureza humana que, segundo Haidt, os conservadores entendem melhor que os liberais é o altruísmo paroquiano, a propensão de cuidar mais dos membros de nosso próprio grupo – sobretudo aqueles que se sacrificaram por ele – que de forasteiros. Salvar Darfur, submeter-se às Nações Unidas e pagar impostos para bancar a educação de crianças em outro estado podem ser atos nobres, mas não são atos naturais. O natural é dar dinheiro à sua igreja, ajudar sua associação de pais e mestres e se unir a outros estadunidenses para lutar contra ameaças estrangeiras.
Até que ponto os liberais deveriam incorporar esses princípios? Haidt afirma que a mudança deve ir além do âmbito simbólico, mas não estabelece uma agenda política específica. Ao invés disso, ele destaca áreas amplas da cultura e da política (família e assimilação cultural, por exemplo) com as quais talvez os liberais devessem se comprometer. Ele também insta os conservadores a tratarem as ideias liberais com a mesma abertura. O propósito desses compromissos não é apenas vencer as eleições. É fazer com que a sociedade e o governo se adéquem à natureza humana.
A parte mais difícil, descobriu Haidt, é convencer os liberais a abrirem suas mentes. Ironicamente ele relata que, quando fala sobre autoridade, lealdade e santidade, ele percebe que muitas pessoas na plateia rejeitam tais ideias por considerá-las as sementes do racismo, do machismo e da homofobia. Em uma pesquisa realizada com 2.000 estadunidenses, Haidt descobriu que os autodeclarados liberais, sobretudo aqueles que se diziam “muito liberais”, eram piores quando se tratava de adivinhar os juízos morais de moderados e conservadores do que os moderados e conservadores eram em antever os juízos morais dos liberais. Os liberais não entendem os valores conservadores. E não são capazes de reconhecer esse fracasso, porque estão muito convencidos de sua própria racionalidade, iluminação e mente aberta.
Mas Haidt não está simplesmente fazendo troça dos liberais. Ele vê a esquerda e a direita como um yin e yang, cada uma contribuindo com insights que o outro lado deveria ouvir. Por exemplo, ao seu ver os liberais podem ensinar os conservadores a reconhecerem e limitarem a predação dos interesses estabelecidos. Haidt acredita no poder da razão, mas seu processo deve ser interativo. Ele precisa ser um contato entre a sua razão e as do outro. Não somos bons em desafiar nossas próprias crenças, mas somos bons em desafiar as dos outros. Haidt nos compara a neurônios em um cérebro gigante, capaz de “produzir bons raciocínios em sua condição de propriedade emergente do sistema social”.
Nossa tarefa, portanto, é organizar a sociedade para que a razão e a intuição tenham interações saudáveis. As pesquisas de Haidt sugerem diversos parâmetros gerais. Em primeiro lugar, precisamos ajudar os cidadãos a desenvolver relações empáticas para que busquem entender uns aos outros ao invés de empregar a razão para defender visões conflitantes. Em segundo, devemos arranjar tempo para a contemplação. Pesquisas mostram que dois minutos diários de reflexão a respeito de um bom argumento podem levar as pessoas a mudar de ideia. Em terceiro, precisamos romper com nossa segregação ideológica. De 1976 a 2008, a proporção de estadunidenses que vivem em condados polarizados aumentou de 27 para 48 por cento. A Internet exacerba esse problema ao ajudar cada usuário a encontrar evidências que corroboram sua visão.
Como podemos alcançar essas metas? Haidt oferece um site, civilpolitics.org, no qual ele e seus colegas listam passos que podem ajudar. Um deles consiste em realizar primárias abertas ao público, para que as pessoas de fora do partido possam votar e nomear candidatos moderados. Outra é um sistema de votação em dois turnos, para que os candidatos vejam vantagens em ampliar o alcance de seu apelo popular. Uma terceira ideia consiste em alterar a composição dos distritos para que os partidos tenham reduzida sua capacidade de manipular as eleições em regiões polarizadas. Haidt também quer que os membros do congresso voltem à antiga prática de levar suas famílias para viver em Washington, para que assim elas possam socializar entre si e construir uma base amistosa de cooperação.
Muitas das propostas de Haidt são vagas, insuficientes ou de difícil implementação. E não há qualquer problema nisso. Tudo o que ele deseja é dar início a um debate para incorporar uma melhor compreensão da natureza humana (nossos sentimentos, moralidade e sociabilidade) à forma como debatemos e governamos nossa sociedade. Nisso ele é bem-sucedido. Trata-se de uma contribuição paradigmática para a compreensão que a humanidade tem de si mesma.
Mas a quem Haidt direciona seus conselhos? Se as intuições são avessas à reflexão e se a razão serve a si mesma, então que parte de nós ele espera que regule e orquestre essas habilidades? Essa é a tensão inconfessa do livro de Haidt. Enquanto cientista, ele empreende uma visão passiva e empírica da natureza humana. Ele descreve a humanidade como ela tem sido até hoje, sem esperar nada além disso. Baseando-se na evolução, ele argumenta que o amor universal é implausível: “O amor paroquiano [...] amplificado pela semelhança” e uma “sensação de destino comum [...] talvez sejam o máximo que podemos alcançar”. Mas enquanto autor e defensor de um ponto de vista, Haidt fala conosco de modo racional e universal, como se fossemos capazes de algo melhor. Ele parece incapaz de evitar isso, como se fosse de sua natureza apelar à nossa capacidade de escutar a razão e ao nosso senso comum de humanidade, e também fosse de nossa natureza entender isso.
Não é preciso acreditar em Deus para ver sua capacidade superior enquanto parte de nossa natureza. Basta acreditar na evolução. A evolução em si evoluiu: conforme os humanos se tornaram cada vez mais sociais, a luta por sobrevivência, acasalamento e progênie passou a depender menos de aptidões físicas e mais de habilidades sociais. Assim, uma aptidão desenvolvida pela evolução – a sociabilidade – tornou-se o novo motor da evolução. Por que o mesmo não pode acontecer com a razão? Por que ela não pode se erguer acima de suas origens evolutivas, como uma espécie de porta-voz, para se tornar uma nova forma para os humanos competirem, cooperarem e buscarem o avanço de suas comunidades? Não é o que vemos ao nosso redor o tempo todo? Veja a difusão global dos meios de comunicação, dos debates e da democracia.
Haidt é parte desse processo. Ele pensa estar apenas articulando a evolução. Mas, na realidade, também tenta consertá-la. Traços que evoluíram em um mundo disperso, como o tribalismo e o senso de justiça, estão perigosamente mal adaptados para uma era de globalização acelerada. Um cientista puro deixaria que removêssemos esses traços do pool genético através de brigas, matando-nos uns aos outros. Mas Haidt quer nos poupar desse destino. Ele busca um mundo no qual “menos pessoas acreditam que fins justos justificam meios violentos”. Para alcançarmos isso, ele pede que busquemos entender e superar os nossos instintos. Ele apela a um poder de reflexão, circunspecção e reformismo.
Se formos capazes de domar esse poder – a sabedoria –, nosso grandioso projeto consistirá em reconciliar nossas diferenças a nível nacional e internacional. A desigualdade de renda é imoral? O governo deveria apoiar a religião? Somos capazes de tolerar culturas em que as mulheres são subjugadas? E até que ponto devemos confiar em nossos instintos? As pessoas que acham a homossexualidade repugnante devem superar essa reação?
A fé de Haidt nos receptores gustativos morais talvez não sobreviva a esse escrutínio. Nossa afeição à santidade e à autoridade, assim como nossa predileção por açúcar, pode acabar se tornando um perigoso artefato. Mas Haidt tem razão quando diz que devemos conhecer aquilo que já fomos, mesmo que nossa natureza consista em transcender esse passado.
(Via The New York Times)
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Jonathan Haidt
Psicólogo