Postado em mar. de 2018
Ciência | Medicina
Siddhartha Mukherjee, oncologista de Columbia, revela a biografia do câncer
Brasil deve registrar mais de 600 mil de casos de câncer este ano. A segunda maior causa de mortes no mundo é um dos grandes desafios atuais e é tema de conferência no Fronteiras este ano.
O Brasil deve registrar cerca de 1 milhão e 200 mil novos casos de câncer entre 2018 e 2019, divulgou o Inca, em fevereiro. A OMS apresentou outro número alarmante, também em fevereiro: casos da doença devem aumentar 70% até 2038. O câncer é a segunda maior causa de mortes no mundo (8,8 milhões de pacientes morrem por ano).
Aproximadamente, 14 milhões de novos casos são registrados anualmente. Estes números não são apenas números, eles representam um dos maiores desafios globais contemporâneos e impactam milhões de vidas diariamente – de pacientes, familiares e da sociedade em geral, afinal, segundo pesquisa do instituto Datafolha, “câncer” é o diagnóstico que 76% das pessoas mais temem ouvir.
Será que algum dia a humanidade poderá se livrar do câncer? O Fronteiras do Pensamento recebe um dos principais especialistas na doença, o oncologista indiano Siddhartha Mukherjee.
Mukherjee trabalha no centro médico da Universidade Columbia e investiu seis anos e meio para produzir um livro monumental, O imperador de todos os males: uma biografia do câncer, que ganhou o Prêmio Pulitzer e uma série homônima. A obra é o resultado de uma investigação pelos 4 mil anos de convivência da humanidade com o câncer e nos conduz pela história da ciência e da medicina, pela cultura e pela política em torno da doença.
A ideia de escrever o premiado livro surgiu quando Mukherjee percebeu que, apesar de décadas de pesquisa, o câncer seguia uma doença enigmática. Foi por causa de uma paciente que ele começou a escrever. “Estava conversando com uma paciente que tinha câncer no estômago e ela disse: ‘estou disposta a lutar, mas preciso saber contra o que estou lutando’. Foi um momento embaraçoso. Não pude respondê-la e não pude apontar um livro que pudesse fazê-lo. Responder esta pergunta foi a urgência que me moveu.”
Em entrevista à Época, Mukherjee afirma que é um exagero dizer que a guerra contra o câncer está perdida, mas que também “não é realista dizer que essa é uma guerra que pode ser completamente vencida”. Vamos aos fatos?
Pensar no câncer como uma pessoa, como alguém que tem uma personalidade e merece ser biografada, pode soar bizarro. Por que o senhor fez essa opção literária?
Siddhartha Mukherjee: Decidi usar a palavra biografia quando o livro estava quase pronto. Eu o concebi como uma “história do câncer”. Usei a palavra biografia como uma licença poética. As pessoas que lerem o livro perceberão que não me refiro ao câncer como se ele fosse literalmente uma pessoa. A ideia de compor um retrato sobre a morte ao longo dos milênios, observando sempre a mesma doença e seu impacto psicológico sobre a sociedade, me fez perceber que chamar esse livro de biografia seria um modo muito mais evocativo de descrevê-lo. Porém tomei o cuidado de não personificar o câncer. Não há uma pessoa chamada câncer no livro. A decisão de usar a palavra biografia tornou o projeto mais pessoal e mais complexo.
O senhor imaginou que pudesse ganhar o Prêmio Pulitzer com seu livro de estreia?
Mukherjee: O Pulitzer é uma das grandes honrarias do mundo. É o tipo de coisa que ninguém espera ganhar. Jamais sonhei com isso. Estava numa livraria e deixei meu celular desligado quando me ligaram para avisar sobre o prêmio. Durante meia hora, ninguém conseguia me encontrar. Quando liguei o celular novamente, havia 15 mensagens. Foi uma completa surpresa.
Não são muitos os médicos e cientistas que têm a habilidade de escrever de forma clara e envolvente como o senhor fez nesse livro. Como aprendeu a escrever assim?
Mukherjee: Não sei. Acho que aprendi a escrever ao mesmo tempo que aprendi a ler. A coisa foi acontecendo naturalmente. Talvez poucos cientistas escrevam assim porque os hábitos de leitura no mundo acadêmico costumam estar restritos a poucos assuntos.
Quais são os registros mais antigos e interessantes da convivência da humanidade com o câncer?
Mukherjee: Encontrar isso foi um pouco complicado porque a palavra câncer nem sequer existia. Tivemos de suspeitar de câncer de acordo com as descrições existentes. A primeira descrição médica do câncer aparece num papiro egípcio escrito em 2.500 a.C. O escriba descreve um tumor saliente no peito, algo como uma bola de papel.
Os gregos também se referiam a tumores. Hipócrates usa a palavra “karkinos” (caranguejo). Os vasos sanguíneos ao redor do núcleo do que parecia ser um tumor lhe pareciam um caranguejo na areia. Galeno, que era médico particular dos imperadores romanos, tentou tratar tumores observados em gladiadores. Não teve sucesso. Todas essas são descrições. Obviamente, não há como ter certeza de que eram câncer porque não temos os tecidos. Em outros casos, temos 100% de certeza. Tumores ósseos foram identificados em múmias.
Por que, então, tendemos a achar que o câncer é uma doença moderna?
Mukherjee: A prevalência e a visibilidade do câncer aumentaram dramaticamente nos tempos modernos. A população está envelhecendo. Felizmente, deixou de morrer cedo, de outras doenças. Muitos cânceres (como o de mama e o de próstata) estão relacionados ao envelhecimento. Além disso, surgiram novos hábitos e produtos que causam câncer. O tabaco é um bom exemplo. Se olharmos os textos médicos escritos por volta de 1900, aprendemos que alguns tumores de pulmão eram raros. Quase não eram mencionados.
Hoje, em qualquer clínica, os cânceres relacionados ao tabagismo são muito comuns. Não apenas os tumores de pulmão, mas também os de lábios, garganta, boca, língua, esôfago e vários outros. Atualmente, metade do trabalho dos oncologistas está relacionado ao tratamento de tumores provocados pelo cigarro. Além disso, estamos diagnosticando o câncer cada vez melhor. No passado, muitas mortes eram atribuídas erroneamente a outras doenças. Tudo isso fez com que o câncer fosse visto como um fenômeno moderno, mas não é verdade. Convivemos com ele há muito tempo.
Nos anos 1960, os oncologistas acreditavam que a combinação de vários quimioterápicos levaria à cura de todos os tipos de câncer. Em 1971, o presidente Richard Nixon declarou guerra à doença e destinou US$ 1,6 bilhão para financiar pesquisas. A guerra contra o câncer é uma guerra perdida?
Mukherjee: Não acho que essa seja uma guerra perdida, mas é uma guerra desapontadora. Quando Nixon lançou a guerra ao câncer, muita gente dizia que a questão seria resolvida em cinco ou dez anos. As expectativas não eram realistas. Isso gerou muito desapontamento. É preciso reconhecer que houve importantes progressos.
Nos EUA, a mortalidade por câncer diminuiu cerca de 1% ao ano nas últimas décadas. Entre 1990 e 2005, a mortalidade caiu quase 15%. O câncer não é uma doença, mas muitas. Podemos chamar todas da mesma maneira porque compartilham uma característica fundamental: o crescimento anormal das células. É um exagero dizer que a guerra contra o câncer está perdida, mas também não é realista dizer que essa é uma guerra que pode ser completamente vencida.
Apesar de todo o investimento, tratar o câncer ainda é cortar (cirurgia), envenenar (quimioterapia) e queimar (radioterapia). Quando isso vai mudar?
Mukherjee: As coisas já estão mudando. Hoje existem venenos que atacam preferencialmente as células malignas e poupam as normais. Outros medicamentos desse tipo estão em pesquisa e deverão estar disponíveis nos próximos anos. As técnicas de cirurgia melhoraram. O conhecimento e a cultura da prevenção também avançaram.
Há algumas décadas, ninguém imaginava que o papilomavírus humano (HPV) causava câncer. Hoje sabemos que ele pode causar câncer de colo do útero, entre outros. A mudança é mais lenta do que prevíamos, porque o problema é muito mais complexo do que imaginávamos.
Muitas das novas drogas são divulgadas como “balas mágicas”. Custam milhares de reais e prolongam a vida por dois ou quatro meses. A indústria vende falsas esperanças?
Mukherjee: Depende do tipo de câncer e do tipo de medicamento. No caso da leucemia, as novas drogas não estendem a vida apenas por dois meses, mas por alguns anos. Nesse caso, e em alguns outros, não há dúvida de que essas terapias-alvo são úteis. Em outros cânceres, as evidências da eficácia são incipientes. Minha suspeita é que vamos precisar de várias drogas combinadas, e não apenas de uma, para colocar esses tumores em remissão e evitar recidivas. É muito cedo para exagerar na propaganda dessas drogas.
O senhor menciona no livro uma frase do pensador Voltaire: “Os médicos são homens que prescrevem remédios sobre os quais eles pouco conhecem para curar doenças sobre as quais sabem menos ainda em seres humanos sobre os quais não sabem nada”. Essa também é sua opinião?
Mukherjee: (Risos.) Isso sempre será verdade. O corpo humano é muito mais complexo do que a medicina pode prever. O que Voltaire escreveu nos serve como um lembrete: não sabemos nada sobre o corpo humano. Precisamos saber muito mais. É importante refletir sobre isso com humildade.
Há alguns anos, uma patologista me disse que o câncer é bonito. Isso, obviamente, se fosse possível pensar apenas nos mecanismos biológicos que ele usa para crescer, sem lembrar do sofrimento que causa à humanidade. O câncer é bonito?
Mukherjee: Não acho que o câncer seja bonito, mas a evolução da fisiologia humana é espetacular. O que existe de peculiar nas células do câncer é a exploração que elas fazem de maravilhosos processos necessários à sobrevivência da humanidade. O câncer depende de distorções desses processos. Há algo de inspirador e, ao mesmo tempo, de assustador no fato de os mesmos processos essenciais à vida se tornarem corrompidos.
O que há de impressionante no câncer, e nesse sentido concordo com você, é pensar que todas as nossas células normais têm as qualidades necessárias ao desenvolvimento dele. Isso desperta um sentimento de surpresa e admiração. Quando entendemos como a coisa funciona, pensamos: “Uau”.
O que a batalha contra o câncer do fundador da Apple, Steve Jobs (1955-2011), nos ensina?
Mukherjee: Esse caso é uma clara lembrança de que temos muito a aprender. É um sinal de que precisamos investir muito mais energia na criação de novas drogas. Investir o mesmo tipo de energia criativa que Jobs investiu em tecnologia. É irônico que Jobs tenha sido a pessoa que nos deu todas essas novas tecnologias e nós, a comunidade de médicos e cientistas, não tenhamos sido capazes de retribuir com o tipo de tecnologia médica de que ele precisava. Precisamos investir mais tempo e mais dinheiro para criar tecnologias, não apenas para fazer os computadores funcionar melhor, mas para mudar o panorama da saúde humana.
Clique aqui para baixar gratuitamente o libreto especial sobre o trabalho de Siddhartha Mukherjee, próximo conferencista do Fronteiras do Pensamento. O libreto inclui breve biografia, links indicados e informações de destaque sobre o médico indiano, ganhador do Pulitzer por seu livro O imperador de todos os males: uma biografia do câncer. Confira todos os conteúdos sobre o médico no Fronteiras.com
Siddhartha Mukherjee
Médico oncologista e escritor