Um novo mundo

Postado em nov. de 2020

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Um novo mundo

O sociólogo Manuel Castells aborda a pandemia como catalisadora de possíveis mudanças transformadoras para um novo mundo e uma nova humanidade.


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Contemplando as imagens fantasmagóricas de São Francisco envolta em uma espessa névoa laranja dos múltiplos incêndios que tornavam o ar irrespirável, uma experiência de apocalipse veio à mente de muitos. Porque os cientistas estabeleceram que esta catástrofe, como muitas outras, está ligada a uma mudança climática que segue sua marcha inexorável — em um contexto de morte e desolação devido a uma pandemia que nos Estados Unidos já matou 203.000 pessoas, na Espanha mais de 30.000 e, no mundo, um milhão. 

Referências bíblicas ao fim do mundo dividem as redes, semeando pânico e colocando em questão a convivência. Obviamente, não é o fim do mundo. Mas, sim, o do mundo em que tínhamos vivido até agora. Que é o único que podemos imaginar. No entanto, o novo mundo que está surgindo, quando a pandemia acabar, não será necessariamente pior. Pode até ser mais humano e sustentável. Tudo depende do que faremos como espécie e em cada país, porque nossa interdependência nos força a nos unir contra as tendências autodestrutivas que surgem em todos os lugares.

"É urgente um realinhamento entre os países em que se aceite que o Ocidente é apenas uma parte do mundo."

Algumas das características deste mundo emergente já estavam inscritas nas dinâmicas transformadoras da tecnologia e da sociedade, mas a pandemia e sua gestão as aceleraram. Esse é o caso da digitalização das nossas atividades e da nossa organização social, sem que isso nos anule como seres conscientes e emocionais. O teletrabalho veio para ficar, o que significa novos tipos de relações laborais, de proteção do trabalhador, de formas de vida familiar e habitacionais, incluindo a tendência crescente de descentralizar a residência em áreas atualmente despovoadas que podem recuperar sua vitalidade. A aprendizagem forçada do ensino a distância pode introduzir um sistema híbrido em que o presencial, especialmente necessário nos primeiros anos, alie-se às possibilidades oferecidas pelo virtual.

Por outro lado, o público surge como algo essencial como linha de defesa da vida por meio de um sistema de saúde cuja importância ninguém mais questionará sob pena de receber uma reprimenda política. Ou o emprego, cuja transição para uma situação pós-crise, que ainda levará pelo menos dois anos de acordo com a OCDE, seguira exigindo uma cobertura dos governos. Que exigirá um novo sistema tributário, menos centrado na diminuição da renda e mais focado na tributação das empresas globais que mal pagam impostos e nas transações dos mercados financeiros onde a riqueza se acumula.  Isso exigirá uma coordenação das políticas fiscais, o que no nosso contexto significa aprofundar a União Europeia. Sem uma tributação comum e sem mais recursos obtidos com novas estratégias fiscais, não será possível manter os fundos de solidariedade intraeuropeia.

Da mesma forma, as políticas contra as mudanças climáticas, cuja urgência se manifesta em catástrofes recorrentes, dependem da investigação científica e da inovação empresarial em novas fontes de energia, como a linha do hidrogênio verde, no qual a França, a Alemanha e a Espanha estão investindo — com impactos diretos na viabilidade dos meios de transporte, por exemplo o aéreo, sem o qual as atuais companhias aéreas sofrerão uma crise ainda mais profunda do que a resultante da inevitável restrição de viagens no curto prazo.

A transição para este novo mundo enfrenta incógnitas fundamentais que podem levar a crises dramáticas na sociedade e na política. No curto prazo, a crise do emprego e, portanto, do consumo, do qual depende 70% do crescimento econômico, pode transformar-se em desespero social quando os recursos públicos se esgotarem e as empresas ainda não tiverem capital ou mercados. Uma situação de desemprego em massa sem cobertura social é um terreno fértil para o desespero e para quebra da ordem social. É ainda mais grave ao conjugar-se com a crise de legitimidade política que há muito tempo atravessamos. Os cidadãos, no mundo em geral, confiam cada vez menos nos políticos e nas instituições democráticas. Acreditam na democracia, mas não na democracia que vivem. E as lutas políticas fratricidas nesta situação aceleram tendências destrutivas caracterizadas pela demagogia e pela incapacidade de se unir diante de problemas comuns.

A busca por bodes expiatórios produz xenofobia, racismo e violência machista. O tecido social se desintegra, limitando-se à família como unidade de resistência. A reinvenção das formas de relacionamento e da política torna-se um horizonte injustificável de sobrevivência, como pré-requisito para a transição ecológica, tecnológica e econômica. E, por fim, a capacidade da China, da Coreia ou do Japão de administrar a pandemia, mesmo sendo os primeiros a sofrê-la, altera o quadro geopolítico quando se contrasta com o manejo desastroso dos Estados Unidos, que se revela uma fraude quando os porta-aviões nucleares viram sucata inútil. É urgente, portanto, um realinhamento de convivência entre os países em que se aceite o fato de que o chamado Ocidente é apenas uma parte, e não a parte mais importante, do mundo.

Um novo mundo emerge. E será o resultado de nossa capacidade de configurá-lo como um projeto coletivo de uma nova humanidade.

(Via La Vanguardia)

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Manuel Castells

Manuel Castells

Sociólogo

Sociólogo espanhol, agraciado com o Holberg International Memorial Prize 2012. Castells é referência mundial na discussão das transformações sociais do final do século XX.
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