Postado em set. de 2019
Arte | Cultura
Werner Herzog: "Somos seres que contam histórias e é isso que nos diferencia das vacas"
Diretor alemão foi o conferencista desta quarta (25), no Fronteiras do Pensamento São Paulo. Confira as principais ideias apresentadas por Werner Herzog no evento.
"Eu nasci na pobreza. Não tinha sapato, não tinha água corrente, nem eletricidade. Fiz meu primeiro telefonema aos 17 anos de idade. Por muitos anos da minha vida, eu nem sabia que existia cinema."
Cru. Honesto. Emocionante. O cineasta alemão Werner Herzog foi o conferencista do Fronteiras do Pensamento São Paulo na noite de quarta-feira (25). Como esperado, sua fala foi de uma transparência típica de sua obra, seja cinematográfica ou literária. Afinal. Werner Herzog é um reflexo de sua própria história.
Aplaudido pelo público, Herzog reuniu, no Teatro Santander, uma plateia repleta de fãs. A eles, o diretor retribuiu à altura — proferiu uma apresentação original e demonstrou disposição para responder as perguntas.
O cineasta falou sobre as diferenças culturais que encontra em suas viagens pelo mundo: "A Alemanha é formal, o Japão é mais formal ainda, aqui as pessoas te tocam, falam com você, e dizem: 'Herzog vem pra Bahia!' Isso é diálogo, é isso que eu quero, e não aqueles tuítes que vemos tanto por aí.”
Mídias sociais foram, é claro, alvo de suas reflexões: "Fiz um filme de 4 episódios para o YouTube sobre mandar mensagens no celular. Ninguém que assistir vai mais mandar uma mensagem enquanto dirige, porque é muito trágico", disse o diretor.
Ele falava sobre o seu documentário From One Second to the Next, sobre os perigos de enviarmos mensagens enquanto dirigimos. Você pode assistir ao documentário na íntegra, ao final deste conteúdo.
Após sua fala, Herzog respondeu as perguntas da mediadora, a cineasta brasileira Anna Muylaert, diretora de Que horas ela volta? e Mãe só há uma. Também respondeu a pergunta enviada por vocês, nossos seguidores nas mídias sociais, que são patrocinadas pela Braskem. Confira as principais respostas de Werner Herzog logo abaixo.
Lembre-se: próximo convidado do Fronteiras do Pensamento 2019 é o psicanalista Contardo Calligaris, cujas ideias sobre a existência humana deram origem à temática do projeto este ano, os Sentidos da Vida. Garanta sua participação nos próximos eventos. Além de Calligaris, o Fronteiras ainda receberá o filósofo francês Luc Ferry.
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Perguntas e respostas Werner Herzog no Fronteiras
Conversar com Werner Herzog • obrigada #fronteirasdopensamento pic.twitter.com/utmhWFMWEq
— anna (@ANNAMUYLAERT) September 26, 2019
Pergunta Braskem: Em suas produções, o senhor teve contato com muitos lugares e muitas culturas. Ao longo de sua carreira, o que permaneceu de mais marcante e significativo? Lembra de algum episódio importante da sua trajetória?
Werner Herzog: Em primeiro lugar, eu diria que foi a Amazônia. Eu me sinto em casa na Amazônia. Aqueles sonhos febris na floresta, a poesia, as histórias, o mistério, a chuva... Aquele é o meu país e é claro que eu tive que voltar com Aguirre, Fitzcarraldo e outros filmes.
Eu também filmei do deserto do Saara, no norte de África, que é um outro tipo de paisagem, um tipo diferente de espaço. Mas, de certa forma, todas as paisagens têm um significado muito forte em meus filmes. Uma das poucas exceções é Family Romance, LCC, cujo cenário é Tóquio, um cenário mais urbano.
Essas cidades gigantes são lugares onde sou uma pessoa diferente. Espero outras coisas quando estou em São Paulo, por exemplo. Provavelmente, seria difícil para mim fazer um filme em Nova York, em São Paulo ou em Xangai.
Quando assisti a O Homem Urso pela primeira vez, há 15 anos, pensei que o personagem era um cara que não tinha uma vida. Ele era fracassado, alcoólatra, não conseguia fazer nada e aí ele inventou uma vida em que ele pegou uma câmera, virou um personagem de si mesmo, virou um diretor de si mesmo, criou uma nova narrativa para si mesmo e acreditou nela. Quando vi esse filme pela primeira vez, eu entendi que era um tratado sobre a burrice humana. Revendo ele ontem, com a internet, algo aconteceu e todos nós temos uma câmera, criamos um personagem e, de uma certa forma, acreditamos naquilo que estamos criando. Você concorda com essa interpretação? Como você entende que a internet mudou a vida no planeta?
Werner Herzog: Bem, é claro que mudou demais. Quase todo mundo nas ruas de São Paulo possui um celular. Hoje pela manhã, todo mundo tomava café no hotel olhando a tela do celular e conversando com alguém. Então, mudou o comportamento humano de forma fundamental.
Esses dias, até ouvi que, durante o ato sexual, algumas pessoas mandam mensagens. Isso é uma loucura. O caso mais drástico que já vi é de uma adolescente de 15 anos que só mandava mensagens pelo celular.
Em média, ela mandava 2.000 mensagens por dia. Às vezes, ela só mandava um emoji ou um “ok”, mas sem parar. Dia e noite, ela ficava mandando mensagens. Ela não tinha uma vida, porque todos os amigos que ela tinha no Facebook e no YouTube não eram amigos reais, ela nunca tinha visto essas pessoas, eram amigos virtuais. É uma vida catastrófica.
Porém, a internet também nos trouxe possibilidades gloriosas. As pessoas que vivem no universo de gaming tentam resolver centenas de milhares de quebra-cabeças. A medicina se aproveitou disso e conseguiu resolver esses quebra-cabeças de estruturas complexas de enzimas. Para a área da saúde, da oncologia e do HIV, isso foi maravilhoso.
Na cinematografia, eu diria que é uma ferramenta nova para exibir filmes pela internet, mas tem um problema, porque ninguém mais lê. As pessoas não leem mais coisas conceituais. As pessoas só leem frases curtas. As coisas mais longas que a gente lê são os tuítes do Donald Trump, que têm 6 linhas e as pessoas já começam a reclamar que são muito longos.
Algumas coisas são muito boas na internet. Eu acho que meu maior sucesso em termos de chegar a milhões de pessoas foi um filme que eu produzi para o YouTube, um filme curto sobre mandar mensagens no celular, sobre as fatalidades que acontecem enquanto as pessoas não prestam atenção na rua.
Nesse filme, From One Second to the Next (de um segundo para o próximo), são quatro episódios sobre incidentes que acontecem e nos comovem. Ninguém que assiste vai mais mandar uma mensagem enquanto dirige, porque é muito trágico.
De repente, esse filme teve consequências práticas e a curva que estava subindo dramaticamente agora mudou de direção. Ainda temos um aumento, mas o ângulo é muito menor e isso aconteceu graças ao YouTube.
Um exemplo positivo é a Criterion Collection, uma plataforma de streaming que eu adoro de filmes clássicos. Eles têm centenas de filmes maravilhosos e nenhum deles é ruim. Você tem que fazer suas escolhas, você tem que aprender a usar, porque senão a gente só vai ter aqueles grandes filmes e o cinema independente vai ficar cada vez menor e desaparecer.
Nós que produzimos filmes não devemos ver a internet só com olhos negativos, porque um filme como O Enigma de Kaspar Hauser pode ser encontrado na internet e pode ser exibido numa tela grande plasma na casa de milhares de pessoas.
Como você se envolve em todas as áreas de criação de um filme, poderia nos dizer onde termina o trabalho do roteirista e onde começa o do diretor?
Werner Herzog: Para mim, não tem fim ou começo. Quando começo um filme, de repente, uma história vem do nada. Eu vejo o filme inteiro como se o estivesse vendo em uma tela. É por isso que não são eventos independentes e é por isso que eu começo a escrever imediatamente.
Eu escuto o diálogo, escrevo o diálogo, faço comentários a respeito da música, porque eu ouço a música, vejo os cenários na minha cabeça. É claro que, quando estou fazendo as tomadas, o filme vai sendo modificado, não fico escravo daquele roteiro inicial que eu escrevi.
Na realidade, amo tudo que tem a ver com cinema: escrever o roteiro, dirigir, editar o filme, criar a trilha sonora, lançar o filme e também atuar nos filmes. Eu fui escolhido em alguns filmes de Hollywood, porque eu faço um ótimo vilão com essa minha cara de mau.
Em Jack Reacher, um filme com Tom Cruise, eu faço um vilão amedrontador. Para mim, foi muito fácil fazer esse papel, apesar de que eu sou muito reservado e eu não sou tão badass assim. A minha mulher pode testemunhar que sou um marido bem bonzinho, mas eu faço um ótimo vilão e eles me pagaram muito bem para fazer esse papel, aí eu ganhei dinheiro para produzir outro filme.
Eu também participei de um projeto que vai ser lançado em novembro que é uma série de filmes baseada na história de Guerra nas Estrelas, com um conceito novo de lançamento. Não será lançado no cinema, vocês só poderão ver em streaming pelo canal da Disney, então milhões de pessoas verão esse filme em que eu fui convidado para fazer um papel e eu sei que eu fui muito bem.
O diretor e criador dessa série queria que eu participasse desse filme de qualquer jeito por dois motivos: porque ele sabia que sou um ator competente e porque ele ama meus filmes. É assim que eu vou parar em alguns filmes como ator.
Em muitos dos seus filmes há uma dicotomia entre cultura e natureza. Em alguns deles, como Aguirre e O Homem Urso, há uma ideia de que a natureza está mais em harmonia do que a cultura, mas, ao mesmo tempo, você fala que o universo não é harmônico e que há sim um grande assassinato geral. Você vê a possibilidade de que um dia a raça humana tenha harmonia ou paz?
Werner Herzog: Não é fácil encontrar paz nesse planeta, porque nós não somos particularmente bem-vindos aqui. Há outras espécies que têm uma probabilidade maior de sobreviver, como os répteis, as baratas e alguns peixes, por exemplo. Nós somos uma anomalia e isso para mim é muito óbvio. Talvez, um dia desapareçamos como os dinossauros desapareceram.
Mas, é claro que quando digo que a natureza é obscena, isso veio por causa do Klaus Kinski que dizia: “a natureza é sempre tão erótica”. Ele abraçava as árvores e tentava até transar com elas. Eu falava para ele: “Klaus, a natureza não é erótica, ela é obscena. Tem suor, fornicação, não tem harmonia.”
Quando olhamos para o universo, vemos que ele é totalmente indiferente a nós. O que quer que aconteça conosco, há uma indiferença absoluta do universo. Ninguém se importa com o que estamos fazendo. Você acha que a Andrômeda liga para a gente?
Tudo é muito hostil. Se olharmos para o sol, é claro que ele é benigno. Ele nos aquece, nos dá luz, faz com que as plantas cresçam, mas você não quer viver no sol, você não quer chegar perto do sol.
E essa hostilidade do universo com seus buracos negros e todo o tipo de coisa é pior ainda do que o sol. Então, primeiro, a natureza não se importa conosco. Segundo, é muito hostil e caótica.
Sobre nós, temos que pensar no que estamos fazendo com nosso planeta e sobre como mudar o nosso comportamento. Não devemos esperar os políticos darem a solução, pois a política não consegue fazer isso, ela só consegue fazer certas coisas.
Na Alemanha, por exemplo, nós temos certos subsídios para usar carros elétricos, mas vai demorar décadas até que todo mundo tenha um carro elétrico e eles também precisam de energia, mas energia solar.
O que eu vejo com crianças e adolescentes que fazem greve e demonstrações de insatisfação é que isso é maravilhoso, mas todos eles esperam que a política faça alguma coisa. Eles deveriam começar com eles mesmos. Tem uma menina da Suécia que só tem um vestido e ela não anda de avião. Eu acho isso incrível.
É escandaloso que na sociedade ocidental 40% dos alimentos são desperdiçados. Nos Estados Unidos, esse desperdício é de 45%. Se todos nós pudéssemos simplesmente prestar atenção no que estamos jogando fora, as coisas melhorariam. É claro que o Brasil é diferente dos Estados Unidos, ou do Japão e da Alemanha, onde as pessoas jogam as coisas fora sem pensar.
O problema real é que nós temos pessoas demais no planeta. A curva populacional chegou a 7,5 bilhões e isso é uma catástrofe. Quase toda a população do planeta tem uma atitude consumista e nós temos que começar por cada um de nós, com gestos muito simples. Eu, por exemplo, tenho dois blazers e um par de sapatos, esse que estou usando hoje. Só tenho um sapato. É muito fácil ter poucos sapatos.
As mulheres nos Estados Unidos usam, em média, um vestido por três ou quatro vezes e o jogam fora. É uma loucura ter tantos recursos desperdiçados. Não esperem os políticos, façam vocês.
O que o senhor acha do cinema hoje com tanta tecnologia e orçamentos exorbitantes? Foge do sentido de mostrar a realidade ou a simplicidade?
Werner Herzog: O cinema não precisa mostrar a realidade. Eu fico feliz de assistir Fred Astaire e me afastar o máximo possível da realidade. Então, nós não temos que ter um espelho da realidade no cinema.
É claro que você pode ver que a indústria cinematográfica de Hollywood está desperdiçando recursos, colocando todos os recursos em efeitos especiais enormes, naquelas grandes estrelas, as explosões.
Você tem um cinema voltado para os efeitos especiais e, ao mesmo tempo, tem aquilo de ficar impressionado com as estrelas. Você precisa ter sempre três ou quatro estrelas internacionais nos filmes. Os meus filmes são pequenos, mas eu sempre consegui os melhores atores, como Christian Bale, Donald Sutherland, Nicolas Cage, Nicole Kidman e assim por diante.
Só que nos meus filmes eles não têm nome da celebridade. Eles entram nos meus filmes, porque eles são muito bons. Em Vício Frenético, o Nicolas Cage sabe que fez o melhor papel da vida dele. Ele já disse isso publicamente. Você pode assistir 30 filmes dele e em nenhum deles o papel será tão bom quanto no filme que eu o dirigi.
Por um lado, você tem os efeitos especiais, de outro, as grandes estrelas, mas eles deixam de lado o contar histórias. Hollywood sente essa falta. Eles sentem esse vazio, sabem que isso está acontecendo e é por isso que eles olham para os meus filmes, pois eu conto histórias melhor do que todos eles.
As histórias nunca abandonarão a sétima arte, porque essa é a essência do cinema e enquanto houver seres humanos nesse planeta, isso nunca vai nos abandonar. Desde o paleolítico, nós somos seres que contam histórias e é isso que nos diferencia das vacas.
LEMBRE-SE: Contardo Calligaris é o próximo conferencista do Fronteiras do Pensamento 2019. Em Porto Alegre (dia 21/10), o evento acontece excepcionalmente no Centro de Eventos da PUCRS (Av. Ipiranga, 6.681). Em São Paulo (23/10), o local é o mesmo, no Teatro Santander.
Além de Calligaris, o Fronteiras ainda receberá o filósofo Luc Ferry. Garanta sua participação.
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Assista abaixo ao documentário From One Second to the Next, de Werner Herzog.
Werner Herzog
Cineasta alemão